quarta-feira, outubro 23, 2019

Fachinação 7: Um parque de diversões chamado memória


Ainda Cristo não tinha nascido e já Kashgar se erguera das areias do deserto de Taklaman. Esta cidade antiquíssima é referida várias vezes em documentos escritos há 2100 anos. A expansão para Oeste da dinastia Han, a primeira do Império Chinês. Kashgar já existia, era o ponto de encontro da miríade de tribos nómadas da Ásia Central que cruzavam as estepes sem nação, sem poiso. Até na antiga Grécia, Ptolomeu ouvira falar de um ponto na Scítia, reino antigo herdeiro da Pérsia, onde as pessoas praticavam o Budismo e o Zoroastrismo e conviviam em paz. Não quero dar uma aula de História: este local onde passei nos últimos dois dias puxa uma corda de séculos, bastantes. Ainda que, pela sua situação a meio caminho entre dois mundos diferentes - a China Imperial, burocrática e opulenta, conflituosa e expansionista; a estepe asiática de indomáveis cavaleiros que se reúnem em tribos e se recusam a responder a qualquer autoridade - tenha sido palco de insurreições, guerras e conflitos longos, até há poucos anos ainda sobrava aqui uma das grandes maravilhas arqueológicas da Ásia: a cidade velha de Kashgar. Com as suas moradias em adobe e barro, organização em jeito de caos, uigures envergando com orgulho as suas tradições, conta quem a visitou que era o espaço certo para viver algo de genuíno, para fugir dos circuitos turísticos tradicionais e viver algo quotidiano e não inventado. Devem ter reparado que usei o tempo passado. Não foi erro. É que no entretanto, os Chineses ganharam um gosto tremendo pela uniformização dos hábitos e do território; e também, a julgar pelo que vi quando cheguei à entrada deste local, uma mania de transformar o seu país numa Disneylândia.

O Governo chinês fez-se amigo de algo chamado "Progresso", dizem, e foi-se entretendo nesta década a deitar abaixo o que existe dessas casas centenárias desta zona da cidade. Quando saímos do mercado, uma simples mirada encontra o pouco que sobra a algumas centenas de metros de distância. Aos meus olhos habituados a ver sítios arqueológicos, tem grandes semelhanças com as primeiras urbes do Médio Oriente, edifícios baixos e vermelhos, colados uns aos outros, com uma porta e duas janelas, escadas unindo todas as moradias. Os meus olhos também encontram gruas e bulldozers, o que significa que o processo está ainda em curso. Aquilo que dezenas de exércitos e impérios tentaram fazer a este ponto do mundo está agora a sua alcançado pelas companhias de construção chinesas: destruição e terraplanagem. É importante entender que o que se está aqui a passar não é simplesmente criar espaço para construir novos edifícios e casas. É mais um sinal do esforço concertado de apagar uma cultura. Desde que Mao Tse-Tung reanexou esta região, região essa que foi independente duas vezes na primeira metade do século XX, Xinjiang transformou-se num novo Tibete, onde uma maioria étnica local que nada tem a ver com os Han, aquela de onde descende a maior parte da população do país, parece ameaçar os planos de tornar toda a China numa família unida e standardizada. Desde Mao que todos os governantes chineses têm um medo patológico da revolta e da resistência. Acima de tudo, medo que a diferença signifique secessão. A tendência acentuou-se na década de 90, quando finalmente aqui chegou o caminho de ferro. Dois milhões de Han migraram para a região, incentivados pelo Estado, e tomaram conta da economia local. Todos os trabalhos em construção e fábricas vão para os "verdadeiros" chineses. Os recursos da região, principalmente os minerais, beneficiam o aparelho central. É uma assimilação dos uigures e da sua cultura, mas ao invés de preservá-la, a ideia é diluí-la, de preferência até desaparecer. É um sonho chinês, mas os Uigures vivem-no de olhos bem abertos.


