terça-feira, setembro 16, 2014

Glaciar



A neve não fala, mas existem lá palavras. Não me interessa procurá-las, porque saí de casa descalço. As botas estão arrumadas na prateleira da entrada, e de lá não voaram porque voei eu porta fora, oprimido e pressionado, saí a correr e a arfar, inspirando o ar que é uma navalha, berrando-me que se pode, mas enquanto as pernas se colocarem uma à frente da outra, pode-se até sentirmos a mão com que o corpo se agarra pelo ombro e nos verga à força do limite. O corpo desliga-se e cai na neve, e fico, noite cerrada, a ver as luzes lá ao longe e a não ver o que mais me rodeia. É a escuridão; e é a noite também.

Lembro-me de estar estendido e de a cama ser o mal menor. Lembro-me de os lençóis serem pedra, e de me pesarem. Lembro-me da carta que me escreveste, e talvez a metamorfose tenha começado aí. Não era suposto. De facto, nem a carta era suposta, e a hora em que decidi vasculhar o bolsos do casaco estava adiantada em relação a mim mesmo e ao que consigo aguentar de ti. Consigo, mesmo com o frio a congelar-me os lábios, retroceder todos os passos, desde que me deixaste o casaco à porta de casa, numa caixa de cartão, até ao dia em que me "esqueci" dele em tua casa, e esperei que o trouxesses, mas passaram dois anos e não te lembraste se calhar. Ou se calhar, esqueceste-te das recordações, tudo propositadamente, e quando se esquece de propósito, é sem querer que nós tenhamos um. Não sei por que motivo o casaco ganhou o efeito boomerang. Na carta, não vinha nada disso. Só palavras e obscuridades, mais breu do que a noite que começa a cobrir-me; e para além da carta, o casaco trouxe uma pequenina dose de navalhas, em todo o tecido. Mal o agarrei, uma delas começou a rasgar-me o que tenho cá dentro e não é feito de músculos. Sangrou, mas ninguém viu. 

Olho para trás de mim, e a casa está a uns trezentos metros. O frio congela-me, mas se calhar renasci frio quando te foste embora, e aguento bem. A tarefa olímpica de me levantar corre bem. Os meus pés ainda respondem, e à vez, tentam levar-me para a casa. O vento pára, de repente. É como se a montanha percebesse que tudo tem limites, mesmo a dor, e que nos compreendemos. Certamente que, quando a neve se deita sobre ela, a montanha deve desejar que esta desapareça, e a deixe nua para que se enamore do sol e da lua, numa promiscuidade milenar que não posso conceber, mas aceito, porque os meus pés fazem agora parte dela. Cada pegada minha é calor que deixo na montanha; e cada metro de terra, na superação da adversidade, é quente em mim, na vontade de não sentir o teu peso de nenhuma maneira, e de nem pensar porque é que um caixote com um casaco pode virar a vida de um homem ao contrário como se fosse um terramoto, ou uma manápula gordurosa e viril que prende os tornozelos e me agita. Por sorte, desta vez caí sobre neve.

Os últimos metros são vertigem. A porta luminosa esbate e por momentos penso não conseguir. Uma vez transposta a ombreira, podia desmaiar. Não o faço, ainda assim. Já te dei alegrias demais nada vida e porque a escolha é minha, a minha mão pega no cutelo com dois braços e a tua forma, e lança-o à tempestade. Quando cai, a terra treme. Ou então, são só os meus pés, aliviados, ou mesmo com saudades, ou então são as duas coisas, e enquanto te quero beijar, também quero abraçar uma montanha sem ti, numa casa só minha. Ambas se misturam, mesmo quando não podiam estar mais separadas. Junto-me ao que resta de mim, de outras bulhas e pulhas, e fecho a porta.

Lá fora, o casaco cobre-se de neve e a montanha, no seu processo lento de deglutição das dores de parto do mundo, dá paz à tua alma. Mas como sempre, o que a montanha leva acaba sempre por devolver. Quando fecho a porta, não tenho a certeza de que abra a minha para sair. Talvez. Não sei. No entretanto, enrolo-me num cobertor e o sofá vai-me contar uma história. Era uma vez eu e tu. Viveram, e felizes. Foi para sempre, porque nada acaba realmente: apenas se troca.

Sem comentários: