quarta-feira, outubro 16, 2019

Fachinação 6: Rotas da Seda


Embora gostemos de dizer que criámos a Globalização, muitos séculos antes de os Portugueses germinarem a ideia de se lançar ao mar semi-desconhecido existia uma ligação permanente entre três continentes que fez andar o mundo. Todos os Impérios da História envidaram esforços - e por vezes, encontraram o seu fim - para tentar o controlo dos caminhos e trilhos que ligavam a Ásia à Europa através de uma rede comercial alargada onde participam milhões de pessoas. Ainda que uma diversidade enorme de produtos viajasse pelas montanhas e desertos, vales e lagos, rios e planaltos, apenas um plasmou na posteridade o nome com que esta gigantesca empreitada ficou conhecida: a Rota da Seda, termo criado apenas no século XIX, mas que reflecte o fascínio que esse tecido de suavidade convidativa sempre gerou no Ocidente. Reflexo de uma inclinação comercial que sempre existiu nos povos nómadas da Ásia Central, demasiado irrequietos para considerarem uma carreira em tarefas mais sedentárias como a Agricultura ou a Pecuária, terá começado por volta do século II antes de Cristo, unificando algumas relações regionais que juntavam povos asiáticos. É muito tempo. Foi alargando na medida da formação dos impérios, aproveitando vontades políticas, ganância económica e de maneira mais prática, o talento de criação de cavalos dos moradores das estepes da Ásia Central. O seu começo na China galgou gradualmente todo o continente asiático, chegando em primeiro onde hoje é o Irão, nos tempos da Pérsia, ao Egipto e à Europa, envolvendo as antigas cidades-estado gregas e posteriormente o desenvolvido Império Romano.

Em Roma, os produtos desta Rota causaram sensação. Depois de conquistar praticamente metade da Europa e o Norte de África, a atenção do Império virou-se a Oriente. A Anatólia em primeiro, seguindo-se as terras em redor do Mar Negro e parou algures no Cáspio. Conta, pelo menos, a historiografia oficial. No entanto, não cala a lenda da legião perdida, soldados romanos que depois de capturados pelos Párcios, foram enviados para as fronteiras mais a Oriente, onde hoje se situa o Cazaquistão, para combater a expansão chinesa a Leste. Depois da vitória da China, a dinastia Han ficou tão impressionada com o comportamento destes soldados estrangeiros que os incluiu no próprio exército, ficando conhecidos como ""Li-Jien". Ou seja, legião. Instalaram-se junto da cidade de Liqian e segundo as crónicas da época, por aí ficaram a viver. A verdade é que cinquenta por cento dos habitantes desta cidade mostram características muito ocidentais como a altura, a cor dos olhos ou a forma dos narizes. Nalgumas aldeias, a tradição dos antepassados romanos é celebrada com galhardia. 


Pela Idade Média, as relações entre Ásia e Europa estavam mais do que estabelecidas, com as cidades italianas a servir de ponto final da Rota que começava bem lá longe no Extremo Oriente. Pelo caminho, certas cidades tornaram-se pontos de luz num mundo onde as trevas da guerra e do obscurantismo se faziam sentir com força em ocasiões: Baghdad e a sua magnífica biblioteca, mais tarde destruída pelo Mongóis; Samarcanda. onde Timur, o selvagem conquistador mongol ergueria o seu imponente mausoléu; Merv, uma das maiores cidades do mundo no século XIII; e claro, Kashgar, a cidade que visitei nestes dias, um oásis aproveitado para ponto de paragem obrigatório nesta rota. Na História eurocêntrica que aprendemos na escola, todo este movimento, um processo de união de povos importantíssimo para percebermos o mundo actual - tanto que o Médio Oriente e a Ásia Central continuam a ser a área de geopolítica mais importante e tensa que existe - é uma nota de rodapé. Mas constitui, na verdade, a primeira grande ligação entre o mundo conhecido de há mais de vinte séculos, uma construção conjunta que envolveu culturas muito diferentes, religiões antagónicas e estados rivais por amor de uma única coisa apenas: dinheiro. Não é poético, mas é verdade. Casam-se dois aguçados fascínios: o do Ocidente pelos produtos exóticos, os aromas das especiarias, o fulgente brilho do jade; o do Oriente pelo vil metal dourado e uma expansão metafórica da sua influência. Fala-se muito do choque de civilizações, mas devia chamar-se a isto a infecção das mesmas, com uma superior cultura oriental a imiscuir-se na estética e letras dos seus parentes europeus. A Rota da Seda, e a sua memória, os seus lugares, são hoje Património da UNESCO e embora englobem apenas três países - o Cazaquistão, o meu Quirguistão e a China - a sua influência espalha-se para a península indiana, a Rússia ou mesmo a Escandinávia. 