A ideia é varrer oitenta e cinco por cento deste tesouro histórico. Os outros quinze ficam para dar coesão ao novo projecto: uma reimaginação de algo que já existe, mas que não se quer. Uma mumificação da História. Ou seja, uma reinvenção da cultura uigur pelos seus captores. Kashgar como os chineses gostavam que fosse. Uma patranha. Os actuais residentes serão compensados pela sua perda e convidados para novas moradas. Como nenhum deles tem qualquer tipo de direitos sobre as propriedades em que habita, podem facilmente levar um chuto no rabo. A ganância tem, afinal, tradução em Mandarim. Quem quiser ficar, sujeita-se o novo programa e cria ambiente, dá à falsificação um cheirinho leve de realidade. Para sermos justos, nada disto é novidade para um país que no ano passado que gastou tanto dinheiro em projectos de construção só na cidade de Pequim como todos os países da Europa juntos. Rua tradicional atrás de rua tradicional (os chamados hutong, lá chegaremos) arrasada para dar lugar a casinhas modernaças. Pode-se considerar este projecto turístico como um reflexo burocrático, pavloviano, natural. Ou uma acção quase herege de acabar com a memória de um povo. Até a Natureza ajuda às tentativas de justificação. Em 2003, um terramoto atingiu a cidade, matando 263 pessoas. Logo, defendeu o presidente da câmara local - que é Han - o Governo está apenas a tornar aquele ponto tão frágil mais resistente aos sismos. Uma simpatia, uma benção. Mas claro que ninguém acredita na justificação. Não houve qualquer fiscalização e estas casas aguentaram muitas catástrofes. Resistiram, mantêm-se de pé. São por isso um símbolo permanente do orgulho de uma cultura, ponto de reunião em caso de resistência. Portanto, um perigo de segurança numa região que assistido, nos últimos anos, a esporádicos confrontos entre uigures e a Polícia. A China sabe bem que está a fazer. Na lista de locais que colocou à consideração da UNESCO na elevação da Rota da Seda a património mundial, deixou Kashgar de fora. Que é um pouco como querer criar uma Rota dos Romanos em Portugal e ocultar Conimbriga. Não querem ser obrigados a preservar um património que tem mais conotações do que simples matéria.

Na nova entrada da Cidade Velha, um portal em pedra vermelha recebe-nos. Inscrições em Mandarim e Uigur anunciam o local. Vejo a sair do espaço um casal deve ter escolhido esta reinvenção para as fotos de casamento: ele enverga um fato, ela de branco vestida. São Han e também não resistem a cedências culturais. Pedimos para fotografá-los, eles acedem, são bastante simpáticos e parecem sentir algum orgulho em aparecerem nas fotos com ocidentais. É algo que será comum em toda a viagem. É à medida em que começamos a caminhar no interior desta nova versão folclórica que nos apercebemos que tudo parece bonito de tão falso que é. Betão a imitar a textura e as linhas das paredes de tijolo; chão alcatroado;  a demolição desta área até retirou a aventura labiríntica que, segundo li, era um dos atractivos de visita. Aqui, só avenidas largas e abertas. Do princípio de uma rua vê-se perfeitamente o seu final. Não há surpresas. Tudo controlado.Tenho aqui a mesma sensação de quando visitava o Portugal dos Pequenitos: os monumentos portugueses não estão exactamente ali. Só fantasmas. Ao olho e ao toque, o estuque revela a intrujice. Volta e meia, vemos actores vestidos com trajes de época, provavelmente porque existem encenações regulares para gáudio dos turistas. E claro, parte da mobília são as dezenas de câmaras de vigilância, certamente para avistar as autoridade se houver um tremor de terra. No exacto momento que olho casualmente para uma, assisto a algo que me ficou na retina e espanta hoje aqueles a quem conto. Um dos olhos electrónicos, apontado para o céu, guina de súbito para a direita. Depois para baixo. Depois para mim. Uns segundos fixo e logo de seguida, vejo claramente um flash. Regressa então à sua posição original como se nada se tivesse passado. Confesso que fiquei sobressaltado durante uns segundos. Já vos contei das minhas experiências iniciais nesta China que tudo sabe, mas foi a primeira vez que me confrontei directamente com o papel principal nesta farsa. Não sei exactamente por que motivo me fotografaram. Talvez para arquivos, talvez por ser uma cara diferente na rua. Mas algures, a máquina tem uma alma a controlá-la e escolheu-me como vítima.


