Ao longe, a neblina dengosa, amando o mar. Paulo, pés na doca, esperava o barco, o único sorvo de oxigénio num raio de centenas de metros. A mochila às costas indicava viagem, mas no seu espírito queria apenas ficar. No entanto, a honra, esse bicho bravio que conduz os humanos aos rochedos do risco, obrigava-o a renegar-se. Tudo começou por uma aposta, encapotada, inocente: Pedro e Patrício, amigos de infância, traçaram à mesa de jantar uma proposta irrecusável - aquele que de entre os três fosse o último a correr todos os concelhos de Portugal sujeitar-se-ia como castigo a uma viagem à escolha dos vencedores. São 308 concelhos, mas caramba, eram amigos, estavam mesmo a entrar naquela fase da vida em que os sonhos ainda são possíveis, algures entre os 20 e os 25, e o projecto era sem prazo. Apertos de mão firmes e acordo assinado num guardanapo, guarda-se na carteira de Pedro (afinal, o único capaz de ser o fiel da balança, pois pouco antes daquele jantar doutorara-se em Direito) e Paulo foi confiando que aquilo fora apenas um assomo de juventude exaltada, pronta a ser esquecida mal o fermento do álcool baixasse. Mas não, os seus amigos tomaram muito a peito o desafio. Pedro foi o primeiro, terminando a sua jornada em Castro de Aire, no topo da serra de Montemuro, passando aí a noite para ver nascer o Sol e plasmar a eternidade do momento numa publicação de Instagram; Patrício, nortenho em todas as linhas do sotaque, escolheu a contemplação do Douro a partir dos Jardins do Palácio de Cristal, um rio que é veia de uma cidade e, caso raro, também o seu coração, e terminou no Porto seu; e quando comunicou a conclusão da demanda a Paulo, ainda este não ia a meio. Não o surpreendera, nem aos amigos, que sempre o tiveram como o homem que não sabe seguir, apenas ficar.
Quando a aposta foi lançada, um sabor a culpa manifestou-se naquele jantar, misturado com as grelhadas mistas. Como um mafarrico ressuscitado, Pedro convencera Patrício que precisavam de meter um cabo de alta tensão pelos olhos de Paulo, que desde criança mostrara uma inércia exasperante. Não se decidia, ruminava; para escolher o curso académico fora um suplício e o irmão mais novo, diferença de dois anos, ficava sempre com os melhores brinquedos e roupas porque Paulo se adiava em escolhas e opções. As desculpas eram sempre múltiplas, sem escolha, e para quê optar se a vida é isto e pronto? Tudo desliza, como se os dias fossem gelo, tudo passa, nada fica: isto ou aquilo é o mesmo que tudo e nada e portanto, uma inconsequência. Ele estava na vida como quem , no público de um concerto, não canta aquilo de gosta, mas apenas o que deixam e só pula quando a maralha sopra na sua direcção. Paulo era bom tipo, mais do que um gajo porreiro, e preocupava-se. Inteligente, se bem que de uma inteligência nauseabunda em ocasiões, e custava a Pedro ver um tão grande desperdício de bom ADN numa massa amorfa que se equiparava a uma esponja do mar. A aposta era o empurrão, o atalho até ao ponto fraco do Paulo - a sua honra. Patrício concordava: apenas namorava com Filomena, loura que gostava de ser sua nos últimos três anos, porque Paulo lhe prometera que nunca por nunca atrapalharia a vida amorosa daqueles que eran os seus dois grandes referenciais de amizade; cumpriu e sabe Patrício que, se estivesse na sua pele e principalmente nas suas calças, tal teria sido impossível, pela maneira como Filomena acossou o honroso rapaz. Mas Paulo não escolhe, marca uma posição e funciona a partir daí; mas também a Patrício enfartara a visão de tão bom tipo sem capacidade de reagir. Concordou com Pedro, que era preciso fazer algo e que esse algo devia ser dramático. Uma viagem, sim, mas uma viagem gigante e arriscada, não o suficiente para cortar uma vida em dois, mas pelo menos capaz de arrepiar a epiderme em espasmos de dúvida.
A escolha recaiu em St. Kilda, um ilhéu medonho, habitado em rarefeição, ao largo da Escócia. Eles tinham a certeza que Paulo perderia, e perdeu, e que chegada a hora não recusaria a pena, e não recusou. Simpáticos, pagaram-lhe a viagem, sabiam que era mais um investimento do que um custo e esperaram que, por uma vez, a ausência de escolha fosse benéfica. Naquela manhã envolta em lençóis
Quando o barco chegou, mochila molhada da cacimba matinal, nem reparou que era o único passageiro. Mas o nevoeiro levantava e enquanto assistia ao lento atracar da embarcação, o telemóvel tocou. Era uma sms. Número desconhecido. Uma língua desconhecida também, pelo andar, talvez gaélico. Era natural, a Irlanda ficava ali ao lado. Com certeza fora engano, não podia ser ele o destinatário. Ao início tentou respeitar a privacidade, mas ainda faltava meia hora para o barco sair e uma consulta rápida no Google tradutor revelou-lhe o conteúdo. Breve, três linhas no seu ecrã, mas um mundo por entre as palavras: "O lençol rendilhado aquece quando sopro o teu nome. Voltas, eu sei, o vento desenha o teu nome nas gotas de chuva. Quero viver no futuro para te encostar ao meu turbilhão quente. Camhoie" E não conseguia não sentir-se arrepiado, ele que tanto temia o futuro e confrontava-o alguém para quem esse tempo era o único presente que desejava. Lembrou-se de vários lençõis, menos rendilhados, quis esquecê-los, mas sabia que para sempre os carregaria, para St. Kilda ou até para os confins do mundo, nesse passado que tanto o assustava. O barqueiro chamou-o, três vezes, nunca negou qualquer uma. A mochila às costas, um passo decidido para o barco e aquelas palavras ternas, acerca de um futuro que não era o seu, mas que desejou, como não desejava assim algo há anos. Mexeu consigo, no âmago e no fundo e quando começou a chover, não se deixou proteger. Era baptismo, pensou, talvez nascesse outro. Ou pelo menos, enquanto as suas lágrimas se misturavam com a chuva, este choro possa ser um parto enquanto eu próprio parto, respirar pela primeira vez, asfixiar como sempre e nunca.
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