segunda-feira, maio 22, 2017

Faz-se caminhando



De há duas semanas para cá, tenho cumprido um regime com disciplina: dia sim dia não, calço as minhas Merrell e faço-me à estrada em hora e meia de caminhada. Este acesso de lucidez serve dois propósitos - ajudar à limpeza da minha saúde mental, porque demasiado tempo livre fechado em casa não faz bem a ninguém; e a proximidade de um limite de peso que estabeleci há muito tempo que nunca ultrapassaria. À medida que a balança me revela a aproximação galopante de esse número que de mágico só tem mesmo o hermetismo egípcio, o meu corpo dá por si tendo vontades que habitualmente não geraria. Atenção: o meu 1,86 m permite, com normalidade atingir este cálculo de tonelada com naturalidade; no entanto, o que ainda sobre, em estertor, de um certo amor próprio lança-me numa tentativa desesperada de jamais ultrapassar essa marca. Portanto, tomei duas decisões rápidas: caminhar regularmente e comer cada vez menos às refeições. Podia comer melhor? Mais vegetais e sopinha, abdicar da carne e de outras coisas boas com açúcar? Claro que sim; mas por favor, já estou sozinho no meio do Alentejo onde por vezes necessito de falar alto comigo mesmo só para não dar em doido. Não peçam à minha sanidade que se estique ao ponto da transparência. Inevitavelmente partira. Do mesmo modo, nem me venham com histórias de corridas, que a minha biologia é bem sábia e as rótulas com que nasci desaconselharam-me, em rapidez record, essa iniciativa. Assim como assim, a caminhada e a corrida contribuem para uma perda semelhante de calorias (parece estúpido, e é, mas estudos médicos dizem-no) e apesar do que a minha reputação aparenta, eu não gosto de sofrer.

O segundo passo, após a decisão, foi o de descobrir um pedaço de caminho para me dedicar. Em Coimbra, onde de quando em vez também me entregava ao pé após pé, o Choupal era a minha Meca e Medina, mas com menos mortos por asfixia. Aqui, florestas são tão comuns quanto rios com caudal e caminhar à beira das longas rectas alentejanas é um pouco como subscrever um serviço bem supimpa de suicídio por atropelamento. A minha primeira expedição pedestre levou-me a descobrir uma estrada de acesso público, entre pastos, que não sendo agradável era pelo menos utilitária. Não me livrei de um susto quando, entre divagações mentais, reparo numa manada de vacas acompanhando em paralelo o meu movimento do outro lado da cerca. Era umas quarenta, e ali, com ou sem baba, atiravam-me com o olhar. Lera nessa semana, no último (e divertido) livro de Bill Bryson sobre a Grã- Bretanha que por terras britânicas tem crescido o número de pessoas que são atropeladas por vacas enquanto disfrutam dos trilhos locais. Olho para a cerca e são paus de metro e meio com arame entre si. São tão seguras e protectoras quanto Marcelo Moretto. Seguem-se umas dezenas de segundos tensos. Enquanto nos meus ouvidos vai debitando a voz de David Paulides, entrevistado num programa de rádio (um homem que conta coisas esquisitas, mas cuja voz funciona como barulho estático que acalma a minha mente), o outro canto a minha consciência tenta sossegar-se e só o consegue no momento em que, tão subitamente quanto aceleraram o passo, os seres bovinos estacam como que ordenados e hipnotizados, controlados por uma linha imaginária. Nenhuma delas fala inglês, suspirei. Devia ter desconfiado quando, no início do caminho, vi a referência a uma quinta chamada "Coito Grande": ia-me fodendo com estrondo, de facto. Ainda cheguei a repetir estas paragens, mas rapidamente descobri uma mina diferente de quilometragem.

Mesmo em frente à minha rua, do outro lado da estrada, segue uma outra que se transforma num ápice em estrada de terra batida. Vai dividindo os vários montados entre si, longas planícies com ocasionais elevações e tem a beleza própria do Verão alentejano, quando a terra parece escandinava de tão loura e o verde é sugado por um castanho muito baço, que brilha com a luz solar. A longa estrada segue até uma aldeia chamada Relíquias e é frequentada principalmente por tractores e motas; algures, ramifica-se noutros caminhos que oferecem possibilidades de descoberta e mistérios. Anseio por descobri-los, mas neste fim de semana ocorreu um daqueles acasos que me faz sempre pensar se a existência não é uma partitura musical matemática. No sábado à tarde, o calor ia-me adiando a saída, mas algures dei um murro na mesa e saí de casa. Decretei que nesse dia faria duas horas de passos largos e em ritmo acelerado. Dez minutos não eram passados quando, dando uma curva que me retira do casario e me lança nos campos, ouço por entre a voz de David Paulides, explicando misteriosos desaparecimentos nos matagais norte-americanos, aquele crepitar facilmente reconhecível por quem tem uma lareira em casa. Acaba de passar um tractor e pensei inicialmente que era o barulho das rodas na terra, mas tal barulho é inconfundível. Olho para o meu lado direito e no chão, do nada, inicia-se um fogacho com risco de incêndio. Na rapidez reflexos que é a única característica física que um dia me poderá valer a sobrevivência, os meus pés servem de pá, calcando o incipiente fogo que morde o mato seco, atirando-lhe terra, matando-o. O meu alívio durou o tempo de encontrar outros dois pontos de impacto a poucos metros, um junto ao outro, com um apetite mais voraz e satisfeito. Fazendo o que posso não é suficiente e estranhamente, o meu raciocínio é rápido o suficiente para chamar os bombeiros sem me querer armar em herói. Enquanto isto acontece, o fumo chama a atenção de vários populares de Colos, que numa questão de minutos acorrem ao local e combatemos o incêndio que fica controlado antes da chegada dos bombeiros. Beneficiamos da sorte do terreno e dos caprichos das chamas, que viram para um lado quando o outro era muito mais potencial de desgraça, mas o importante é que tudo se controlou e acabou em bem. Os soldados da paz já só chegam a tempo se brincar com a mangueira. Pedem-me fotos da ocorrência, que me haviam requisitado por chamada telefónica e com essa questão arrumada, volto ao caminho.

Desta vez, não consigo abstrair-me, Paulides é impotente. Penso em todo o conjunto de pequenas decisões e disciplina que me levaram àquele ponto ali, no momento mais exacto, na lucidez necessária para cumprir os passos certos. Que mecânica esta que me trouxe para tão longe e ser útil da maneira mais inesperada, que me leva a ser um bocadinho herói quando penso mais em mim como um vilão. Desta vez, os passos não são metrónomos e num desvio propositado, encontro subidas que me cansam o corpo e me impedem de pensar em destinos e acasos, em coincidências e pessoas, fogos que queimam muito mais do que aquelas chamas que apaguei e me tornaram mais peão na vida do que herói na mesma. Dê por onde der, sinto que não me podia desviar de nenhuma decisão errada e que todas me conduziram ali mesmo, ainda que não me aperceba. Encolho os ombros: a vida é caminho e nenhuma disciplina é necessária: só pernas com vontade e corpo com arcaboiço para aguentar o desgaste. Tudo o resto é fogo posto sem hipótese de rescaldo.

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