quarta-feira, outubro 09, 2019

Fachinação 5: Xinjiang em época de saldos


O Governo Chinês caracteriza-se por muitas coisas, mas a principal é, como já devem ter desconfiado, o controlo. A sua mentalidade de gestão micro levou a coisas tão ridículas como controlar as políticas de natalidade como se os corpos humanos fossem máquinas ou, nalguns momentos infames do seu passado, como forçar o desenvolvimento económico através da pura força de vontade (matando milhões no processo) ou acabar com o Ensino Universitário durante uns anos porque, ahm, este ensinava. Ainda que o estado comunista de Mao se tenha tornado num estranho híbrido capitalista estatal, esse hábito não se perdeu. O líder Xi Jinping, cujas linhas faciais lhe valeram comparações entre a população à popular personagem Winnie the Pooh, mantém a tradição e aplica-a em várias áreas da vida chinesa. A sua manifestação mais conhecida é o infame cartão de pontos sociais, que avalia os cidadãos pelo seu comportamento em sociedade - algo que, desconfio, não seria do desagrado de uma grande fatia da Internet que adora empunhar forquilhas virtuais para perseguir e queimar os degenerados que não se conformam à pureza moral da sua visão.

Os turistas são controlados de outra maneira. Quando se planeia viajar até à China, um dos principais problemas é saber onde ficar e quem contratar. Nem todos os hotéis podem receber estrangeiros e não é qualquer companhia que pode trabalhar com cidadãos não chineses. A liberdade económica encontra aí um limite. O Zé Luís, guia desta expedição, encontrou esse problema de uma maneira inusitada. A pouco tempo de iniciar esta viagem, estranhou não receber qualquer tipo de comunicação ou aviso por parte de uma empresa que contratara para nos transportar nas várias deslocações dentro de Xinjiang. Por vias travessas, conseguiu contactar pessoas que conheciam o dono da empresa. Descobriu então então que haviam desaparecido. Sumiço completo. Numa noite, estavam em casa, na manhã seguinte era como se nunca houvessem pisado o solo. Como se um triângulo das Bermudas se formasse para sugá-los e não mais dar notícia. À boca pequena, outra pessoa esclareceu que a Polícia era responsável, que aparecera de súbito de madrugada, encaminhara a família para umas carrinhas e o rumo marcado era um campo de reeducação. A China mostra um grande amor a estas estruturas, destinadas, segundo o Governo, a ensinar a outras culturas o que é, de facto, ser chinês, de maneira a facilitar-lhes a entrada no mercado de trabalho. Não estamos a fazer qualquer mal, dizem. Damos uma mãozinha e tudo, somos simpáticos, eles até ficam aqui e têm cama e roupa lavada. Não se preocupem. não se passa nada. Há uma outra maneira de ver isto. "Ensinar a ser chinês" mais não é do que uma reformulação de "limpeza étnica". Menos perniciosa e directa, sem mortos, sem o espectáculo horrendo da carnificina. Mas subtil, erradicar um povo através dos seus hábitos, dos seus costumes. Ser Chinês. Um crachá no peito como orgulho de olhos em bico. 


Um pouco em aflição, o Zé lá resolveu o problema. Cruzou-se coma  referência de outra instituição que fazia os mesmos serviços. Não estava tão bem cotada e referida como a anterior, mas consideravam-na de confiança. Marcou tudo, problemas resolvido. Quando chegou a Kashgar umas semanas depois, conheceu por fim o dono desta empresa. Chamava-se Ali, ar muito profissional, a capacidade de não tremer perante uma inconveniência, cabelo branco, mas de joviais movimentos. A conversa começou formal, confirmando todas as marcações e viagens, discutindo quem seriam os guias, preços, veículos. A certa altura, o Zé não resistiu e puxou o assunto do mistério da outra empresa. Um comentário foi lançado à laia de inocência, como se a história não pairasse na sua cabeça como aquele nevoeiro que costuma soprar os campos de batalha depois da refrega. O Ali não tremeu e até sorriu um pouco. Sorte a do outro, disse. Cansara-se disto do turismo, dava muito trabalho. Regressara à sua terra natal, onde lhe tinham proposto tomar conta do supermercado de um parente que, já velho, passara do prazo de validade de comerciante. Empolgado, partiu e deixou isto dos turistas estrangeiros. Estava feliz, Ali acreditava. Um sonho, ter o seu próprio negócio, catita, independente e bom dinheiro no bolso. A família fora com ele, contente por regressar assim às raízes. Não se estava mal. Quando mais tarde o Zé me contou esta história. não sabia se havia de rir ou chorar. Este Ali saberia de certeza o destino do seu colega. Por medo, talvez, escolhera contar uma versão dos factos onde tudo acaba bem. Uma fantasia, uma invenção do passado, algo em que, apercebo-me ao longo da viagem, as autoridades chinesas são especialistas. Nas autocracias existem sempre duas verdades paralelas. Uma é a corre na rua. A outra a que se deita em casa. Se pegarem num livro de piadas soviéticas, encontrarão muitas anedotas que atacam este problema com mordacidade. Uma das minhas preferidas fala da comparação da liberdade de expressão entre EUA e URSS, numa conversa entre um americano e um russo. O primeiro defende que na América pode, por exemplo, pôr-se à frente da Casa Branca e gritar "Que se lixe o Ronald Reagan" e ninguém o prende. O segundo acha isto uma tolice, porque se bem lhe apetecer, pode berrar o mesmo no meio da Praça Vermelha e ninguém lhe toca também.

