Morreu o senhor Pimentel. Quase nenhum de vocês o conhece, ele era o meu vizinho do lado. Como é que ele morreu? Não sei. A mulher encontrou-o morto no sofá. Sossegado, quieto. Em paz.
Eu conhecia o senhor Pimentel desde que sou criança. Ele nunca me tratou pelo nome, chamava-me sempre "estudante". Não estava errado, mas nunca é agradável tratarem-nos pela nossa ocupação. Acreditava que eu ia fazer grandes coisas na vida. E eu nems equer usei traje académico... Para sermos justos, eu nunca soube o primeiro nome dele. Ele era sempre o senhor Pimentel. Hoje descobri que se chamava José; e mesmo a minha mãe pensava que era António. Estávamos tão acostumados a chamar-lhe senhor que nem pensávamos que ele devia ter, obviamente, um nome pelo qual os amigos mais próximos o tratavam. E nem era um nome complicado. Era José. Acho que lhe chamávamos senhor porque ele era, de longe, a pessoa mais cortês que eu já conhecia: cumprimentava toda a gente quando a via, era sempre o último a entrar no autocarro para deixar passar as pessoas à frente e era extremamente calado, muito metido na sua vida. Detestava a mulher, um, perdoem-me, pote de banha intratável (mais por ela ser intratável que pote de banha), mas adorava a filha. Estava com ela sempre que podia; e ele já tinha 70 e tal anos (nem a idade dele sei). Parecia uma figura deslocada, não pertencia aos dias de hoje, e aos homens actuais. Em muitas coisas, era um homem deslocado, como se tivesse vindo de um século XIX para o século XXI e não se tivesse acostumado a ser moderno.
O senhor Pimentel não andava feliz. Já não me lembro quando foi a última vez que o vi sorrir. Não que isso torne a sua morte mais piedosa. Não há nada de piedoso ou digno na morte. O corpo falha e acabou; mas certamente dá um certo ar de inacabamento à vida. Ali estava um homem, que nem era da minha terra, e veio até Ceira para acabar por morrer num sofá. Morrer num sofá é melhor que morrer atropelado por um comboio, e num desastre de automóvel; e no entanto, tenho a ideia de que a primeira coisa que ele fez quando encontrou a Morte terá sido dizer bom dia. O senhor Pimentel era tão educado que acredito piamente que ele fosse capaz de uma dessas.
quinta-feira, outubro 12, 2006
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