terça-feira, outubro 28, 2014
(Uma gaiola de ideias)
As horas de mistério não se resolvem com os ponteiros. Escondem-se ainda mais nas engrenagens do relógio, e não saem de lá até que aceitemos o tempo como paciência que responde às nossas inquietações. Chego ao equinócio de estações baralhadas, procurando a lenta mudança com sofreguidão e fome, mas não existe neste tempo qualquer banquete: petiscam-se os dias, e espera-se que grão a grão se encha o papo de contentamento trocado. Há dias onde estou bem aqui, evitando-me um quarto nas maçãs de Julho, e esses são os melhores. Esquecer é a parte mais importante da memória, apagar é muito melhor do que guardar e despir as palavras dos seus casacos afiados deixa-nos protegidos contra a anemia da dor; e de todos as vezes que a cama é uma rampa de lançamento para a incógnita do que virá, sinto a vontade de procurar o que tenho e herdei, mas em tons de novidade. É estranho como habitam em nós tempos diferentes, enigmas irresolúveis e um odor a velocidade ilegal de todas as vezes que o vertiginoso poder de nos afundarmos em nós resulta na descoberta de um outro canto de paragem obrigatória. Somos cidades: cada memória, uma casa; cada hora dessa memória, um beco; cada minutos dessa memória, pedras de calçada; e o infinito da lembrança são todas as luzes que na noite do dia se acendem e tornam o alfabeto dos olhares caídos em poesia das cores e prosa da pele. Existir é um ponto de encruzilhadas e cada uma delas cobre-se de horror e espanto em quantidades que não cabem no corpo que se arquitecta em estruturas pós-modernas, sendo que o moderno é não querer lembrar, não querer sentir, e o corpo está bem para lá disso, estás em pós, sem fazer pó do que nos recusamos.
O relógio é o meu corpo, que tem para o tempo a dívida de ser o máximo. O que está dentro do meu corpo, e que o tempo não vai corroendo em pequenas mordidelas ferrugentas, pertence ao que não se pode sequer contar, e só de tentar descrever sem parecer ridículo; e nessa confusão de não saber estar sem conhecer, adivinha-se e erra-se, e volta-se a tentar, e enquanto não se perceber que viver é uma série de passos, e não um plano, a dor é uma poltrona com algemas. O tempo tem várias moradas na cidade. Procuro a minha, e aquela que não sendo minha será um dia.
As horas de mistério são por isso nómadas, e serão sempre de mistério porque não têm respostas: apenas adivinhas em formas de respostas. Por isso mesmo se agrupam maratonas de letras sem que se chegue realmente ao final. Corre-se, apenas; e as horas corridas são as únicas que se aproveitam, ainda que não se entendam.
sexta-feira, outubro 24, 2014
Num outro planeta
A casa na floresta criava raízes sem código postal, e durante todo o ano nem sequer desfolhava. Vivia apenas em dois dias anónimos do calendário, quando Ele chegava do Sul e Ela do Norte. Era como se a realidade abrisse um rasgão, e Eles sem pedir licença entrassem e se encontrassem na casa sem qualquer tipo de indicações. Não era combinado, não era falado, mas acontecia, simplesmente. Um pouco como a casa. Ele e Ela tinham-se conhecido quinze anos antes, num concerto. Ele ia sozinho, Ela com duas pessoas. Uma delas era o marido, que desfiara no novelo de tempo nós capazes de obstruir a maior das aberturas. Viviam há dois anos, e já pareciam trinta, mas volta e meia gostavam-se e sorriam-se e trocavam banalidades comuns, e isso chegava-lhe. Não lhe interessava que o marido não conseguisse distinguir Bela Bartok de Bela Lugosi. ela era a sua bela, e isso chegava-lhe. Pelo