terça-feira, outubro 28, 2014

(Uma gaiola de ideias)



As horas de mistério não se resolvem com os ponteiros. Escondem-se ainda mais nas engrenagens do relógio, e não saem de lá até que aceitemos o tempo como paciência que responde às nossas inquietações. Chego ao equinócio de estações baralhadas, procurando a lenta mudança com sofreguidão e fome, mas não existe neste tempo qualquer banquete: petiscam-se os dias, e espera-se que grão a grão se encha o papo de contentamento trocado. Há dias onde estou bem aqui, evitando-me um quarto nas maçãs de Julho, e esses são os melhores. Esquecer é a parte mais importante da memória, apagar é muito melhor do que guardar e despir as palavras dos seus casacos afiados deixa-nos protegidos contra a anemia da dor; e de todos as vezes que a cama é uma rampa de lançamento para a incógnita do que virá, sinto a vontade de procurar o que tenho e herdei, mas em tons de novidade. É estranho como habitam em nós tempos diferentes, enigmas irresolúveis e um odor a velocidade ilegal de todas as vezes que o vertiginoso poder de nos afundarmos em nós resulta na descoberta de um outro canto de paragem obrigatória. Somos cidades: cada memória, uma casa; cada hora dessa memória, um beco; cada minutos dessa memória, pedras de calçada; e o infinito da lembrança são todas as luzes que na noite do dia se acendem e tornam o alfabeto dos olhares caídos em poesia das cores e prosa da pele. Existir é um ponto de encruzilhadas e cada uma delas cobre-se de horror e espanto em quantidades que não cabem no corpo que se arquitecta em estruturas pós-modernas, sendo que o moderno é não querer lembrar, não querer sentir, e o corpo está bem para lá disso, estás em pós, sem fazer pó do que nos recusamos.

O relógio é o meu corpo, que tem para o tempo a dívida de ser o máximo. O que está dentro do meu corpo, e que o tempo não vai corroendo em pequenas mordidelas ferrugentas, pertence ao que não se pode sequer contar, e só de tentar descrever sem parecer ridículo; e nessa confusão de não saber estar sem conhecer, adivinha-se e erra-se, e volta-se a tentar, e enquanto não se perceber que viver é uma série de passos, e não um plano, a dor é uma poltrona com algemas. O tempo tem várias moradas na cidade. Procuro a minha, e aquela que não sendo minha será um dia.

As horas de mistério são por isso nómadas, e serão sempre de mistério porque não têm respostas: apenas adivinhas em formas de respostas. Por isso mesmo se agrupam maratonas de letras sem que se chegue realmente ao final. Corre-se, apenas; e as horas corridas são as únicas que se aproveitam, ainda que não se entendam.

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