sexta-feira, outubro 17, 2014
Procissão dos passos
O luto tem cinco fases, segundo alguns entendidos, mas saltei algumas, acho que todas, e estou num local onde nenhuma se aplica. É estranho ser obrigado a viver duas perdas, mas se custa ao início, alturas chegam em que não se tornada complicado escolher. Ambas seguem em frente, mas uma delas é dever e a outra uma escolha ocasional, de entrega a uma dor voluntária que mantém feridas abertas, mas prontas a fechar, com vários pontos finais parágrafos. Faz-se do passado onde habitas um gerúndio, mas no interior, vais-te tornado pretérito perfeito quando um dias foste mais do que perfeito, mesmo depois de já te ter enunciado no condicional, que é a segunda das fases. Num ponto, tornar-te-ás indicativo de conjuntivos, e aí saberei que não és mais um verbo irregular, e que com regularidade te posso conjugar sem qualquer medo de errar no futuro. Não é uma fase do luto, mas também se vive, tem regras como a gramática e predicados que só eu, como sujeito da acção, posso determinar. Sinto de momento que posso pensar em mais do que és, e isso é bom. Certamente no teu canto, trabalhas noutras coisas, e eu também, pelo menos em quatro cidades que cabem num escritório. São passeios onde circulo sem medo, ajudam-me a evitar buracos, e acima de tudo a não cometer erros ortográficos. Sinto-me melhor do que pensaria. O bom nas situações limite está mais no limite do que nas situações; e esse limite é bem mais longínquo do que acreditávamos. A minha capacidade de aguentar dor é muito maior do que me dava crédito, embora haja momentos em que sinto que um metro e vinte de pernas é tão metafórico que vira figura de estilo. Esses momentos passam.
Textos outros há que já só contribuo presencialmente duas vezes por semana. Já nem vejo o local como cemitério, mas de cada vez que entro imagino um recreio escolar. Já fui professor, sei como é. Em vez de campas, vejo carteiras; os alunos têm o seu nome escrito e há faltas de material. Em vez de imaginar o meu pai deitado, está bem sentado, levantou-se da carteira e tem espaço, tempo e acima de tudo vigor para conversar com velhos amigos que não via há muito, inclusivé com o Nana aqui da frente, que, coincidência, está apenas ali a duas mesas, e são quase colegas de carteira. Sinto que em vez de esperarem pela eternidade, todos estão apenas a passar o tempo, e que a rebaldaria começa precisamente quando ninguém vê, nem arrasta a sua tristeza justificada pelo chão calcetado. Reúnem-se como noutros tempos, e voltam a ser, mesmo que não sejam de facto. A morte é pouco isso. Só se deixa de viver quando o nosso nome passa a valer tanto como o pó, e eu sei que o seu nome continuará a dourar durante muitos anos, pelo menos enquanto um de nós que o conheceu for vivo e puder falar de proezas, desgraças e até marretices. A soma do peso de um homem é isso, o que fica para trás e que se mantém à frente, Uma vida não se apaga com os músculos, mas é ligamento para o esqueleto da nossa memória, células nervosas que ultrapassam a bioquímica e numa outra realidade voltam a viver onde nunca puderam estar. Quando estou ali, à tua beira, é isso que imagino. Que de facto a história continua, e não acreditando em planos e cidades divinas e segundas oportunidades, os meus olhos, sinto-o. Quando fecho os meus olhos, vives uma Páscoa. Não tens qualquer cruz, e at+e sorris. De pé, volto a ouvir palavras da tua boca, para dizer que não me penteei. Perguntas se por acaso não perdi a chave do carro, e desta vez não o fiz porque guardei-a num sítio, como sempre me tinhas dito para fazer, e nem te conto de quando há uns dias fiquei trancado a partir de fora. Perguntas onde estacionei, e ele está mesmo ali, tens a certeza que consegues andar e tens bem, até procuras am redor uma barra para fazeres umas elevações, a marca de domínio másculo que Natal sim Natal não gostavas de nos oferecer. Caminhamos para o carro, e só paramos quando atravesso o portão e tens de ficar ali, só porque algém te pediu a ajuda e como sempre, não podes negar. Depois ligas-me, e venho buscar-te. Por certo, estarei aqui mal me digas algo. Nem dizes adeus, mas despedes-te com um ar certo de que compreendo, e voltas as costas, num passo calmo e forte, que põe qualquer alma penada em sentido. Eu peno e sinto-o. Quando chego ao carro, não estás lá.
É esta que me custa mais, tanto que não me custa porque me escondo quase sempre.Só aqui a dor regressa para me forçar as mãos, e para me colocar tudo em perspectiva, a perda e as perdas, o que se perde realmente e o que, no vórtice do ser, apenas já não se tem. Existir é fluxo, tudo a passar e só fica o que se vive. A passagem de uma fase para outra descobre cantos e recantos e aquela velha ideia de sermos realmente muitos é a nossa realidade. Perder é ganhar, de facto, nem que seja comichão. O limite da nossa expansão pode estar nas ilhas dos bem aventurados, e a boa aventura surge quando tudo o mais está perdido, e a única alternativa é deitar o barco ao mar e até aceitar que o proibido está implícito na fronteira do que aceitamos como capaz. Um passo em frente pode ser tropeçar num tesouro enterrado, inesperado e que vai dando ao luto cores alegres, festivas. Um não tem de se ver negro para fazer o funeral da dor. Basta apenas que aceitemos no palco as reviravoltas da pequenina faca que carva os nossos trilhos num mundo de madeira, um pouco como aqueles pequenos mundos guardados numa certa gaveta de uma mesa de carpinteiro onde aprendi a chorar sem uma lágrima.
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