menos, até vê-lo. Demorou, estava três filas à frente. Muitos ali pareciam viver a música, mas apenas ele se sentia à vontade o suficiente para lhe chamar existência. O movimento do corpo era um avião para fora daquele espaço, e foi a primeira vez que se cruzou com ele, algures nos céus onde ambos repararam que a intensidade é uma apresentação melhor do que o olá. Olharam-se, ele não voltou a ver o palco, e estava sozinho e ela só acompanhada, e quando os lugares da sala desapareceram só ficaram eles e uma redoma de som bandido na transumância dos afectos. Findo o espectáculo, o pretexto foi simples: Ele percorreu todos os lugares só para chocar com ela. Disse a si mesmo que era simplesmente para tocá-la, mas mais tarde pensou que se não lhe chegasse a tocar, era como se Ela fosse tão vaporosa como as notas, e sobrasse apenas como o breve produto de um abdominal da memória. O marido falava baboseiras e mais interessado no palco do que no espectáculo, não reparou quando Ele deixou cair um cartão nas mãos dEla, e nem lhe disse nada, mas Ela soube logo, e roçou com o dedo na perna dEle porque queria agarrá-la e fazer dela um instrumento de percussão, e viver na sua intensidade, na esperança de que não houvesse maneira melhor de sentir a música do que interpretá-la no corpo de alguém que a vive.
Telefonou-lhe no dia seguinte. Ouviram as suas vozes, mas as palavras ultrapassaram-nos. Tudo era demasiado veloz, e dois dias depois encontravam-se, Ela descobriu que ele também era casado, com uma mulher que não dizia baboseiras, mas se babava por banalidades de vez em quando, o que o aborrecia banalmente. Não se conheciam, mas sabiam-se, desde o momento em que sorriram à mesa e sentaram as vidas num copo, e meia hora depois, confessavam intimidades depois de terem sido íntimos. Uma vez no carro; outra no parque. Ambas sem música, ambas sinfonias. Bateram palmas um ao outro, beijaram as tábuas do palco, e nesses beijos encontraram mil e uma razões para mudarem tudo ficando na mesma. Os lábios ganham coragem, mas não a devolvem, e por isso nunca se atreveram a fazer par. Sabiam apenas que não conseguiam estar no leito do rio sem saberem que havia no meio aquela ilha; mas por outro lado, viver na ilha seria sempre curto pelas inundações que acontecem quando chove demasiado e a ilha é limitado espaço de protecção.
Há uma certa segurança na banalidade, disse ela. O medíocre é a nossa referência quando a vida nos entrega moedas de lata e queres comprar o que não podes. Compras o que vai chegando, e se tentares saltar demasiado, perdes-te e nem sequer cais no chão.
E Ele percebeu então que nunca seriam ambos. No entanto, podiam dar-se ao luxo de se enriquecerem uma vez por ano, pensou, e disse-lhe, e ela concordou. Mais do que uma vez seria tortura, e menos era apagar esta batota, e há que trapacear de vez em quando, só para saber que os limites da vida foram feitos para se saltar à corda. Naquela noite, naquela altura, deitaram-se a perder sem que tivessem algo mais a ganhar que não fossem dois dias. Apenas e só, e há quem não se perca por uma vida inteira. No meio da cobardia, dois dias era um grito de coragem, um incentivo a serem mais. Mas nunca foram mais, porque a vida é muita vezes pensada por fases, quando se tratam de momentos. Eles preferiam momentos ocasionais a um nada possível. A certeza do pouco e a incerteza do muito são irmãos gémeos e vestem de igual. No entanto, um calça sapatilhas para correr, e outro escolhe sapatos na ilusão de que a boa aparência é um estado civil.
Descobriram que se faz muita coisa em dois dias, quando a afinidade das pupilas dispensa o tédio das palavras. Caminham descalços, e deitam-se no encalço das árvores, e das folhas. Não entram na casa antes de fazerem uma casa só para eles; e quando abrem a porta, é para se deixarem do lado contrário: Ele joga às escondidas com o lóbulo da sua orelha; Ela perde no macaquinho de chinês de cada vez que os seus lábios se põem a jeito no seu pescoço saliente. Emigram um para o outro, e um dentro do outro, e quando estão dentro é como se assistissem de fora ao mesmo tempo, e se percorressem como um carrossel de prazer, aos solavancos, mas cravado e veloz, onde se agarra com força e se grita como se o prazer fosse igual ao medo, e no final se respira de alívio e se repete em cada investida, e em cada vez que ela se aceita como a que gosta de ser fodida várias vezes, até sorrir muito para lá da casa e da floresta, e Ele ser aquela sinfonia intensa que a atraiu, e que de cada vez que ela o segura, todo ou às partes, treme nela uma febre mercurial que não tem cura, só cuidados paliativos,que vão segurando as suas pontas e não são nem banais nem medíocres: são a vida que ela gosta de experimentar sem viver. Aquela casa é redução da existência às unidades básicas: respira-se, come-se, fode-se, dorme-se e repete-se. Por vezes, come-se e fode-se em simultâneo, e nem isto é complicado. Lá fora, até ler ao final do dia é complicado; e de todas as vezes que Ele vai jantar a casa dos sogros, lembra-se sempre de uma feiticeira de joelhos a transformar todas as equações numa conta simples de somar. Ela guarda sempre para 365 dias um em que não tem outro remédio senão declamar poemas de gemido enquanto procura saber se se equilibra tão bem de gatas como em pé. A resposta é não, mas há beleza na queda, uma longa queda de dois dias que termina mal trancam a porta e escondem a chave no buraco da árvore até para o ano. Até se encontrarem num par que é ímpar, e voltarem a ser apenas átomos simples em choque incandescente, no universo daquela casa, deixando para trás poeira e faísca. Ali, durante dois dias, ardem, para que não se apaguem de todo durante os restantes.
São outros; e ser outro é, nos intervalos de se respirar, a reafirmação do que somos sem conhecer.
sexta-feira, outubro 17, 2014
Procissão dos passos
O luto tem cinco fases, segundo alguns entendidos, mas saltei algumas, acho que todas, e estou num local onde nenhuma se aplica. É estranho ser obrigado a viver duas perdas, mas se custa ao início, alturas chegam em que não se tornada complicado escolher. Ambas seguem em frente, mas uma delas é dever e a outra uma escolha ocasional, de entrega a uma dor voluntária que mantém feridas abertas, mas prontas a fechar, com vários pontos finais parágrafos. Faz-se do passado onde habitas um gerúndio, mas no interior, vais-te tornado pretérito perfeito quando um dias foste mais do que perfeito, mesmo depois de já te ter enunciado no condicional, que é a segunda das fases. Num ponto, tornar-te-ás indicativo de conjuntivos, e aí saberei que não és mais um verbo irregular, e que com regularidade te posso conjugar sem qualquer medo de errar no futuro. Não é uma fase do luto, mas também se vive, tem regras como a gramática e predicados que só eu, como sujeito da acção, posso determinar. Sinto de momento que posso pensar em mais do que és, e isso é bom. Certamente no teu canto, trabalhas noutras coisas, e eu também, pelo menos em quatro cidades que cabem num escritório. São passeios onde circulo sem medo, ajudam-me a evitar buracos, e acima de tudo a não cometer erros ortográficos. Sinto-me melhor do que pensaria. O bom nas situações limite está mais no limite do que nas situações; e esse limite é bem mais longínquo do que acreditávamos. A minha capacidade de aguentar dor é muito maior do que me dava crédito, embora haja momentos em que sinto que um metro e vinte de pernas é tão metafórico que vira figura de estilo. Esses momentos passam.