Explico isto porque estamos a bater à porta do hotel onde originalmente era suposto termos passado das nossas noites em Kashgar. No entanto, uma semana antes de chegarmos, o Governo decidiu que afinal este não podia receber cidadãos estrangeiros. O Zé, ainda assim, faz questão vejamos o interior, porque aqui se situava o antigo consulado russo nos inícios do século XX. Tudo parte da estratégia do Grande Jogo, onde a influência na Ásia soava os tambores da guerra entre a terra dos Czares e o maior império da altura, o Reino Unido. O objectivo era angariar aliados entre os líderes da região, açambarcar recursos, marcar posição. Os serviçais eram espiões em simultâneo, qualquer convidado presumido como traidor,  e não era incomum vodka e assassinatos dançarem de roda nos jantares organizados pelo consulado. O edifício é muito semelhante a uma datcha soviética, paredes de madeira, paleta monocromática, mais comprido do que alto. O nome não deixa de me causar um óbvio sorriso: Seman.


Estamos ali dois minutos à espera. Ninguém responde. Transeuntes passam, espiolhando com desconfiança um grupo de ocidentais ali à porta. Por uma questão de segurança, decidimos retirar. Mas o Zé está preocupado. Ele conheceu o dono do hotel, um tipo porreiro com quem teve uma conversa que o marcou muito. Referindo o caso do senhor que agora trabalhava num supermercado, rapidamente viu lágrimas nos olhos do interlocutor. Puxando-o para um canto, um ponto cego na visão da câmara que fiscalizava o diálogo, confirmou-lhe o que lhe haviam contado sobre os campos. Era verdade. Por isso, a primeira ideia que se apresentou ao Zé foi a mais óbvia: de uma maneira qualquer, alguém descobriu isto e levou o rapaz. É outras das consequências de ser estranho nestas terras estranhas: não sabemos quando as nossas acções, que pensamos inocentes, podem ter consequências decisivas na vida de outros. Como se as nossas mãos pode pôr e dispor dos destinos de estranhos por uma simples palavra. Como os sonhos de outros podem acabar apenas e só pela nossa banalidade corriqueira.

Almoçámos num restaurante ali perto, onde descobri que as casas de banho em espaços públicos são normalmente latrinas. Uma sanita é um luxo. Talvez isto explique porque é que raramente os asiáticos alapam o rabinho no chão. A refeição é marcada pela comida novamente picante e por uma conversa sobre fenómenos fora do comum, onde não incluo a Política portuguesa, e onde as pessoas do grupo descobrem que me interesso pelo fenómeno OVNI. Algumas tentam desmontá-lo usando argumento que já eram usados há cinquenta anos e presumindo que eu o associo de alguma forma a vida extraterrestre. Perguntam-me o que é e eu não sei, obviamente. Porque todas as dúvidas devem ter uma resposta categórica imediata. Algo que sempre achei engraçadíssimo, mas que nestes tempos que correm, onde tudo é certo e nada é errado me assusta mais do que diverte. O restaurante fica mesmo à beira de uma longa avenida e quando saímos, o sol bate como o João Moutinho: bem. Enquanto espero que duas pessoas saiam, reparo ao longe na rua em dois polícias que acompanham um jovem que caminha feito geisha. À primeira vista é bizarro, mas numa segunda mirada, saltam as algemas que lhe prendem as mãos e os pés. Para o caso de se estarem a perguntar, sim, é uigur. Transportado na rua, como se fosse normal, à vista de toda a gente. O sonho molhado de André Ventura. O Zé também o vê e está claramente a pensar no seu amigo de Kashgar. Sugere que tentemos uma vez mais. Vamos até à porta do consulado e se ele não estiver lá... que seja por uma ida à Loja do Cidadão. Ou algo do género.


Atravessamos o espaço entre a rua e o antigo consulado, debaixo da sombra de árvores, folhas roxas que se despencam ao vento. Um toque. O vento soprando entre os ramos é o único som a contornar as nossas formas. Segundo toque. Olhares nervosos entre nós, um ou outro sorriso, fotos tiradas ao espaço. Terceiro toque. Ninguém responde, mas as perguntas estão lá. Quando o quarto toque, quase simultânea a abertura da porta. Ali está ele. Chama-se Molan (sim, quase como a princesa) e não parece espantado por ver-nos. O Zé, sim, está bem mais aliviado. Molan convida a entrar, para um largo hall completamente branco, apenas com dois sofás laterais e a recepção a meio. Noto que no balcão, descansa a mesma câmara negra que vi no nosso próprio hotel, onde nos apresentámos à força. A combinação entre a fila de árvores à entrada e a largura, decoração otomana, salões espaçosos, dá ao edifício um ar Chekhoviano. Este é apenas um dos edifícios do consulado. Em redor, existem outros, maiores, visitáveis a partir daqui. Molan faz-nos uma rápida visita guiada. Explica um pouco da história do consulado, das lutas diplomáticas entre o Reino Unido e a Mãe Rússia, das picardias entre os cônsules George McCartney e Nikolai Petrovsky. Paramos num salão com um belíssimo candelabro transparente, que se assemelha ao chapéu de fiapos prateados de uma princesa chinesa. As paredes cobrem-se de quadros evocativos de temas mitológicos, de cenas do passado histórico russo. Somos convidados a espreitar os quartos e até uma pequena sala onde cadeiras, poltronas e estantes com livros convidam a ficar e esquecer o programa da parte da tarde.

Enquanto alguns de nós questionam o Molan ou simplesmente fotografam o espaço, encaminho-me para um espaço exterior, que está em obras. Dominam os azuis, mais claros, o mar que está tão longe daqui. Numa coluna mesmo no centro deste espaço, uma coluna em tons de verde é encimada pelo crânio de um boi. No entanto, alguns gatos tomaram-nos como seu e rebolam ao sol, na sua privacidade própria que nenhum humano pode sequer ousar estragar. Passam por entre colunas brancas, miam, fogem de qualquer iniciativa de acariciá-los. Apenas com tempo e alguma confiança - e provavelmente, ainda cheiro entranhado do meu próprio gato - ganho confiança suficiente para cofiar os seus queixos. Uma funcionária do hotel explica que os bichos foram resgatados da rua e que uma gata deu à luz há uns dias. Sento-me no chão, sou ocidental. Um silêncio incrível, uma luz que abraça, segundos de momentos onde não estou no país da vigilância ou das confusões, longe de câmaras, longe de pessoas. Neste exterior do hotel, Kashgar só existe dentro dos limites das paredes e é uma maravilha de pelo e de sol.


À saída, pergunto o Molan pergunta-me como foi a manhã. Explicou que fomos a uma feira de gado. Foi divertido? Pauso e digo que foi curioso, enquanto o meu olhar quase alcança uma câmara de vigilância imediatamente acima de nós. Ele entende. Eu não quero deixá-lo em maus lençóis. Recua dois passos. O que achaste mais curioso? E eu expliquei a história dos polícias à paisana que me filmaram, das perguntas estapafúrdias do "turista", do fotógrafo que tão bem conhecia a Polícia. Um sorriso tímido, uma observação certeira: "Viajar é conhecer outras culturas". Perto, o Zé Luís chega-se e observa que viu pouca gente na feira comparado com o ano anterior. Os olhos do Molan são navalhinhas pequenas. "Dirias quanto? Menos 70%?" À volta disso, sim. "Bem, esse é quase a percentagem de pastores uigures que desapareceram este ano. Gracejo que o negócio dos supermercados está fortíssimo em Kashgar. Perdido na piada, explicamos ao Molan.. Uma pequenina tristeza abate-se, encolhe os ombros: "Se muita gente repetir uma história, ela torna-se real, não é?" O Molan fala da sua cultura, de como está a desaparecer. De como os Chineses apertam cada vez mais a malha, aumentam as regras, de como apesar de isto já não ser um assunto escondido, ninguém faz nada e ninguém vai fazer. De como sim, os uigures não levam a bem a presença chinesa, de que têm havido revoltas e manifestações; mas quem seriam eles se, quando espezinhados, não mostrassem a sua indignação? Quem aceitaria ser reduzido a nada em silêncio? A cultura dos Uigures centra-se no comércio, em costumes ancestrais, na hospitalidade e de como todos estes traços vão sendo apagados com uma borracha digital. De como até ale tem medo se esquecer do seu povo e de quem é. Agradece a nossa preocupação, pede-nos que fotografemos e que quando voltarmos, não escondamos a sua história nem a de Xinjiang. Pede-nos algum cuidado também e fala-nos do seu gosto em receber, de como ter aquele hotel é tão importante para a sua vida e que teme constantemente que lho tirem. Que lhe apaguem os sonhos. De que vendam a sua identidade em algo pior do que um supermercado.