Escusado será dizer que o meu passeio pela Cidade Velha ficou condicionado àquele momento. Não ajudou nadinha que alguns minutos depois, enquanto me sentei nas escadas de uma casa dando descanso à pernas, um chinês com alguns 50 anos, rindo alarvemente, começasse a tirar-me fotos à descarada. Máquina em punho, sem qualquer respeito de privacidade ou espaço pessoal, clic atrás de clic. Não demoro a aperceber-me, até porque a discrição se evaporou. Lanço-lhe em primeiro o tipo de olhar que guardo para aquele aluno que, mandando uma piada infantil numa aula, rapidamente descobre que está a segundos daquela tirada sarcástica que não só o fulmina ali no local, como mais tarde lhe causará traumas psiquiátricos que ou lhe custarão centenas de euros em terapia ou o transformarão no tipo de pessoa que passeando na rua, tremerá ao mínimo som. Isto só o detém uns segundos, sem demovê-lo. Parto então para o confronto da maneira que posso. Na lentidão pachorrenta de um vingador, ergo a minha própria máquina e começo a fotografá-lo. Sem colocar o olho no óculo, apenas lhe aponto a câmara. Se tu me podes olhar, também eu, palhaço. O semblante do indivíduo muda. "No, no camera!!", exclama tentando segurar a minha. A sua mão é rebatida por uma lambada da minha. "No camera you too", porque aqui eles só entendem inglês macarrónico. Não sei se ele é turista ou polícia, mas quando se vai embora, olhando-me por cima do ombro, tenha a certeza de que irei descobrir nos próximos minutos. Caio um pouco em mim e sei que fiz uma estupidez: não devia perder a calma, mentalizei-me antes de vir para a China de que encontraria este tipo de situações e a ideia é voltar para Portugal, para as pessoas de quem gosto. É uma asneira enorme e embora nunca chegue à paranóia, todos os pequenos eventos parecem ganhar um novo significado.

E é nesse instante que, uns dez minutos depois do que vos contei, surge uma cara familiar: Michael, o amigo americano. O ocidental que conhece Kashgar como eu conheço o Pisco de Ceira. Sacola verde a tiracolo, camisola cinzenta às riscas coloridas, um sorriso do tamanho do Texas. "Os teus amigos estão lá atrás, estive agora mesmo com eles". Respondo-lhe no mesmo Inglês que vim ao meu ritmo, que alguns preferiam andar às compras e eu não estava interessado em comprar nada. Ah, mas aqui vendem-se coisas muito interessantes. E explica-me que anda por ali à procura de uns produtos alimentares que necessita para uma viagem que fará nos próximos dias. Uma ronda por Xinjiang, dar umas aulas, visitar uns amigos. Está há demasiado tempo na China, diz-me, mas já que aqui está aproveita e conhece. Pergunta-me o que tenho achado da cidade. Das pessoas. Depois de tudo o que passei nestes dois dias, uma pergunta que até então seria simples merece algum tempo de reflexão da minha parte. Uso então a palavra mais neutra que o ser humano utiliza quando lhe pedem uma opinião sobre algo: interessante. Ele sorri de novo e reafirma que sim, que aquela zona pode ser muito interessante. Entretanto, chegam mais portugueses. Isto é tudo muito lindo, mas há gente com fome, e sede acima de tudo. Esteve um dia de sol, abafado, já vai muito comprido. Saímos então à procura de um poiso para alapar, beber algo fresco, simplesmente estar e falar do dia. Alguém o norte-americano omnipresente, que não se faz rogado. Também está a precisar de algum descanso.


O caminho oferece.me alguns momentos de gostoso non sense. Há um estabelecimento que publicita com alegria a venda de pastéis de nata. Imagine-se. Não consigo sequer conceber como é que a nossa tão portuguesa iguaria doce aqui veio parar. Mas ali está, em fotografia e prova viva à minha frente. Entre as lojas desta Nova Velha Cidade, encontro uma onde manequins envergam, veja-se, máscaras do personagem V, do filme "V for Vendetta". Acho que conseguirão perceber a deliciosa ironia. No mesmo capítulo das referências cinematográficas caídas de nenhures, outra loja mostra um mural pintado de alto a baixo. O tema? As caras bem reconhecíveis de Mathilda e Léon, par protagonista do conhecido filme de Luc Besson "Léon". Sinto que, de certa forma, a aparição súbita de Natalie Portman, a mãe dos meus filhos embora não o saiba, é um sinal de que tudo está bem. De que aquele senhor que confrontei era apenas um pervertido qualquer e nada me acontecerá. Caso ele tente algo, aqui está um par de assassinos profissionais ao meu serviço; e um deles bem giro, por sinal. Destinamo-nos o Juyoge, um bar onde a gerência insiste que bebamos mais do que queremos - e paguemos, obviamente, o que nos leva a recusar a oferta - e que fiquemos os treze juntos, mesas e cadeiras puxadas de todo o lado para criar um espaço que acomode o grupo completo. Não é a última Ceia, espero. A conversa desenrola-se durante algumas horas, discute-se, ri-se bebe-se. Os nossos relógio já marcam dez e meia locais quando nos apercebemos de que o dia seguinte nos guarda uma viagem de várias horas. Ainda não jantámos e é isso que nos espera. O amigo americano já não nos segue. Tem coisas a preparar e não viu como era tão tarde. Mas, diz ele com esperança, pode ser que nos voltemos a encontrar. Nunca se sabe o que o destino nos guarda. Se acontecer, ri ele, vai considerar que andamos a segui-lo.