Textos outros há que já só contribuo presencialmente duas vezes por semana. Já nem vejo o local como cemitério, mas de cada vez que entro imagino um recreio escolar. Já fui professor, sei como é. Em vez de campas, vejo carteiras; os alunos têm o seu nome escrito e há faltas de material. Em vez de imaginar o meu pai deitado, está bem sentado, levantou-se da carteira e tem espaço, tempo e acima de tudo vigor para conversar com velhos amigos que não via há muito, inclusivé com o Nana aqui da frente, que, coincidência, está apenas ali a duas mesas, e são quase colegas de carteira. Sinto que em vez de esperarem pela eternidade, todos estão apenas a passar o tempo, e que a rebaldaria começa precisamente quando ninguém vê, nem arrasta a sua tristeza justificada pelo chão calcetado. Reúnem-se como noutros tempos, e voltam a ser, mesmo que não sejam de facto. A morte é pouco isso. Só se deixa de viver quando o nosso nome passa a valer tanto como o pó, e eu sei que o seu nome continuará a dourar durante muitos anos, pelo menos enquanto um de nós que o conheceu for vivo e puder falar de proezas, desgraças e até marretices. A soma do peso de um homem é isso, o que fica para trás e que se mantém à frente, Uma vida não se apaga com os músculos, mas é ligamento para o esqueleto da nossa memória, células nervosas que ultrapassam a bioquímica e numa outra realidade voltam a viver onde nunca puderam estar. Quando estou ali, à tua beira, é isso que imagino. Que de facto a história continua, e não acreditando em planos e cidades divinas e segundas oportunidades, os meus olhos, sinto-o. Quando fecho os meus olhos, vives uma Páscoa. Não tens qualquer cruz, e at+e sorris. De pé, volto a ouvir palavras da tua boca, para dizer que não me penteei. Perguntas se por acaso não perdi a chave do carro, e desta vez não o fiz porque guardei-a num sítio, como sempre me tinhas dito para fazer, e nem te conto de quando há uns dias fiquei trancado a partir de fora. Perguntas onde estacionei, e ele está mesmo ali, tens a certeza que consegues andar e tens bem, até procuras am redor uma barra para fazeres umas elevações, a marca de domínio másculo que Natal sim Natal não gostavas de nos oferecer. Caminhamos para o carro, e só paramos quando atravesso o portão e tens de ficar ali, só porque algém te pediu a ajuda e como sempre, não podes negar. Depois ligas-me, e venho buscar-te. Por certo, estarei aqui mal me digas algo. Nem dizes adeus, mas despedes-te com um ar certo de que compreendo, e voltas as costas, num passo calmo e forte, que põe qualquer alma penada em sentido. Eu peno e sinto-o. Quando chego ao carro, não estás lá.
É esta que me custa mais, tanto que não me custa porque me escondo quase sempre.Só aqui a dor regressa para me forçar as mãos, e para me colocar tudo em perspectiva, a perda e as perdas, o que se perde realmente e o que, no vórtice do ser, apenas já não se tem. Existir é fluxo, tudo a passar e só fica o que se vive. A passagem de uma fase para outra descobre cantos e recantos e aquela velha ideia de sermos realmente muitos é a nossa realidade. Perder é ganhar, de facto, nem que seja comichão. O limite da nossa expansão pode estar nas ilhas dos bem aventurados, e a boa aventura surge quando tudo o mais está perdido, e a única alternativa é deitar o barco ao mar e até aceitar que o proibido está implícito na fronteira do que aceitamos como capaz. Um passo em frente pode ser tropeçar num tesouro enterrado, inesperado e que vai dando ao luto cores alegres, festivas. Um não tem de se ver negro para fazer o funeral da dor. Basta apenas que aceitemos no palco as reviravoltas da pequenina faca que carva os nossos trilhos num mundo de madeira, um pouco como aqueles pequenos mundos guardados numa certa gaveta de uma mesa de carpinteiro onde aprendi a chorar sem uma lágrima.
segunda-feira, outubro 13, 2014
Votos públicos
Neste sábado que passou, tive o enorme prazer e honra de ver uma das minhas incontáveis bocarras a transformar-se num momento de potencial humilhação pública. À mera sugestão de que poderia ser colocado defronte de uma plateia a debitar coisas sobre um personagem histórico português, Viriato, sobre o qual apenas li umas coisas em livros diversos, um amigo que lançou um livro que envolve este poderoso símbolo da resistência, e tomou a deixa para me pedir se não podia, então, passar por expert noutra coisa que não seja fazer figuras de urso. Encurralado pelo pedido sincero e simples, não tive como dizer que não, e foi assim que dei por mim em Viseu a participar num evento que nada tem a ver comigo, e tudo tinha a ver com a figura principal do escritor, cujo entusiasmo era visível, o orgulho indisfarçável, e a ingenuidade da fé que eu poderia contribuir, de alguma forma, para elevar a fasquia do momento um dado adquirido de cada vez e que me olhava com aquele sorriso tonto de quem vai depositar no mundo um labor que sai de nós. De caderno à frente, com uns rabiscos e anotações, lá me pus a falar sobre pastores e guerreiros, sobre montanhas e montes, sobre rótulas para sempre perdidas e oportunidade que devem ser não só agarradas, como calcadas. Palmas choveram, certamente para me calar e interromper uma torrente quase metralhadora de factos, piadinhas e até a proeza de recorrer a "Breaking bad" a propósito da expansão romana na Península Ibérica. Em suma, não comprometi, que era sempre o meu objectivo. Sessão de autógrafos a correr, compra-se um exemplar para guardar numa lista de leitura que por agora deverá estender-se, pelo menos, até aos Cárpatos e num aperto de mão, o novo autor literário lança-me uma questão que tenho ouvido e lido de há alguns meses para cá com mais insistência, mas que está presente desde que uma professora de Português me convenceu de que tenho algum jeito para tecer tapetes de Arraiolos de letras: "Então, quando é que escreves um livro?"
A pressão existe, não é nova. Não posso precisar quantas vezes escutei este desafio, mas foram as suficientes não só para tremer perante o projecto, como também para me orgulhar desse encanto que a minha escrita pode causar no comum cidadão. Numa pausa, deixem que agradeça a toda a gente que me lê, aqui e noutros formatos. Sois todos gente que vive na pacatez da vida, e durante alguns minutos entregam-se aos meus delírios. É corajoso, mas não só: os comentários que me fazem a seguir, os likes no Facebook e o desejo ocasional de saber quando é que sai próximo encorajam-me. Confesso que não comecei a escrever para impressionar ninguém em particular, mas nos últimos meses, também porque comecei a sentir a minha escrita a evoluir para um nível cada vez maior de pureza, sensibilidade e transparência, passa-me pela ideia o que poderei provocar nos outros, nos seus sentimentos, até se aquilo que cravo numa página virtual se pode desfolhar em corações reais.Há qualquer coisa de muito reconfortante nas reacções dos outros, no seu gosto, no seu empenho em permanecer na órbita da leitura que proporciono, como se fossem pequenos planetas em forma humana que tomam as minhas linhas como asteróides potenciais. Saber que já provoquei lágrimas a alguém é embaraçoso, mas agradável em simultâneo; ler que as patetices que me ocorrem nos recantos da noite conseguem, de facto, ajudar alguém faz-me sentir menos pequenino.Quando toda esta curta multidão me tenta convencer a escrever um livro, não é que me abane, ou sequer me sinta obrigado a fazer disso uma missão. Deixo cair a sugestão para um canto qualquer da cabeça, e lá fica ela, a marinar. Eu respeito muito o acto de parir um livro, como objecto de eternidade e montra de mim mesmo.
No entanto, naquela apresentação, enquanto ouvia o meu amigo falar, começou a surgir aquela pequena inveja que só aqueles que sofrem de megalomania intelectual, sem no entanto o admitirem abertamente poderão perceber e aceitar como vulgar: a ideia de que alguém tinha lançado um livro e eu passara dez anos da minha vida com ideias vagas e preguiça tão latente que me colocaria num clube com João da Ega e Carlos da Maia. Pensei em várias coisas, muito na dor que permitia continuar aberta para me inspirar e de como um blog é um reservatório pequeno para acolhê-la, pensei no meu pai e de como seria triste e uma vitória em simultâneo poder deixá-lo viver uns anos mais entre nós através de páginas de papel. Numa neblina, num fogacho que pode até apagar-se, a ideia de arrancar de mim qualquer coisa de minimamente editável incomodou-se e não se deixou tapar. Manteve-se e mantém-se por aqui, e obrigou-me, mal cheguei a Coimbra, a recorrer ao caderno onde anoto todas as ideias, por mais incipientes e diáfanas que sejam. Surgiu ali a febril procura por uma desculpa não para fugir a algo que toda a vida me rodeou, como uma matilha de desejos, mas precisamente para finalmente me colocar numa rota de colisão com um dos meus maiores receios: o fracasso.
Faço aqui então, a todos vocês que me incentivam e que foram, lentamente, plantando a ideia, a promessa de que no espaço de dois anos tentarei escrever um livro. Não me quero comprometer a editá-lo, porque isso são outros quinhentos, mas pelo menos a colocar, de fio a pavio, um tapete para todos espezinharem ou limparem os pés com respeito, entre uma ou outra gralha que me escape como aqui sempre acontece.Nem sequer lanço a promessa de tê-lo escrito. Farei o que posso: tentar. Dentro das minhas possibilidades, e na moleza da minha vontade, é mesmo o que posso fazer. Quanto ao resto, depois saberão.
A má notícia é que terão de me aturar por aqui. Lamento, terão de sofrer tanto quando o público do evento de apresentação do livro que mencionei inicialmente.
quinta-feira, outubro 09, 2014
A sombra e a luz
A brisa vinha do sol, e as sombras talvez tivessem sido sopradas também; mas entre os ramos das árvores recortavam-se formas que montavam acampamento em torno da nossa toalha. A ideia do piquenique foi tua, mas a ideia de te evitar fora minha. No entanto, certas ideias não foram feitas para vingar, e a minha foi uma delas. Trouxeste o cesto, pediste-me apenas que levasse a toalha, e eu assim fiz. Querias que reparasse em ti. Há algumas semanas que nos tínhamos conhecido, e desde então que fizeras de mim a tua missão pessoal. Cada gesto meu encontrava um espelho na tua reacção, e se eu falava, tinhas logo qualquer opinião para lançar, ou uma simples piada que não me fazia rir, mas me dispunha a ser posto em sentido pelo teu sorriso. Nas poucas vezes que me convenceras a sair contigo, o teu pequeno espectáculo revelou-se, e o palco das ruas iluminava de cada vez que os teus olhos me tratavam como a única razão para se viver na cidade. Há duas noites, sentados no parque, ensinaste-me trezentos nomes de espécies de árvores, quem sabe pela pura vontade e nervosismo de criares raízes em mim. Criavas curvas com as frases, cada letra uma vertigem, cada ponto final uma corda suspensa convidando-me a agarrá-la. Em mim, habitava no solitário mundo das casas de árvore sem nome, e se reconhecia a floresta que plantavas em meu redor, na esperança que te desse a mão na clareira restante que com tanto cuidado criaras para mim, fingia que não estavas lá. Cada passo teu era um buraco que te criava, e nas tuas vontades, fazia-me de preguiça.
Nos teus cabelos existem segredos, mas não os meus. Esses estão dentro de mim, e não os conheces, nem à extensão da planície de vendavais que é o meu planalto emocional nas montanhas do que já passou. Não te vou dizer, porque quando solto a tempestade, envelheço mais depressa. Cada vez vez que amei sem retorno, esmoreceu e sumiu um pouco da minha alma, e o meu maior medo é que não sobre sequer o suficiente para me tornar fantasma depois de morto. Tu sorris um chamamento, eu pressinto uma armadilha; vestiste-te para me atrair só a mim, e eu vejo um problema geral; fazes-me rir, e eu quero chorar; cada vez que passas a mãos no meu cabelo, a tua pele é poeira, e o meu cabelo torna-se aço, e tu és a sombra do sepulcro de um túmulo onde já várias vezes fui cadáver, e retornei, e prometendo a mim mesmo que jamais voltaria a morrer, caí de novo em campas pouco sólidas. Aqui, no nosso lugar ao sol, sinto-me no lugar do morto quando tentas, pela força de seres a luz no meio deste parque onde a banalidade também corre e se senta em bancos, soltar-me do que não quero ser, e no entanto é assim que existo. Ainda me lembro do que fui, do que conseguia ser quando me tornavam na floresta dos seus passeios, mas é apenas um rumor que ecoa algures na minha cabeça, que sonha afundar-se, na água que a arraste e não acorde jamais, naquele marulhar do que entra e rodeia, num murmúrio dentro de mim que me afaste das mãos que me querem tirar do fundo, e eu pertenço ao fundo e aqui moro e tantas vezes aqui bati que acho ser esta a minha morada e tu vens não sei bem de onde, porque nos conhecemos através de alguém que desconhece alguém e mal tem conhecimento de mim, e engraçaste com o que disse, sem que tenha dito sequer algo de engraçado, e colocaste na tua cabeça que era eu, e não outro habitante da superfície, quem querias trazer para um piquenique, fazer feliz, talvez beijar, e sorrir ao ombro, descobrindo não uma floresta, mas um ecossistema total onde te tornes auto-sustentável.
É natural. Mas arrumado este lanche, passas para a sobremesa, e o teu sorriso dá lugar à alegrias entre dois lábios. Inclinas-te, eu tremo um pouco e desvio-me. Num segundo, sabes que não é de ti. E perguntas o que fiz eu. Porque é que não te consigo dar a mão, e quase sem lhe dar tempo para que se recomponha, dou-lhe a mão e digo que não é nada, que na palma da minha não há nada para ti. Não há nada que a faça crescer. Que mais tarde ou mais cedo, ela vai fazer como todas, e vai-me dizer que há vida para além do que se vive, e que se amou enquanto se esteve e isso é o mais importante. Mas o mais importante é mesmo estar,e quando ela não estiver, morrerá mais um pouco do que me dá vida, vai-se ela embora e eu fico em câmara ardente até só ficarem as cinzas. Desconfio quando me torno o desejo de alguém, e quando me oferecem abraços que se querem tornar cobertores. Tudo aquilo que representas é o que não acredito, e o que deixei de acreditar: que algures exista quem se dê ao trabalho de me fazer seu, ou se entregue ao ponto de se tornar minha de vontade própria e sem pensar que fica dividida ao meio. Quem, elevando-me, pode acompanhar-me no voo. Quem não é obstáculo, quem me traz para piqueniques e no meio da fúria e da dor, dá o beijo que me deste agora para me calar, porque estou a falar há tanto tempo que já nem me lembro, no meio do beijo, a razão por que te recusei, e quando as tuas mãos são veludo na minha cara, a tua boca como que apaga tudo o que queria dizer e se deixa estar, lendo o meu vazio, mas em verso, quando este era prosa.
Beijas e nem foi necessária qualquer pergunta. Estendes-te na toalha e deixas espaço para mim. Não há convite, e eu aceito-o. Dás-me o teu ombro e olhas o céu. Dizes-me "O agora é nosso. O amanhã será, mas ainda não veio. Como não vivemos lá, não conta. Este ombro existe, e a tua cabeça também." Agarras na minha mão, coloca-la sobre o teu decote, e lanças-me "Prever o futuro é muito bonito, mas o teu está aqui escrito e já assinei por baixo. Podes escolher o teu destino de cinzas ou estares destinado a queimar-me. Não te levo comigo, mas gostava me levasses contigo ao que não viveste e queres viver, ou então ao que sonhas repetidamente à noite, ou mesmo quando ouves da minha boca, e com paciência, trezentos nomes de árvores. Da minha boca, ouvirás o teu; e eu da tua, quando ouvir o meu, é como se tivesse sido novamente baptizada."
Não sei se leste isso algures. Quando acabaste. lembrei-me porque escolhi ser alguém amando. Porque o teu ombro é céu, e porque o teu beijo foi um foguetão.A minha mão pousa nas nuvens, e quando os nossos olhos se cruzam, dou por mim ansioso por descobrir onde se escondem as estrelas
segunda-feira, outubro 06, 2014
Passagem de nível
Apenas duas mulheres na minha vida me viraram por dentro, e se uma será sempre a incógnita das minhas equações emocionais, tive a plena sorte de ter sido correspondido pela outra, que me trilho e percorreu, e ainda se estendeu num prado de saltos e corridas, e de magia que não existe em qualquer varinha de condão, pois só dela era o condão de me tornar mágico. Quando deixou de estar, a magia não sumiu, e em fluxo guia os meus gestos e arranjou casa no sótão das minhas tralhas cá em cima. Não vai sumir, nunca; e não é um problema para mim. Uma coisa que descobrir sobre mim, desde cedo, foi a de que quando entrego a alguém essa imensa massa enrodilhada de guitas que sou eu, irei ter amor por essa pessoa para todo o sempre. Não consigo conceber de outra maneira. Amar alguém não é passar tempo ou partilhar gostos ou cumplicidade. É um acto de carnalidade pura, não a que beija e abraça e possui, mas que, dentro de nós, quase constrói uma casa com fundações para outra pessoa habitar quando quiser, no maior conforto. É mais difícil demolir uma casa do que adaptá-la, e por isso, quando chega o momento, construo uma parede e mesmo dentro de mim, estás fora do espaço que uma vez te concedi para que me tornasses feliz na estúpida ilusão de que éramos mil, e nesse espaço eu agarrei em ti e fiz-te a melhor coisa que a minha personalidade o meu ser criaram, naquele ponto onde me arranjaste num desalinho e fomos o que devíamos e o que merecíamos. Findo esse tempo, continuamos a merecer-nos, mas se calhar devemos ser outra coisa, ou estar noutro modo.
Todos os dias mudo, e se num dia te berro e noutro te choro, há aqueles em que apenas me deito, e sorrio quando abro uma gaveta e te encontro lá. Quando a fecho, posso correr-te aos pontapés do meu quarto, mas não o faço porque não existe justiça, e as pessoas perdem-se e encontram-se pagando sempre um preço, que é o outro. Não me importo de te ter comprado; e durante muitos meses pensei se te merecia, e se fiz tudo o devia para a tua manutenção. Inquietou-me; e agora aceito que não sou uma criatura divina, e que certas coisas não se controlam, que nunca te quis sequer controlar, que a tua vida procurará um sentido, e até encontrará, e eu não faço mesmo parte dele porque sou aquele que faz sentido num momento, mas que todos os momentos passam, e as dúvidas e inquietações ficam e só podem ser respondidas por ti, sendo eu uma vírgulas quando procuras pontos finais, exclamações, prefácios e epílogos. Sou um livro com muitas linhas e versos brancos, mas sou mais prosa do que poesia. Se calhar, De vez em quando também consigo voar, ainda que pareça ter raízes nos tornozelos. Tu mostraste-me isso.
Também te mostras na foto com que me castigo todas as noites. Mas já vai doendo menos, como se te consumisse em doses menores. É um remédio santo para a dormência, e cura para o desfiar anónimo dos dias.
Mesmo que viva agora em mim, e tu estejas num anexo. Sei disso.
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