A minha mão sempre foi mais leve na tua. Mesmo quando tudo o mais pesava, e agarraste-ma no que de mais pesado nos pode cair em cima, os dedos eram penas, numa palma de algodão e tudo o resto era ar. A tua pele sempre transformou a minha carne em vôo, em algo até mais leve do que o céu. Pelo menos, era assim que me enganava. Há qualquer coisa de mentira e de ilusão no amor, e é por isso que é mágico. Quando se ama, concede-se o engano e volta-se ao tempo em que a nossa criança acredita em histórias que não fazem sentido. A ideia de que duas pessoas se possam entregar uma à outra é tola no absoluto, mas é o desafio do impossível que nos precipita na leveza de duas mãos que se agarram. A tua agarrada à minha era isto: um faz de conta muito sério, para mim e para ti, tão real quanto a densidade das nossas bocas juntas, acrescentando linhas a esta história. Na mão, a linha da vida; na boca, o desalinho da pequena morte. A memória dos teus lábios nos meus é um estado de graça, apesar de tudo. Desconheço para onde vai o amor quando some, mas comigo nunca chega bem a desaparecer. Desconfio que se reúne num pequenino ventrículo que bombeia o sangue mais depressa quando me cruzo com uma imagem tua. Empurra com as suas mãos, agora pesadas e fortes, essa vida pelo meu corpo que se torna pequeno demais para ti, e para o espaço que nele ainda ocupas. Nunca se tem realmente alguém, mas é-se morada desse alguém, e ainda não foste embora, mesmo que já não estejas. A tua leveza está nessa capacidade de seres com toda a força aquilo que não podes.
Nunca te cheguei a descrever, porque para mim nunca foste: eras o efeito. Ainda és. Algures na tua cara reside um ponto que trata de mim como se fosse precioso, e esse ponto é meu. Não sei se o vês, se alguma vez o viste.Tratava de mim e lembrava-me de como pode existir algo fora das tripas do mundo. O amor sente-se, aliás, mais nas tripas do que no coração. Naquele novelo de fio desfiado que me percorria o peito em longitude de cada vez que sorrias. Sinto mais saudades do que em ti é grande, e para os outros pequeno. Da tua maneira de fazer birrinha, das pontas dos teus dedos a fazer cordéis dos meus pêlos, de um sorriso que era uma cama e da cama onde acordava outro sorriso. Sinto saudades das tuas sardas ao sol, e daquele único cabelo branco do lado esquerdo, e não vou negar de cada vez que caías comigo eu não conseguia acreditar que alguém aceitava a minha dor como uma honra ou uma benesse, como algo que é mais importante do que a sua própria habilidade de dar ao mundo um sentido através da felicidade. É do pequeno que sinto mais saudade, não de tudo o resto. O pequeno és tu, toda cheia de mínimos legos de personalidade, colados e indesmontáveis. Como a própria ausência do amor, uma força imparável. Um glaciar com lava dentro. Tu, afinal.
Não sei mesmo como é que as palavras te podem alinhavar. Nem sequer se te incendeiam no fogo eterno que transformaste em forma humana. As letras são apenas sons que se fazem, e quando se colocam numa página em branco, servem apenas de batuque, num código morse entre pessoas que não te conhecem nem te viram, e ainda assim se vêem forçadas a apertar a mão à força da impressão que me deixaste. Não é justo para eles, mas é aquilo com que menos importo. Porque não há justiça, e nós sabemos. Porque estas coisas acabam quando acabam, e quando não existe nada mais a pará-las a não ser um lapso de tempo que as trava. Ambos vamos ao chão e quando levantados, no chão estamos pois de um céu descemos. Regressar é a pior parte do fim. Ninguém nos pode tirar o caminho que se faz, mas a viagem é onde se quer estar, e voltar nunca faz parte do plano. Não posso dizer que te deixei, ou que me deixaste. Apenas que voltei, e que embora tenhas partido, sei que voltaste, de qualquer forma; não sei se onde querias estar, mas pelo menos onde precisas de reiniciar o caminho. Custar-nos-á caminhar por outra estrada que não a do nosso sol e não sei quando estarei sequer preparado para te deixar na tua. Saber e fazer são verbos muito diferentes de aceitar. Mas lá chegarei, pernas ao caminho e depois das lágrimas, fica o suor.
No entanto, o pedacinho do ventrículo continua a ser teu, tal como um espaço num pequeno canto da minha cama onde não me coloco. É o teu espaço, onde a persistência da memória esquece tudo o mais, e estou contigo porque me deixas e me queres. Na hora do lobo, podemos ser as lobas um do outro, numa alcateia de beijos a uivar dentro de mim e de ti.
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