terça-feira, maio 09, 2017

Um dia de passeio


A minha paisagem preferida é a emocional e a memória, em alto e baixo relevo, é uma topografia perfeita desse recorte que nos encolhe e aumenta na proporção da medida de dor. Muito antes de estar em permanência temporária nesta vila com forma de aldeia, o Alentejo já me dizia algo em sussurros, só de vez em quando, espaçada e lentamente, em histórias de farrapos e piar de fim de tarde, de sol em queda e abraços que se apertam ao ponto da libertação. Em Sines se passou e é por isso que a considero um dos meus locais preferidos do Sul do país. Não vivi lá muito em tempo, mas qualquer coisa de intensidade factual, da refracção das intenções e do que se quer, a inconsequência do futuro, mas com um presente, não só temporal, mas em maneira de pessoa. Sempre me surpreendi com o meu estranho paradoxo: não me apego a qualquer desenho exterior de emoções e necessidade humana, mas no meu âmago, aquela alma que dentro da alma almeja, há uma sensibilidade que voa nas palavras, mas incomoda nas horas que se prende aos pequenos gestos que são agora fumo, às sensações que não se repetem, às pessoas que agora são outras, apesar de um dia terem sido mais tudo do que uma parte. Tenho uma dificuldade considerável em me libertar de quem me prende, principalmente de que é feito das correntes que não largam as cordas da emoção, e Sines representou um pouco isso durante uns tempos. Outros locais tomaram a sua posição, feitos de aço mais denso, mas nunca me esqueci onde tudo começou.




Regressei lá há dois fins de semana. A logística da região leva a que uma ida ao cinema se torne num plano a médio prazo. As salas de exibição têm uma sessão, e com filmes atrasados, e foi com surpresa que descobri haver em Sines uma que iria estrear, a tempo e horas, a sequela de "Guardians of the Galaxy", em várias sessões, durante uma semana. No entanto, fazer 50 km apenas para ver um filme vai totalmente contra a minha natureza somítica, enraízada até à medula dos ossos, e uma rápida pesquisa levou-me a encontrar um evento na cidade precisamente no sábado que pretendia: uma parada de veleiros. Talvez não seja a coisa mais excitante do mundo, mas o certo é que nunca pus os pés num veleiro. Uma pessoa não põe morrer idiota em tudo, certo? Tentei combinar isso com, afinal, a razão pela qual Sines se tornou num local do meu próprio país emocional, mas a P. (chamemos-lhe assim) não podia. Quando Sines se mexe, também ela balança e adiar a nostalgia foi a solução encontrada. No entanto, estava articulada uma tarde que já justificava os quilómetros e adoro fazer a estrada que de Milfontes conduz a Sines pela costa. É um dos meus pequenos prazeres aqui em baixo e um sorvedouro do orçamento mensal que de bom grado me submeto à extravagância. Para além disso, a minha saúde mental pede que, ao fim de semana, saia daqui. Colos não é um Sobral Cid, mas a minha mente tem algo de lobo solitário e não de  eremita pungente. Preciso de respirar e ver outro ar, de me sentir a mexer, de não mirrar e esmifrar. Como um dia ganhei vida em Sines, a mesma vila iria, pelo menos, carregar-me em ombros numa necessidade permanente.


O estacionamento na vila foi mais fácil do que esperava em semana de evento. Ainda procurei pela sala de cinema e esfregando a cabeça, fiz uma sessão de power walking inesperada. O motivo, claro, tem a ver com particularidades da província: o local encontra-se instalado no hall de um prédio de habitação, em que o único sinal que revela a localização está mesmo no interior, um poster colorido que passaria despercebido à pessoa menos informada. É estranho dirigir-me ao Cinema como quem vai ao  cabeleireiro. A mesma pessoa que vende os bilhetes trata da projecção do filme e da condução do espectador ao seu lugar. É como no "Cinema Paraíso", mas a mulher que faz tudo isto apresenta-se mal encarada e duvido sequer que tenha uma bobine de beijos à minha espera quando for mais velho. O filme diverte, o que se pede, numa sala de cento e poucos lugares e que pelos quatro euros e meio do bilhete, é bastante aceitável. Mas o que me agrada mais em SInes, sempre que cá venho, é a sensação de que há uma autarquia que quer, pelo menos, dinamizar a cidade onde interessa: no Centro. Tantas vezes na Coimbra onde cresci existe uma sensação opressiva de abandono na Baixa e na parte histórica, como se o que interessasse fosse abandonar o que é antigo à bicharada (e estes bichos incluem estudantes académicos). Aqui não: aquilo que interessa está concentrado na zona central, desde um centro de artes até agradáveis esplanadas viradas para a Baía, e é possível descer comodamente a pé, sempre com motivos de interesse e uma luz receptiva, até à Marginal. Apenas opto por ir de carro pelo simples motivos de ter mais coisas a fazer.


Na exposição de Veleiros, a maior parte só pode ser visível do exterior. O navio-escola Sagres é uma excepção e a fila para visitar faz-me questionar se, por acaso, não vamos afundar afinal um dos maiores símbolos da Marinha Portuguesa. As camaratas e corredores estão vedados, mas o festival de cordames e velas, os mastros que anunciam viagem e aventura, a seriedade alegre dos marinheiros e oficiais (com a distinta sensação de existir uma zona VIP que ignora por completo o visitante regular...), o sol que joga connosco às sombras tornam o final de tarde muito agradável. Há chico-espertos que pensam perceber tudo sobre o Mar e a navegação (ter de envergonhar um tipo que se armava ao pingarelho por achar que entendia de nós foi um ponto alto - e só atinou quando lhe expliquei que fui vinte anos escuteiro e lhe mostrei aquilo que era óbvio a que percebesse da coisa), há curioso profissionais e de olhar arguto - outros de olhar langão e distraído que vagueiam e vagueiam - famílias com cumplicidade e outras onde as ligações se forçam, crianças vagabundas que se agarram às minhas calças por engano quando se perdem dos pais, selfies e foodies, uma amostra de mar humano no oceano. Admiro e fotografo, mas acima tudo absorvo, observo, estudo, retenho. É do que mais gosto de fazer quando, sozinho, faço dos distantes e transeuntes uma companhia de distracção. A madeira que piso retém passos, mas também guarda gritos, com certeza, e penso em como estes sorrisos e tiradas alegres equilibram a embarcação e levam a bom porto a moral dos tripulantes. Desperta um orgulho ver nos outros a admiração que por vezes perdemos pela magia que se torna quotidiana.


Acabei o dia a ver o pôr do sol na praia do Norte, ventosa e inclemente. No rádio do carro, Jonas acaba de marcar o seu segundo golo pelo Benfica, mas a única papoila saltitante que vejo desce lentamente para saltar à corda com o horizonte. Pescadores aproveitam os últimos instantes de luz, mas sopra uma força que não é fria, mas congela passado algum tempo. Com a máquina, guardo alguns instantes, preciosos, levo comigo um dia de passeio e de alívio, em que a minha mente divagou para onde deve: o presente. Demasiado tempo de futuro só pode levar ao passado e tento evitar como pessoa. Sines, no regresso, é muito diferente de quando a visitei: o castelo mantém-se, o mar também, mas já não me assombra. Os fantasmas estão comigo e o dia não os leva com o seu final. Mas em Sines, evito-me e só isso já a torna num marco geodésico no meu mapa de emoções, daqueles seguros pontos de orientação onde nunca me perco.

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