quinta-feira, junho 25, 2009

A homenagem devida


Aqui há uns tempos, a propósito da ida de Aquilino Ribeiro para o Panteão Nacional, argumentei que Amália não era grande adição à coisa; e hoje, vou aqui defendê-la como artista. A entrar em contradições, ó homem? Nem por isso, mas vão ter de aguardar pelo final da arengada. Lamento se sofrem de ADD.
Anda aí na moda o disco "Amália hoje". Nuno Gonçalves, do grupo The gift, agarrou nalgumas das camções da marcante cantora e ofereceu-lhes roupa nova. Convidou a sua colega dos The gift Sónia Gonçalves, o vocalista dos moonspell Fernando Ribeiro e Paulo Praça a darem voz ao disco. Fizeram as músicas, arranjaram um guarda-roupa catita cheio de simbolismo e estilo e vieram à rua com uma homenagem a Amália. De repente, redescobriu-se o valor musical do que a senhora cantava. As palavras que entoava pareciam ter estado mortas até alguém se lembrar de vesti-las com roupagem pop e cantarolávele para quem não gosta de passar por uncool quando diz "Gosto de fado". Cantam-se os elogios ao projecto, reconhece-se que afinal Amália até tinha jeito para a música e no meio disto tudo, esquecem-se aqueles que são os principais responsáveis pelo sucesso da senhora, a meu ver: quem compunha para Amália.
Não se pode negar uma coisa: aquela mulher era profundamente complexa, dividida entre dois mundos. Por um lado, o regime salazarista tornou-a num símbolo do Portugal do Estado Novo; por outro lado; rodeou-se de artistas que eram esquerdistas degenerados e que foram perseguidos pela PIDE. Amalia ajudou a libertar alguns, como Alain Oulman. Para além disso, havia fados amalianos que eram os hinos que os comunistas gostavam de ter e nunca tiveram. Amália era uma voz poderosa, mas as ideias que veiculava, e o fado que simbolizava estavam para lá do fado e daquilo que a imagem popular retrata dela. Acho que este projecto, não negando que tem coisas boas, acaba por passar por cima disto. Não é obrigação deles claro, é só um disco. Mas centrar tudo em volta de Amália e esquecer David-Mourão Ferreira, Alain Oulman, Ary dos Santos, entre outros, é o mais do mesmo. Amália não saiu do nossos incosciente. Aliás, ela vai estar sempre naqueles que a presenciaram no seu auge. Mas a ideia de que ela era a música está errada e o que este projecto vai fazer é perpetuar isso.
Para quem aguentou isto, justifico o que disse no primeiro paragrafo: Amália está no Panteão nacional como um símbolo fabricado e não como representante de um valor superior. Eu valorizo mais o talento criativo do que o talento natural. É defeito meu. Ela foi uma extraordinária fadista, porque ao contrário de muitas daquelas "novas fadistas" (que andam aí a surgir em geração espontânea...) conseguiu dar entrada a algo novo num género musical que tem tudo para ser repetitivo, chato e monótono. Mas essa obra não foi dela: foi de homens cujo nome é citado em rodapés. O citado Mourão-Ferreira escreveu um notável cruzamento entre Brasil e Portugal, no fado "Barco Negro" (que é das minhas músicas portuguesas preferidas de sempre), anos antes de Fernando Ribeiro andar a tentar Tom Jombimar-se ele próprio no álbum "Amália Hoje".
Para além do mais, há uma coisa que admiro nela: era alguém extremamente deprimido, de forma constante, e àprimeira vista sem motivo algum. Consigo-me identificar. com isso. Mas tenho a certeza de que nem nunca irei para o panteão, nem se farão álbuns em minha homenagem. Só boatos.

1 comentário:

Post-It disse...

Hi miúdo...Tudo estava muito bem, uma argumentação muito esperta, até ao último parágrafo...
Se há coisa que não percebo, e aí é defeito meu, é um certo comprazimento na dor, algo very tipical português ou pior, nos tempos que correm, pós-moderno.
Admito a existência de "almas atormentadas", mas esta democratização sem precedentes do mal de vivre, parece-me algo difuso e endémico. Desubstanciado...
(Hei, estou a generalizar e não a personalizar, ok?)