Ainda que esses tempos tenham terminado, Kashgar continua a ser um importante local de trocas comerciais. O Grande Bazar de Domingo é um desafio às leis do tempo. Não começa de manhã como todos os mercados, mas sim por volta da hora de almoço. A culpa é do governo Chinês, que insiste em unificar a hora em todo o território... ainda que entre Pequim e esta região do país existem seis fusos horários. Os relógios, em Kashgar, não se compadecem do sol: enganam-no. A tradição que a cidade criou como ponto fulcral da Rota da Seda, na transição entre as terras chinesas e as estepeas nómadas da Ásia Central ainda hoje se reflecte na importância que este Bazar tem. É enorme, um mundo. Só preciso de uns segundos para entender que me aguarda uma experiência bem diferente. Não é que seja a minha primeira aventura neste tipo de eventos. O Mercado de Osh, no Quirguistão tinha, à vontade, cinco quilómetros quadrados e uma infinitude de produtos, pessoas e até estímulos. Mas neste, recai um lençol de caos que não existe em Osh. Ainda que exista uma ordem geral, uma separação por produtos e áreas, a maralha de quem compra e vende funde-se a tal ponto que não sabemos quem é quem. Faz algum sentido. Sendo Xinkiang uma das mais remotas zonas chinesas, este é o único local em centenas de quilómetros onde se pode trocar e vender o que que se queira. E aqui, é mesmo literal. Podem encontrar o que quiserem e desejarem e mesmo aquilo que pensam que não desejam: há mais de cinco mil postos de venda. Calcula-se que a cada domingo, duzentas mil pessoas entram e saem do recinto do mercado, e este abre até durante a semana, embora com uma dimensão bem diferente. Se visitam Kashgar a um domingo, este é o local para se estar.


Usamos a porta Leste para entrar no recinto e rapidamente somos engolidos. Esta é a área da metalurgia e alguns do grupo começam logo a cobiçar woks e panelas. Mas rapidamente tudo isto se mistura com bancas de roupa, onde vejo um miúdo dormindo sobre uma toalha no chão, e uma mesa onde, secando ao sol, escorpiões se preparam para posteriormente desaparecerem no estômago de alguém. Uns metros mais à frente, mais um ponto de comezaina, desta vez churrascos, Um velhote faz brasas usando um secador, paciente, concentrado. Noto que os homens vestem de forma simples. Os mais novos t-shirt e calças de ganga; os mais velhos camisa e calças de fazenda, ocasionalmente usando chapéus quirguizes. As mulheres, independentemente da idade, são lampejos coloridos que passam, tecidos leves, um lenço em redor da cabeça mas sem nunca tapar a cara. É a sua versão de roupa de domingo. Quando começamos a subir uma ladeira, o chão desaparece e num espaço apertado, a multidão comprime-se enquanto verifica as bandas de venda de ambos os lados do caminho. O barulho de vozes que jogam ao eixo torna-se numa redoma que me impede sequer de prestar atenção ao resto. Aperto a máquina contra mim e puxo a mochila para a minha vista. Vejo de tudo, este é o espaço da quinquilharia corriqueira, desde roupa de trazer por casa até brinquedos made in daqui. A maior parte dos comerciantes são mulheres e trazem consigo os filhos, alguns ajudam, outros simplesmente têm o olhar perdido de quem perdeu alguma noção do mundo. Por cima de todas, uma voz repete mecanicamente os mesmos sons, numa linguagem que não é mandarim. Talvez seja uigur. A cadência é a mesma, como um metrónomo, as palavras repetem-se. Que tipo admirável, penso, o pregão é de uma consistência irresistível. Reparo então que na verdade, o que ouço foi gravado previamente e uma coluna portátil lança os apelos para a multidão. Que preguiçoso, penso: onde está a ética vocal dos comerciantes de antigamente? Qualquer dia, até os piropos dos pedreiros são previamente digitalizados.