Ainda é relativamente cedo e quando nos despedimos do Molan, a ideia é apanharmos um autocarro para o lado oposto da cidade. A paragem mais próxima não fica muito longe, por isso vamos a pé. Penso bem no que ele me contou, de algo que ignorava quase completamente há uma semanas. De como viajar é fazer mais mundo. Nisto, o meu olhar ergue-se para a montra de uma livraria. Todos estamos curiosos por entrar e assim fazemos. A máquina de raio x e os detectores de metal recebem-nos, claro. Mas lá dentro, um tesouro. Que cultura pode existir num mundo de censura? Os chineses, aparentemente, adoram cientistas ocidentais. Vemos fotos em grande tamanho de Newton, Galileu, Mendel... Acho a de Galileu particularmente irónica, porque este é um dos símbolos do homem perseguido e silenciados pelas suas ideias contrárias à grande vontade da Instituição Central. Mas as ironias não acabam aqui: na terra do cala-te e porta-te bem, vendem-se exemplares de "Admirável mundo novo", de Huxley ou de "O clube dos poetas mortos". Existe também "O principezinho", "O estrangeiro" ou uma colecção bastante completa da sobras de Shakespeare. Uma biografia de Ronald Reagan e claro, todos os escritos do Grande Pai Mao. Perdido por entre alguns livros, existe um "Os Lusíadas" em chinês, mas não encontramos nada sobre as viagens de Marco Polo. Quase todo o grande cânone da literatura ocidental se encontra traduzido em chinês, não sei se na totalidade. Na secção de literatura adolescente, encontro uma adaptação das obras de Ian Fleming protagonizado esse grande falcão do capitalismo que é James Bond. As capas são estlizadas em traço de anime, como se Bond fosse primo de Son Gokou e Tsubasa. Os únicos clientes da loja somos nós. Algures enquanto lá estamos, duas garotinhas entram e folheiam livros como para passar o tempo. De resto, caminham matronas, mas falando alto, rindo, obcecando nos ecrãs do telemóvel.


A caminho da paragem, atravessamos uma rua através de passagem subterrânea. Estas estão pejadas de pequenas lojas que vendem quinquilharia. São antros de luzes brilhantes e ofensivas, barulho, muito barulho e gente. Numa delas, à vista de todos, uma blusa com a estampa de Winnie the Pooh. Neste momento, esta imagem está proibida em toda a China. Mostrá-la ou, pior, usá-la é proibido. Dá prisão. O Chefe Xi zangou-se com este urso pelas constantes comparações físicas e portanto, baniu-o para uma terra sem leite e mel. No entanto, em Kashgar, uma irredutível aldeia não gaulesa resiste e arrisca a prisão. Não sei se por desconhecimento ou se por genuína rebeldia. Mas ele ali está: braços abertos, o amarelo torrado tão simpático quanto o sol no Seman, um criatura sem mal revestida do pior dos crimes. Minutos depois, quase volto a casa quando apanhamos o autocarro. É o 10. Onde cresci, era o número que me levava à escola e trazia todos os dias. 10 Ceira. Hoje, em Ceira, muita gente apanha-o também para ir ao Continente do Vale das Flores. Porque na minha terra, quase não há supermercados. Deixo a dica aos Chineses caso fiquem sem espaço para ajudar os uigures a montar os próprios negócios.



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