segunda-feira, setembro 22, 2014

Nem aí, nem aqui


A realidade adiantou-se-me, porque me atrasei na tua cara. A humidade desceu sobre a terra, e o peso da noite deixava os humores alheios exaltados. Mas à volta daquela mesa, mesmo enquanto as tuas palavras criavam a distância entre tudo o resto e o nosso espaço, a tua cara atrasava-me o olhar. Tentei desviar, dando aos meus olhos a tarefa de se entreterem com qualquer outra coisa, fosse procurando cores em paredes alheias, ou mesmo dando-lhes dentes para que devorassem a lubricidade que se sentava numa ou noutra cadeira, confundindo a noite com qualquer outra coisa indefinida, mas fútil. Mas o único quadro tinha como moldura a linha de circular, sem princípio e fim, e com tudo o que há de mais importante no meio: dois olhos sendo árvores, o nariz um socalco que recebia a luz de uma lua que nem as nuvens conseguiam afastar da tua pele, e na tua boca eu imaginava uma língua em forma de barco, que me conduziria ao estuário onde desaguam os teus lábios.

Pensando na tua boca, parei. O desconforto afastou os meus olhos com os seus dedos, porque de súbito fui tomado pela imagem da minha boca na tua, e de como a tua cara seria tapada pela minha, e a crespidão estragaria precisamente esse quadro que vira. A minha presença em ti, mesmo que só de poucos centímetros acima da epiderme, soava a implacável blasfémia; e esse templo de esoterismo mágico, de segredos cabalísticos em doses cavalares, pareceu-me de súbito passível de ser conspurcado pelo que sou. Pelo minha imperfeição, pelo que sou agora, naquilo que me tornei, no desarranjo que me leva a olhar para a tua face como se olha para uma montanha que o sol acabou de beijar, depois de ter dançado com a lua um tango de amor repetível. Sem que me repelisses, eu próprio fechei-me, e recuei. Os meus olhos pregaram-se na madeira da cadeira; mas a tua cara continuava fixa, os teus olhos deixando-me em parafuso, a tua energia em curto-circuito na minha inabalável vontade. Entre o que olho e o que desejo, está o que posso; e é um facto que posso pouco contra a tua presença.

Levantar-me era pecar contra mim; avançar era pecar contra ti; rogar por ti não se faz a ninguém; resta-me esta confissão, de quem quer e não faz. O meu acto de contrição é olhar para a curvatura do teu rosto, marcando as pequeninas rugas que o teu cabelo, como uma cortina, desvela e deixar-me viver na pequenina dor do desejo que não se cumpre, da vontade sobre a qual não se age, e naquele arrependimento que os dias tornam num bloco de granito inamovível, que já rolou monte abaixo e não se pode tirar jamais porque está lá e não se pode viajar no tempo para deslocar. Na noite que avança, a tua cara é tudo isto, mas é também a esperança de que se consigo concentrar-me no que dizes e no que mostras, é tempo em que não penso em quem já não está. Concentro-me no que existe de facto, e não no que podia ser. Tento convencer-me de que pensas o mesmo. Aliás, passo o resto da noite nessa ingrata tarefa, e invento fábulas que permitam às pontas dos meus dedos encontrar um final feliz no começo do teu toque. Acontecem, de quando em vez. São pequeninos contos, mas todas as grandes histórias começam com uma frase.

A tua cara já foi um ponto final. Agora, é interrogação que me exclama uma pergunta: se der um passo, tropeço? Se der dois, corro? Ou fracturo na mesma se ficar parado, a olhar, em vez de reinventar o meu ciclo vicioso cara a cara com a nascente das coisas secretas?

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