segunda-feira, outubro 13, 2014

Votos públicos



Neste sábado que passou, tive o enorme prazer e honra de ver uma das minhas incontáveis bocarras a transformar-se num momento de potencial humilhação pública. À mera sugestão de que poderia ser colocado defronte de uma plateia a debitar coisas sobre um personagem histórico português, Viriato, sobre o qual apenas li umas coisas em livros diversos, um amigo que lançou um livro que envolve este poderoso símbolo da resistência, e tomou a deixa para me pedir se não podia, então, passar por expert noutra coisa que não seja fazer figuras de urso. Encurralado pelo pedido sincero e simples, não tive como dizer que não, e foi assim que dei por mim em Viseu a participar num evento que nada tem a ver comigo, e tudo tinha a ver com a figura principal do escritor, cujo entusiasmo era visível, o orgulho indisfarçável, e a ingenuidade da fé que eu poderia contribuir, de alguma forma, para elevar a fasquia do momento um dado adquirido de cada vez e que me olhava com aquele sorriso tonto de quem vai depositar no mundo um labor que sai de nós. De caderno à frente, com uns rabiscos e anotações, lá me pus a falar sobre pastores e guerreiros, sobre montanhas e montes, sobre rótulas para sempre perdidas e oportunidade que devem ser não só agarradas, como calcadas. Palmas choveram, certamente para me calar e interromper uma torrente quase metralhadora de factos, piadinhas e até a proeza de recorrer a "Breaking bad" a propósito da expansão romana na Península Ibérica. Em suma, não comprometi, que era sempre o meu objectivo. Sessão de autógrafos a correr, compra-se um exemplar para guardar numa lista de leitura que por agora deverá estender-se, pelo menos, até aos Cárpatos e num aperto de mão, o novo autor literário lança-me uma questão que tenho ouvido e lido de há alguns meses para cá com mais insistência, mas que está presente desde que uma professora de Português me convenceu de que tenho algum jeito para tecer tapetes de Arraiolos de letras: "Então, quando é que escreves um livro?"

A pressão existe, não é nova. Não posso precisar quantas vezes escutei este desafio, mas foram as suficientes não só para tremer perante o projecto, como também para me orgulhar desse encanto que a minha escrita pode causar no comum cidadão. Numa pausa, deixem que agradeça a toda a gente que me lê, aqui e noutros formatos. Sois todos gente que vive na pacatez da vida, e durante alguns minutos entregam-se aos meus delírios. É corajoso, mas não só: os comentários que me fazem a seguir, os likes no Facebook e o desejo ocasional de saber quando é que sai próximo encorajam-me. Confesso que não comecei a escrever para impressionar ninguém em particular, mas nos últimos meses, também porque comecei a sentir a minha escrita a evoluir para um nível cada vez maior de pureza, sensibilidade e transparência, passa-me pela ideia o que poderei provocar nos outros, nos seus sentimentos, até se aquilo que cravo numa página virtual se pode desfolhar em corações reais.Há qualquer coisa de muito reconfortante nas reacções dos outros, no seu gosto, no seu empenho em permanecer na órbita da leitura que proporciono, como se fossem pequenos planetas em forma humana que tomam as minhas linhas como asteróides potenciais. Saber que já provoquei lágrimas a alguém é embaraçoso, mas agradável em simultâneo; ler que as patetices que me ocorrem nos recantos da noite conseguem, de facto, ajudar alguém faz-me sentir menos pequenino.Quando toda esta curta multidão me tenta convencer a escrever um livro, não é que me abane, ou sequer me sinta obrigado a fazer disso uma missão. Deixo cair a sugestão para um canto qualquer da cabeça, e lá fica ela, a marinar. Eu respeito muito o acto de parir um livro, como objecto de eternidade e montra de mim mesmo.

No entanto, naquela apresentação, enquanto ouvia o meu amigo falar, começou a surgir aquela pequena inveja que só aqueles que sofrem de megalomania intelectual, sem no entanto o admitirem abertamente poderão perceber e aceitar como vulgar: a ideia de que alguém tinha lançado um livro e eu passara dez anos da minha vida com ideias vagas e preguiça tão latente que me colocaria num clube com João da Ega e Carlos da Maia. Pensei em várias coisas, muito na dor que permitia continuar aberta para me inspirar e de como um blog é um reservatório pequeno para acolhê-la, pensei no meu pai e de como seria triste e uma vitória em simultâneo poder deixá-lo viver uns anos mais entre nós através de páginas de papel. Numa neblina, num fogacho que pode até apagar-se, a ideia de arrancar de mim qualquer coisa de minimamente editável incomodou-se e não se deixou tapar. Manteve-se e mantém-se por aqui, e obrigou-me, mal cheguei a Coimbra, a recorrer ao caderno onde anoto todas as ideias, por mais incipientes e diáfanas que sejam. Surgiu ali a febril procura por uma desculpa não para fugir a algo que toda a vida me rodeou, como uma matilha de desejos, mas precisamente para finalmente me colocar numa rota de colisão com um dos meus maiores receios: o fracasso.

Faço aqui então, a todos vocês que me incentivam e que foram, lentamente, plantando a ideia, a promessa de que no espaço de dois anos tentarei escrever um livro. Não me quero comprometer a editá-lo, porque isso são outros quinhentos, mas pelo menos a colocar, de fio a pavio, um tapete para todos espezinharem ou limparem os pés com respeito, entre uma ou outra gralha que me escape como aqui sempre acontece.Nem sequer lanço a promessa de tê-lo escrito. Farei o que posso: tentar. Dentro das minhas possibilidades, e na moleza da minha vontade, é mesmo o que posso fazer. Quanto ao resto, depois saberão.

A má notícia é que terão de me aturar por aqui. Lamento, terão de sofrer tanto quando o público do evento de apresentação do livro que mencionei inicialmente.

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