terça-feira, fevereiro 07, 2006

Road to the Oscars: "Munich"



Imaginem um filme que vos agarra pelos colarinhos e que durante duas horas e meia anda convosco de um lado para o outro com violência, aos socos e pontapés, abanões e repelões, sem parar um momento para que tenham hipótese de respirar. É mais ou menos essa a sensação com que saí do filme "Munich", a nova obra (-prima?) de Steven Spielberg, um objecto que parece por vezes sair totalmente da esfera Spielberguiana, daquele território que críticos pouco informados e gente cheia de preconceitos relaciona com o realizador norte-americano: um mundo mágico, cheio de sonhos e luz, onde tudo corre bem e o mundo é perfeito. Em "Munich", Spielberg torna-se sombrio, pessimista, cínico. Vira-se para o lado negro.

Toda a gente conhece a premissa: após os atentados de 1972, nos Jogos Olímpicos de Munique, perpetrados pela organização terrorista palestiniana "Setembro Negro", onde morreram 11 atletas israelitas, o governo de Israel decide ripostar à altura: organiza uma equipa de especialistas que partirão em busca dos cérebros dos atentados, 11 homens, com um único objectivo, matá-los. É a lei do talião levada à última das significâncias. Mas esta missão de vingança começa a ficar comprometida à medida que vão avançando de alvo para alvo: para além de serem perseguidos por outros serviços secretos, são perseguidos por eles mesmos e pelo sangue que vão derramando pelo caminho.

O género onde se insere é o do thriller político e de espionagem, com a equipa a viajar pelo Mundo em busca dos seus alvos (de Paris a Londres, passando por Roma, Beirute e Chipre), mas à medida que o filme se desenrola, e os operacionais se começam a questionar sobre o porquê da missão e a validade desta, a consciência começa a pesar. Avner, o líder (interpretado por um colossal Eric Bana, roubado da nomeação ao Óscar), um homem que parte em missão deixando a mulher grávida de oito meses, parece disposto a tudo pelo estado de Israel, mas a sua humanidade começa a perder-se até um ponto onde ele próprio mais parece um zombie que um ser humano; Steve, um sul-africano (Daniel Craig, o próximo Bond) é um homem cheio de raiva pelos Árabes e sem grande questões morais, cujo único valor é o do sangue judeu, a que não será alheia a sua nacionalidade; Robert (Mathieu Kassovitz) é o homem das bombas que acabam por dar problemas; Carl (o excelente Ciáran Hinds) trata de limpar as cenas do crime e é o único que questiona a legalidade da missão desde o início; Hans (Hans Zischler) trata dos documentos forjados e várias vezes se mostra disponível para dar a própria vida em prol da missão; todos eles se vão perdendo à medida que o filme decorre. Quem procura mensagens morais em cliché e apelos ao lado palestiniano ou ao lado israealita, desengane-se: não saí do filme contra uns ou contra outros, apenas a pensar na situação. O que o filme faz é, acima de tudo, questionar e humanizar, e talvez por isso apanhe tanta tareia: a tendência humana de maniqueísmo faz com que se tenham os bons como heróis indefectíveis e os maus como diabos. Os Árabes que aparecem no filme são homens normais: um é um poeta; o outro um homem de família; alguns apenas homens com ideias. Mesmo os palestinianos dos atentados de Munique são mostrados como jovens inseguros, mais controlados pelo medo e pela adrenalina que pela maldade. Além dos terroristas, humaniza os agentes da Mossad: retira-os do papel de anjos exterminadores (e a metáfora é utilizada pelo argumentista Tony Kushner numa das cenas do filme), prontos a cumprir ordens sem questionar e coloca-lhes dúvidas na alturas de premir o gatilho. Talvez seja isso que mais chateia Israel.

Tecnicamente, Spielberg mostra, à saciedade, porque é um dos melhores realizadores do mundo, desde a montagem à fotografia, passando pela estética dos anos 70 e por um domínio da narrativa e do suspense como ninguém: a cena em que um telefone toca e uma mmiudinha, filha de um dos alvos, o vai atender, é de deixar qualquer um stressado. No entanto, o maior elogio que se pode dar a Spielberg é que ele não tem medo de apresentar um filme assim ambíguo e explosivo nos tempos que correm, sendo que ele deve ser dos únicos que corre mais riscos vindos do lado israelita que do lado árabe: sendo, provavelmente, o mais influente judeu do mundo, e grande símbolo para as comunidades judaicas, o facto de alegar que as acções por vezes vingativas de Israel não são justas são um insulto para a cua prórpia comunidade. O tratamento que dá à figura de Golda Meir, colocando-a como principal responsável pela acção de vingança, é de um arrojo impressionante: trata-se simplesmente da "mãe" de Israel.

A crítica que escrevo, apesar de um bocadinho longa, é ainda assim pequena para descrver tudo o que retiro deste filme que vai bem para além desde estatuto: é um objecto de reflexão actualíssimo, uma obra-prima e provavelmente o melhor filme de Spielbeg, arrisco dizê-lo, desde "Saving private Ryan". Vai ser precisa uma década mais para se reconhecer o real valor deste filme. A mim, quer-me parecer que temos um clássico entre mãos, uma obra cuja importância é incontornável. Há dúvidas? Então vejam o plano final do filme e reparem num par de edifícios que aparece na linha do horizonte. Vejam lá se os conhecem.

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