quinta-feira, outubro 09, 2014
A sombra e a luz
A brisa vinha do sol, e as sombras talvez tivessem sido sopradas também; mas entre os ramos das árvores recortavam-se formas que montavam acampamento em torno da nossa toalha. A ideia do piquenique foi tua, mas a ideia de te evitar fora minha. No entanto, certas ideias não foram feitas para vingar, e a minha foi uma delas. Trouxeste o cesto, pediste-me apenas que levasse a toalha, e eu assim fiz. Querias que reparasse em ti. Há algumas semanas que nos tínhamos conhecido, e desde então que fizeras de mim a tua missão pessoal. Cada gesto meu encontrava um espelho na tua reacção, e se eu falava, tinhas logo qualquer opinião para lançar, ou uma simples piada que não me fazia rir, mas me dispunha a ser posto em sentido pelo teu sorriso. Nas poucas vezes que me convenceras a sair contigo, o teu pequeno espectáculo revelou-se, e o palco das ruas iluminava de cada vez que os teus olhos me tratavam como a única razão para se viver na cidade. Há duas noites, sentados no parque, ensinaste-me trezentos nomes de espécies de árvores, quem sabe pela pura vontade e nervosismo de criares raízes em mim. Criavas curvas com as frases, cada letra uma vertigem, cada ponto final uma corda suspensa convidando-me a agarrá-la. Em mim, habitava no solitário mundo das casas de árvore sem nome, e se reconhecia a floresta que plantavas em meu redor, na esperança que te desse a mão na clareira restante que com tanto cuidado criaras para mim, fingia que não estavas lá. Cada passo teu era um buraco que te criava, e nas tuas vontades, fazia-me de preguiça.
Nos teus cabelos existem segredos, mas não os meus. Esses estão dentro de mim, e não os conheces, nem à extensão da planície de vendavais que é o meu planalto emocional nas montanhas do que já passou. Não te vou dizer, porque quando solto a tempestade, envelheço mais depressa. Cada vez vez que amei sem retorno, esmoreceu e sumiu um pouco da minha alma, e o meu maior medo é que não sobre sequer o suficiente para me tornar fantasma depois de morto. Tu sorris um chamamento, eu pressinto uma armadilha; vestiste-te para me atrair só a mim, e eu vejo um problema geral; fazes-me rir, e eu quero chorar; cada vez que passas a mãos no meu cabelo, a tua pele é poeira, e o meu cabelo torna-se aço, e tu és a sombra do sepulcro de um túmulo onde já várias vezes fui cadáver, e retornei, e prometendo a mim mesmo que jamais voltaria a morrer, caí de novo em campas pouco sólidas. Aqui, no nosso lugar ao sol, sinto-me no lugar do morto quando tentas, pela força de seres a luz no meio deste parque onde a banalidade também corre e se senta em bancos, soltar-me do que não quero ser, e no entanto é assim que existo. Ainda me lembro do que fui, do que conseguia ser quando me tornavam na floresta dos seus passeios, mas é apenas um rumor que ecoa algures na minha cabeça, que sonha afundar-se, na água que a arraste e não acorde jamais, naquele marulhar do que entra e rodeia, num murmúrio dentro de mim que me afaste das mãos que me querem tirar do fundo, e eu pertenço ao fundo e aqui moro e tantas vezes aqui bati que acho ser esta a minha morada e tu vens não sei bem de onde, porque nos conhecemos através de alguém que desconhece alguém e mal tem conhecimento de mim, e engraçaste com o que disse, sem que tenha dito sequer algo de engraçado, e colocaste na tua cabeça que era eu, e não outro habitante da superfície, quem querias trazer para um piquenique, fazer feliz, talvez beijar, e sorrir ao ombro, descobrindo não uma floresta, mas um ecossistema total onde te tornes auto-sustentável.
É natural. Mas arrumado este lanche, passas para a sobremesa, e o teu sorriso dá lugar à alegrias entre dois lábios. Inclinas-te, eu tremo um pouco e desvio-me. Num segundo, sabes que não é de ti. E perguntas o que fiz eu. Porque é que não te consigo dar a mão, e quase sem lhe dar tempo para que se recomponha, dou-lhe a mão e digo que não é nada, que na palma da minha não há nada para ti. Não há nada que a faça crescer. Que mais tarde ou mais cedo, ela vai fazer como todas, e vai-me dizer que há vida para além do que se vive, e que se amou enquanto se esteve e isso é o mais importante. Mas o mais importante é mesmo estar,e quando ela não estiver, morrerá mais um pouco do que me dá vida, vai-se ela embora e eu fico em câmara ardente até só ficarem as cinzas. Desconfio quando me torno o desejo de alguém, e quando me oferecem abraços que se querem tornar cobertores. Tudo aquilo que representas é o que não acredito, e o que deixei de acreditar: que algures exista quem se dê ao trabalho de me fazer seu, ou se entregue ao ponto de se tornar minha de vontade própria e sem pensar que fica dividida ao meio. Quem, elevando-me, pode acompanhar-me no voo. Quem não é obstáculo, quem me traz para piqueniques e no meio da fúria e da dor, dá o beijo que me deste agora para me calar, porque estou a falar há tanto tempo que já nem me lembro, no meio do beijo, a razão por que te recusei, e quando as tuas mãos são veludo na minha cara, a tua boca como que apaga tudo o que queria dizer e se deixa estar, lendo o meu vazio, mas em verso, quando este era prosa.
Beijas e nem foi necessária qualquer pergunta. Estendes-te na toalha e deixas espaço para mim. Não há convite, e eu aceito-o. Dás-me o teu ombro e olhas o céu. Dizes-me "O agora é nosso. O amanhã será, mas ainda não veio. Como não vivemos lá, não conta. Este ombro existe, e a tua cabeça também." Agarras na minha mão, coloca-la sobre o teu decote, e lanças-me "Prever o futuro é muito bonito, mas o teu está aqui escrito e já assinei por baixo. Podes escolher o teu destino de cinzas ou estares destinado a queimar-me. Não te levo comigo, mas gostava me levasses contigo ao que não viveste e queres viver, ou então ao que sonhas repetidamente à noite, ou mesmo quando ouves da minha boca, e com paciência, trezentos nomes de árvores. Da minha boca, ouvirás o teu; e eu da tua, quando ouvir o meu, é como se tivesse sido novamente baptizada."
Não sei se leste isso algures. Quando acabaste. lembrei-me porque escolhi ser alguém amando. Porque o teu ombro é céu, e porque o teu beijo foi um foguetão.A minha mão pousa nas nuvens, e quando os nossos olhos se cruzam, dou por mim ansioso por descobrir onde se escondem as estrelas
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário