sexta-feira, outubro 24, 2014

Num outro planeta



A casa na floresta criava raízes sem código postal, e durante todo o ano nem sequer desfolhava. Vivia apenas em dois dias anónimos do calendário, quando Ele chegava do Sul e Ela do Norte. Era como se a realidade abrisse um rasgão, e Eles sem pedir licença entrassem e se encontrassem na casa sem qualquer tipo de indicações. Não era combinado, não era falado, mas acontecia, simplesmente. Um pouco como a casa. Ele e Ela tinham-se conhecido quinze anos antes, num concerto. Ele ia sozinho, Ela com duas pessoas. Uma delas era o marido, que desfiara no novelo de tempo nós capazes de obstruir a maior das aberturas. Viviam há dois anos, e já pareciam trinta, mas volta e meia gostavam-se e sorriam-se e trocavam banalidades comuns, e isso chegava-lhe. Não lhe interessava que o marido não conseguisse distinguir Bela Bartok de Bela Lugosi. ela era a sua bela, e isso chegava-lhe. Pelo menos, até vê-lo. Demorou, estava três filas à frente. Muitos ali pareciam viver a música, mas apenas ele se sentia à vontade o suficiente para lhe chamar existência. O movimento do corpo era um avião para fora daquele espaço, e foi a primeira vez que se cruzou com ele, algures nos céus onde ambos repararam que a intensidade é uma apresentação melhor do que o olá. Olharam-se, ele não voltou a ver o palco, e estava sozinho e ela só acompanhada, e quando os lugares da sala desapareceram só ficaram eles e uma redoma de som bandido na transumância dos afectos. Findo o espectáculo, o pretexto foi simples: Ele percorreu todos os lugares só para chocar com ela. Disse a si mesmo que era simplesmente para tocá-la, mas mais tarde pensou que se não lhe chegasse a tocar, era como se Ela fosse tão vaporosa como as notas, e sobrasse apenas como o breve produto de um abdominal da memória. O marido falava baboseiras e mais interessado no palco do que no espectáculo, não reparou quando Ele deixou cair um cartão nas mãos dEla, e nem lhe disse nada, mas Ela soube logo, e roçou com o dedo na perna dEle porque queria agarrá-la e fazer dela um instrumento de percussão, e viver na sua intensidade, na esperança de que não houvesse maneira melhor de sentir a música do que interpretá-la no corpo de alguém que a vive.

Telefonou-lhe no dia seguinte. Ouviram as suas vozes, mas as palavras ultrapassaram-nos. Tudo era demasiado veloz, e dois dias depois encontravam-se, Ela descobriu que ele também era casado, com uma mulher que não dizia baboseiras, mas se babava por banalidades de vez em quando, o que o aborrecia banalmente. Não se conheciam, mas sabiam-se, desde o momento em que sorriram à mesa e sentaram as vidas num copo, e meia hora depois, confessavam intimidades depois de terem sido íntimos. Uma vez no carro; outra no parque. Ambas sem música, ambas sinfonias.  Bateram palmas um ao outro, beijaram as tábuas do palco, e nesses beijos encontraram mil e uma razões para mudarem tudo ficando na mesma. Os lábios ganham coragem, mas não a devolvem, e por isso nunca se atreveram a fazer par. Sabiam apenas que não conseguiam estar no leito do rio sem saberem que havia no meio aquela ilha; mas por outro lado, viver na ilha seria sempre curto pelas inundações que acontecem quando chove demasiado e a ilha é limitado espaço de protecção.
Há uma certa segurança na banalidade, disse ela. O medíocre é a nossa referência quando a vida nos entrega moedas de lata e queres comprar o que não podes. Compras o que vai chegando, e se tentares saltar demasiado, perdes-te e nem sequer cais no chão.
E Ele percebeu então que nunca seriam ambos. No entanto, podiam dar-se ao luxo de se enriquecerem uma vez por ano, pensou, e disse-lhe, e ela concordou. Mais  do que uma vez seria tortura, e menos era apagar esta batota, e há que trapacear de vez em quando, só para saber que os limites da vida foram feitos para se saltar à corda. Naquela noite, naquela altura, deitaram-se a perder sem que tivessem algo mais a ganhar que não fossem dois dias. Apenas  e só, e há quem não se perca por uma vida inteira. No meio da cobardia, dois dias era um grito de coragem, um incentivo a serem mais. Mas nunca foram mais, porque  a vida é muita vezes pensada por fases, quando se tratam de momentos. Eles preferiam momentos ocasionais a um nada possível. A certeza do pouco e a incerteza do muito são irmãos gémeos e vestem de igual. No entanto, um calça sapatilhas para correr, e outro escolhe sapatos na ilusão de que a boa aparência é um estado civil.

Descobriram que se faz muita coisa em dois dias, quando a afinidade das pupilas dispensa o tédio das palavras. Caminham descalços, e deitam-se no encalço das árvores, e das folhas. Não entram na casa antes de fazerem uma casa só para eles; e quando abrem a porta, é para se deixarem do lado contrário: Ele joga às escondidas com o lóbulo da sua orelha; Ela perde no macaquinho de chinês de cada vez que os seus lábios se põem a jeito no seu pescoço saliente. Emigram um para o outro, e um dentro do outro, e quando estão dentro é como se assistissem de fora ao mesmo tempo, e se percorressem como um carrossel de prazer, aos solavancos, mas cravado e veloz, onde se agarra com força e se grita como se o prazer fosse igual ao medo, e no final se respira de alívio e se repete em cada investida, e em cada vez que ela se aceita como a que gosta de ser fodida várias vezes, até sorrir muito para lá da casa e da floresta, e Ele ser aquela sinfonia intensa que a atraiu, e que de cada vez que ela o segura, todo ou às partes, treme nela uma febre mercurial que não tem cura, só cuidados paliativos,que vão segurando as suas pontas e não são nem banais nem medíocres: são a vida que ela gosta de experimentar sem viver. Aquela casa é redução da existência às unidades básicas: respira-se, come-se, fode-se, dorme-se e repete-se. Por vezes, come-se e fode-se em simultâneo, e nem isto é complicado. Lá fora, até ler ao final do dia é complicado; e de todas as vezes que Ele vai jantar a casa dos sogros, lembra-se sempre de uma feiticeira de joelhos a transformar todas as equações numa conta simples de somar. Ela guarda sempre para 365 dias um em que não tem outro remédio senão declamar poemas de gemido enquanto procura saber se se equilibra tão bem de gatas como em pé. A resposta é não, mas há beleza na queda, uma longa queda de dois dias que termina mal trancam a porta e escondem a chave no buraco da árvore até para o ano. Até se encontrarem num par que é ímpar, e voltarem a ser apenas átomos simples em choque incandescente, no universo daquela casa, deixando para trás poeira e faísca. Ali, durante dois dias, ardem, para que não se apaguem de todo durante os restantes.

São outros; e ser outro é, nos intervalos de se respirar, a reafirmação do que somos sem conhecer.


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