Alguns de nós regressam de imediato ao hotel. Estou inclinado a imitá-los, mas alguns companheiros encorajam-me a prolongar a noite. Vivem iludidos no logro de que sou companhia desejável, coitados. Sigo-os. Damos umas voltas pelas banquinhas de rua que visitámos na noite anterior, mas desta vez em ambiente nocturno. As luzes, o movimento extra, o barulho que não pára e uma população que está a viver quatro horas antes não dão descanso e soltam colorido, vida, autenticidade pelas ruas. Tudo aquilo que faltou à Disneylandizaçao do mundo uigur. O Zé Luís, que conhece bem esta zona, sugere-nos um pequeníssimo restaurante onde vendem espetadas à escolha. É um cubículo onde cabem duas mesas e um frigorífico. Uma senhora simpática mantém um forno a carvão brilhando em laranjas vivos. Cada um constrói a sua espetada, escolhendo de umas montras aquilo que quer comer: há carnes de porco, frango, carneiro, vaca e cabra; queijos, peixe; até doces. Make your own barbecue. Enquanto esperamos, bebe-se algo, que o calor às onze e tal da noite é aquele das sete e tal da tarde. A decoração do local é muito kitsch, fotos de paisagem montanhosa e casas impossíveis, onde carros estão dentro e fora de jardins em simultâneo. M.C Escher de rua. As espetadas chegam e depois de o almoço ter ficado bem lá para trás, metemos algo ao estômago. Quebro algumas das minhas regras quando viajo, nomeadamente a que me tem impedido de me atirar a comida de rua, pelos óbvios riscos que isso representa para o meu sistema digestivo. Mas o estômago quer aquilo que o estômago quer e esta carninha de frango grelhada cai bem a matar. Não se preocupem, este não é o momento onde discorro sobre um dos meus incidentes escatológicos internacionais. Mas ele chegará.

Já é meia-noite e meia quando regressamos ao hotel. Foi um dia bem comprido na suas vinte e quatro horas triplicadas. Ainda ribomba dentro do meu cérebro o barulho do Grande Bazar e vejo nos vários estabelecimentos destas ruas o mesmo espírito dinâmico e vivaz de quem nasceu para trocar o que tem. A meia luz, um deles alberga três homens de barba hirsuta, alguma idade, reunidos em torno de uma cadeira. Não entendo obviamente os letreiros, tento perceber o que se passa. Depois de alguns segundos, e do ruído atroz de uma broca assassina, entendo que é um consultório dentário. A esta hora, ainda está aberto. Incrível. Nos meus primeiros dias na China, mais do que as fotos ou os espaços, impressiona-me a incrível resiliência destas pessoas, com as hipóteses todas contra si, e mesmo assim vivendo, seguindo, sabendo que algo se passa mas fazendo dos seus dias um caminho para frente, para a esperança que não morre de que a vida só pode melhorar depois de o futuro se revelar. Não consigo reconhecer esse espírito em mim, no meu negrume profundo, na minha incapacidade sequer de crer em algo de bom. Quando escrevo isto, semanas depois de ter vivido tudo o que vos descrevi, dou por mim perdido em breu, numa certa escuridão que desorienta e não tem bússola. Penso nos uigures, na sua indomabilidade, nessa força que obriga um estado autocrático a apertar cada vez mais, a ver se explode; e entendo que por muitos edifícios que se destruam e pessoas que desapareçam porque "vão gerir supermercados", a memória é a parte mais importante de uma cultura. O espírito daquele povo subsiste enquanto vos contar estas histórias, enquanto as suas histórias servirem para me transformar e até outros. Isso é algo que, por muito betão que despejem, os Chineses nunca conseguirão transfigurar. Essa é, a bem dizer, a beleza maior de viajar: de certa maneira, estamos a tornar determinadas pessoas e lugares imortais e sempre presentes. Um viajante é uma espécie de feiticeiro de si mesmo. Não esquece. A mesma câmara que vigia, afinal, é também a que guarda o que não se quer saber.

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