No topo, a secção de tecidos estende-se por centenas de metros. Aqui, podemos encontrar sedas principalmente, coloridas, padrões lindíssimos e nalguns locais, comerciantes que dormem enrolados nelas enquanto a sombra dos chapéus e toldos os esconde do sol da tarde/manhã. Há cetins, tecido de alfaiate, algodão, gazes, crepes, organza, musseline... Na luz da tarde, brilham como se fossem preciosos, e para estas pessoas são-no. Não compro nada por aqui, mas observo quem conversa, regateia, numa actividade tão normal, tão fundamental para esta cultura que faz da troca o seu modo de vida. Numa conversa particularmente encarniçada, uma mulher de blusa amarela discute o preço de um tecido rendilhado com a vendedora, cabeça tapada por um lenço verde, a dureza da vida na postura, da fade. Não é agressivo, há risos e trocas como um jogo de ténis. Numa loja a pouca distância, instalada num contentor de metal, não resisto a passar a mão por tubos de tecido de seda, com desenhos incríveis debruados a dourado. São de cores escuras, azuis e violetas, também verdes e vermelhos, com estampas complexas que deixam poucos espaços livres. A vendedora observa-me e ao lado, a filha, uma garota que não mais do que dez anos, ajuda com os trocos. Uma blusa branca meio transparente, arejada e uma saia leve cor de laranja são praticamente um anúncio ao próprio produto, um outro tipo de vestimenta de trabalho. Mas o que me rodeia é tudo isto: panos, tecidos, em paredes e pelo chão, pessoas sobre eles e à sua frente, mostrando-mos e a quem passa, cobiçando atenção, entregando o seu tempo para nos convencer na compra. Às vezes, a dificuldade está na escolha e na falta de variedade em simultâneo. Uma cliente pede para que dois tecidos diferentes se transformam num. Nada que demova a comerciante: senta-se atrás de uma máquina de costura daquelas antigas a pedal e resolve o problema. Recordei-me logo da minha avó materna, que fazia da máquina de costura uma arma para mudar o mundo, de como conversávamos, ela idosa de buço e eu criança parva, sobre várias coisas. 


Enquanto regresso, há visões de alucinação causadas pela tempestade colorida dos tecidos, pessoas que aparecem e desaparecem, que se transformam em alquimia. A certa altura, julgo mesmo ver um menino careca a oferecer-me um pouco do ramen que come a partir de um copo de plástico. Apercebo-me que é real, então. Sorrio e recuso. Come tudo, o lambão. Consigo ver então a parte inferior do Bazar. Um imenso mar vermelho de toldos, não consigo sequer contá-los. Um pouco mais à frente, surge o mercado coberto, onde se encontra a grande maioria das lojas. É para onde me dirijo a seguir. Novamente vou na maré humana, sorrindo interiormente. Eu sou tão alérgico a pessoas e a confusão e arranjo sempre maneira de acabar precisamente no oceano das pessoas. De onde estou, as filas de gente são ondas e marés. Alguém choca contra mim e é um garoto que aperta um capacete encarnado contra a cabeça, enquanto bebe uma garrafa de sumo de laranja. Está mais assarapantado do que eu . Chego à principal praça da feira ainda meio confuso, mas vejo ao longe alguns membros do meu grupo que desaparecem numa sombra. Sigo-os e vejo corredores enormes, ladeados por quiosques que só vendem roupa. Estes corredores são cruzados por outros perpendiculares e este é um enorme labirinto consumista. Consigo prestar mais atenção ao cuidado com que cada vendedor arruma os vestuário e por vezes lhe fala. Como se uma relação fosse estabelecida. Nunca estão sós. Ou tomam conta da família enquanto esperam a oportunidade de negócio ou então reúnem-se em magotes defronte da sua banca, ou de outras, conversando com colegas, amigos, passando o tempo, deixando que mais um domingo se escoe. Dou uma curva à direita e sou abalroado. Olho para o chão e um bébé passeia-se num andarilho. Rói uma caneca cor de rosa e em velocidade a mãe vem buscá-lo, pede-me desculpa em uigur, sorri-me. Retribuo e tento fazer-me entender por gestos de que não tem mal nenhum. A minha sobrinha dando-me marretadas com tupperwares surge-me na ideia. Regressam ambos para a sua banca, onde uma senhora idosa, sentada numa cadeira de escritório, me sorri também. Vê-me segurando na máquina fotográfica e gesticula-me jovialmente que a fotografe. Salta então um garoto que mal observa a máquina empunhada, desaparece para onde veio. Brinco com ele às escondidas, finjo que estou a vê-lo, finjo que não estou. Ri muito, ele, mas não o convenço. Acabo por retratar só a senhora, que nem fica a olhar para mim porque logo os meus colegas de viagem caem na cena chamando a sua atenção.

