Entre jogos de Baleia Azul (mas que nome idiota para um desafio suicida, hein?) e gente que acha que as vacinas não resultam - ou que são prejudiciais - , passando por um mundo em que narcisistas chegam a presidente, o racismo é aceite como normal e a incompetência um requisito necessário para se ser bem sucedido, principalmente de mão dada com a obediência cega, ser professor, para mim, passa também por aplicar aquilo a que chamo chapadões noticiosos. A miudagem é nova e a inconsciência quase faz parte dos pré-requisitos para se sobreviver ao 3º ciclo, mas não é estúpida. Pode ter a densidade de sofá-cama, mas se puxarem pelas suas cabecinhas, certas coisas percebem-se. Há que confrontá-los com a realidade e não mascará-la e o que vejo em todos estes problemas é que os papás não se dão ao trabalho de parar cinco minutos e explicar o que está certo ou errado. Pelo menos o que é importante. No meu primeiro encontro com os pais, fiquei surpreendido por ninguém ter pestanejado quando se depararam com um semi-homem responsável pelos seus filhos. Sou o professor mais novo da escola e ainda tenho uma diferença de dez anos para o seguinte. No entanto, à medida que ia entregando notas e tentando fazer alguns perceber os motivos das mesmas, deparei-me com dois tipos de educação: o cobertor e a janela aberta. Na educação de cobertor, os papás, tomam conta de tudo na vida dos filhos e querem saber à minúcia a totalidade do que se passa: perguntam não só sobre as nota,s mas sobre as aulas, os métodos, o papel da directora da escola, se eu respeito os penteados das crianças, porque é que a Xana Tok Tok não pode vir das umas aulas de vez em quando, se não tenho um cinto melhor para prender as calças e que ainda posso ficar sem ver televisão uma semana se não me portar bem. Uma das mães, juro, quis saber, passo a passo, o que faço na aula com um dos filhos (tenho ambos os tesouros na minha direcção de turma...) em todos os pormenores, desde a maneira como falo e explico até ao controlo que tenho sobre a sua atenção e trabalho. Para equilibrar a balança, a educação de janela aberta é aquela em que um pai não aparece porque não lhe apetece ou quando aparece, nos diz "Eu nem quero saber das notas" e lemos-lhes nos olhos que a escola é um local para passar o tempo e impedir que os moços e moças chateiam as suas cabecinhas. O professor é uma espécie de polícia e no fundo, se algo acontecer, a culpa é sempre nossa. "Mas porque não lhe deu uma lambada?", ouvi eu numa experiência anterior noutra escola e que posso eu responder a isto sem perder as estribeiras?
Não está nos meus planos ser professor para sempre, mas é também por estas coisas que levo muito a sério o meu papel de abrir mentes. Pelo menos esses. Há certos princípios de que não abdico: o fascismo é mau, não utilizarão palavras racistas na minha sala de aula ou teremos problema, a vacinação é essencial e nem venham cá questionar isso, a vida é um valor universal (duas aulas que dei recentemente sobre o Holocausto foram de tal forma esclarecedoras que no final, alguns alunos estavam com cara de quem me queria vir pedir desculpa pelo evento, e nem tinham estado envolvidos) e apesar de alguns maus da História serem de facto maus, os "bons" não o são tanto quanto isso e aquilo que se varre para debaixo no tapete e não aparece em manuais de História é posto à luz do dia por minha indicação. Para além disso, neste terceiro período, uma turma minha começou a ter aulas de cinema na aula de direcção de turma que têm comigo todas as semanas. Aprenderão conceitos técnicos e narrativos básicos e ainda verão um filme a preto e branco (a saber, "Casablanca"). Eu recuso-me a acreditar que é impossível parar a vaga de estupidez que varre o mundo de uma ponta à outra, que jovens não entendem certas noções da vida quando lhes são explicadas, que é normal amar a mediocridade e conformarmo-nos com isso. Penso em mim mesmo, em como fui incapaz de melhorar-me durante anos, caindo em padrões que me magoaram, repetindo e mantendo pessoas que por muito bem que saibam e que aqueçam e que brilhem, são apenas dor e entulho nos meus dias e se não me consigo aperfeiçoar ao ritmo que quero, ao menos que possa intervir em vidas alheias e deixá-las, pelo menos, um bocadinho mais conhecedoras. Não quero que a estupidez vença, nem a de pais e muito menos a de filhos que aqui em baixo, mais a sul do que qualquer norte nacional, se parece saber tão pouco acerca de certas coisas boas da vida.
Na semana passada, numa aula, mostrei-lhes o duelo a três do filme "The good, the bad and the ugly", logo depois a explicar-lhes o brilhantismo do famoso corte de edição do osso do filme "2001". A aula tinha acabado e ninguém reparou (e estes miúdos estão sempre a olhar para o relógio). Estavam presos a um filme de 1966, um western sem particular acção ou frenesim, queriam saber o que se ia passar. Vi-me obrigado a quebrar o encanto e fazê-los sair da sala. Na verdade, a estupidez só prolifera e se espalha porque não a paramos. As pessoas querem saber e conhecer, mas se não forem orientadas e aconselhadas, é normal que acabem nos locais errados. No meu pequeno quintal de 60 alunos, uma parcela minúscula na imensidão do mudo, isso não acontecerá. Porque não deixo, porque não quero; e quando uma pessoa não se controla a si mesmo, que pelo menos controle os outros. É um dos poucos benefícios de sermos imperfeitos por natureza.
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