segunda-feira, novembro 13, 2006

"The departed"


Eu devo ser um dos poucos indefectíveis de Martin Scorsese que assume claramente que gostou dos dois últimos do Master, "Gangs of New York" e "The aviator". Quando se vai ler qualquer coisa acreca destas duas obras, escritas por pessoas que se afirmam fãs de Scorsese, as palavras desilusão, fracasso e vendido surgem claramente. Vamos lá a assentar as ideias: quando um dia um realizador sem ideias e novato conoseguir filmar com o mesmo vigor que Scorsese, que já é sexagenário, o mundo do cinema terá elevado a fasquia para um patamar perto da excelência. Exemplos: a sequência inicial de "Gangs of New York"; o quarto de hora final de "The aviator" e as sequências de um Howard Hughes demencial nesse filme. Scorsese não sofre os mesmos males de um Tim Burton, por exemplo, cujos fãs, mesmo em obras menores, se entretém a cantar louvores, porque Tim Burton é Tim Burton, o único realizador americano suportável, pois é artista. Por isso, mesmo um filme menos conseguido (na minha opinião) de Tim Burton, como "Planet of the apes" e mesmo "Sleepy Hollow", que é espantoso visualmente, mas com uma história que dá tantas reviravoltas que chega ao ponto da inverosimilhança, é elevado aos píbcaros. Deixem-me desiludir estes fãs com um exercício: se ganhar muito dinheiro com filmes é o que torna um realizador comercial, façam as contas dos box-office de todos os filmes de Burton.
Scorsese tem sido eleito como o alvo de gozação dos Óscares nos últimos anos, com as duas obras referidas, e com "The departed", apesar de estar lá batido este ano, fez uma das obras menos oscarizáveis da carreira; e apesar disso, a sua vitória afigura-se como provável. Paradoxo? Já lá vamos. "The departed" é um remake do filme de Hong-Kong, realizado por Andrew Lau e Alan Mak, "Infernal affairs", que conta uma história de infiltrados: um criminoso na polícia e um polícia numa tríade mafiosa chinesa. Os dois passam o filme a tentar apanhar-se um ao outro, até ao duelo final. A versão americana segue de perto a narrativa chinesa, excepto uma pequena mudança no final. Mas na versão ocidental, a acção passa para Boston e em vez de criminosos chineses, temos irlandeses. A Máfia é um tema constantemente associado a Scorsese, mas sempre na perspectiva italiana. Esta foi a primeira vez que o realizador se dedicou a abordar outras esferas criminais étnicas.
O filme acaba por ser um triunfo, há que admitir, e remete para outras obras de Scorsese: o início, no passado, relembra Goodfellas, e o personagem de Jack Nicholson, um vilão maior que a vida, recorda o Bill, the butcher", de "Gangs of New York". Embora seja um remake, nunca me passou pela cabeça, eu que já tinha visto "Infernal affairs", chamar-lhe uma cópia. Scorsese, um dos maiores virtuosos de toda a história do cinema, aplica no filme tudo aquilo com que eu aprendi a gostar das suas obras: um trabalho de fotografia programado para cada personagem (por exemplo, Frank Costello, de Jack Nicholson, embora em cena desde o início do filme, está na sombra até perto dos dez minutos, sem nuca lhe vermos a cara, numa opção estilística deliberada), planos de câmara prolongados, uma câmara quase sempre em movimento e que parece vir de nenhures para captar os personagens, uma montagem frenética e que aqui, e desde há muito tempo não acontecia, leva a montagem sonora a assemelhar-se à de uma fita independente e belíssimos planos fixos compostos. Quer-se dizer, mesmo com um filme de orçamento de 90 milhões, é impossível chamar a "The departed" um filme de encomenda. É Scorsese em estado puro, uma aula de cinema que dura duas horas e meia, sem explicações e que exige atenção.
De uma extrema violência, que aparece sem aviso e tão natural como suar, "The departed" conta com 3 actores de grande qualidade: Di Caprio, que parece ir explodir a qualquer altura do filme, devido à pressão a que está sujeito na sua condição de infiltrado; Matt Damon, calculista, cínico e ambíguo; e Jack, numa demonstração de domínio de estados de alma que pode ser resumido na cena em que o seu personagem tortura o de Di Caprio, onde passa da barbárie absoluta a uma compaixão paternal numa questão de segundos, sem deixar de ser credível.
Tentanto encurtar esta crítica, o filme acaba por ser uma história para seguir, e não uma história de personagens. No entanto, tendo o filme duas horas e emia, era difícil optar por este caminho, sendo que a complexidade das mesmas é dada em pequenos pormenores. Isto torna o filme recompensante para quem gosta de obras estimulantes e desafiantes nos detalhes. "The departed" traz Scorsese ao terreno a que nos habituámos a vê-lo e mostra que uma obra madura não é necessariamente académica. POr muito que o tema não seja, nem de longe, oscarizável, o sucesso eceonómico do filme, o seu prestígio e a sua óbvia qualidade, levarão este filme às nomeações. E já nem me interessa muito se Scorsese ganha um ou não: os mestres vêem-se pelos seus filmes, não por carecas dourados.

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