Uma das maiores bizarrias que por aqui vejo são as estampas que existem nalgumas camisolas. Nalguns casos à venda, noutras já envergadas por consumidores. Não só apresentam mensagens preocupantes, como muitas vezes são traduções de chinês para inglês que fazem zero sentido. Uma adolescente enverga orgulhosamente "Femme c'est trés marvail, use me", num recuo de séculos da emancipação feminina e o golpe final na fachada oca de Beyoncé; numa banca, pendurava numa cruzeta, a face de uma camisola pergunta "Ai that girl the one onotgot away?"; há estampas de um Sperman e de um Superman que veste igualzinho aos Spider-man e usas os seus exactos poderes; um adolescente de óculos parece fã de uma marca chamada "The sexy face", conforme a sua t-shirt, acompanhada da inscrição "Never stop studying"; alguém mais festivo incentiva a malta a aplaudir, mas com a infelicidade de ver inscrito "Crap your hands!"; e provavelmente numa revolta contra a confusão do mundo, uma camisola com carapuço brada "Whats so fuck then!!". Mas descubro então o segredo para a felicidade finalmente, a tal sabedoria oriental, quando leio numa outra camisola "I feel happy when I eat a potato". Por fim, tantos anos a viajar compensam. Voltarei para Portugal pronto a iluminar o negrume da vida portuguesa.


Um bocado aos tropeções, reencontramos a saída. Envolveu um desvio pela zona de restauração e a sempre intoxicante passagem pelo mercado da especiarias, em sacos abertos, sem filtro entre elas e os nossos narizes, nada embaladas, vendida ao grama. Frutas secas e especialidades caseiras uigures, algumas parecendo deliciosas, outras um perigo para o meu estômago Quase me senti um herdeiro daquele Gama que agora nos querem ensinar a odiar em certos recantos da intelectualidade portuguesa. As sedas ficaram para trás noutro ponto da minha rota. Existe aqui tanta gente e tanta coisa que é como se esta Bazar não existisse na China. Na verdade, é como se não existisse em qualquer lado. Não tem nação. Quando regresso às ruas de Kashgar, aliás, é como se uma fronteira me alterasse. Continua a existir um aglomerado de gente numa cidade com um milhão de habitantes, mas perdeu-se algo. Uma ligação, um ponto em comum. Nestas ruas, todos andam algo à deriva, cada um para seu canto. No Bazar, há uma linha comum, de quem ganha a vida obrigado a conhecer outros, desconhecidos, e a aprender o gosto disso. Não é à toa que o Comércio foi a actividade económica que surgiu mais tarde. Envolve entendimento, cooperação e acima de tudo, confiança no outro. Nós como seres humanos somos muito, muito desconfiados. Para nós, os estranhos têm má reputação. No Grande Bazar de Kashgar, no entanto, os desconhecidos estão apenas à espera de se tornarem nos melhores... desde que comprem algo. Tal como antes a Rota da Seda uniu Ocidente e Oriente, eu, um português, sinto-me mais perto destes que me são estrangeiros através da simples troca, da curiosidade, da novidade. Falta mundo a muita gente. 


Sem comentários: