Não me consigo lembrar de quando me tornei morada da tristeza. Olho para as minhas fotos em criança e pareço feliz. A minha infância foi um evento de felicidade: interessa menos ter sido amado por quem me regou, mas mais ter sentido o desejo por existir. Uma fotografia no meu quarto, com os meus avós maternos, capta o meu olhar na máquina, enquanto, sem braços, o Carlos e a Lurdes me envolvem de uma qualquer maneira que não se explica bem em palavras num blog. A imagem capta-a, e esse enlevo descreve como a minha infância não foi um berço de melancolia inesperada. Não fui uma criança triste. Batalhas de laranjas com os meus tios, o prazer de devorar livros, estar no mundo aberto e fechado do meu quarto, partilhar uma amizade com um urso de peluche, guardar amigos, sentir-me contente com o que tenho, possuir curiosidade pelo mundo...
Não sei mesmo quando a tristeza começou a pagar renda, mas não nasceu comigo. Algures, pelo caminho, escancarei-lhe a porta. Nunca tive, até há pouco tempo, qualquer problema sério. Desconheço a origem, e isso perturba-me. Preocupa-me mesmo que algo tão destruidor se tenha instalado e me ocupe, em avanço cancerígeno, num desejo que mal posso controlar. Não chega a ser depressão, e aleija demasiado para lhe chamar apenas incómodo. Mal está. O desalento poucas vezes se consegue traduzir em palavras válidas. Tudo parece cliché, desde o poço negro até à maré escura, também porque ser macambúzio já se tornou num estado quase banal. A minha tristeza apenas é banal por não ser especial. Por ser normal para mim, já deixou de ser um estado, e muitas vezes é a vida que levo. Sobrevive-se criando outro em nós, que vive a vida por nossa vez, mas o eu com que temos de conviver à noite, antes de dormir, continua na sua pequenina masmorra, por si construída.
Lembro-me de uma noite, há um tempo, quando chorei no peito dela. A única razão pela qual recordo, e porque aqui o menciono, é o carácter único desse momento: transparente e puro, belo e destruidor. Vi-me como era. Vi como a tristeza faz parte de mim, e nos minutos em que a amei com lágrimas, entendi só em lampejos o que me deixa triste: não saber o que sou eu, não caber na pele que me concederam, nem sequer perceber bem àquilo a que pertenço. Dois braços deslizaram e construíram o que não tenho naquele aperto. Sobra a tristeza que carrego, e que nem sequer é desalento, ou desesperança, mágoa ou desânimo. Não é uma sombra, não é um lago, não é um mar. Não é amigo, nem inimigo. Não cai em cascata, não jorra em torrente, nem sobra mentiras ao ouvido. Nem sequer me seca, ou esmaga. Não me abre um buraco para me tapar com lençóis de tristura, não me deixa aflito, nem mesmo em pânico. Não goteja, não rebenta, não ganha raízes, nem sequer brita em flores do Mal.
Os fardos carregam-se, mas a tristeza nem isso é, porque a determinada altura, à escolha, podemos abandonar o fardo. Talvez a melhor maneira de defini-la esteja nessa noite onde me vi do outro lado do vidro esbatido, ou de cada vez que olho a foto do meu pai no recanto de casa onde os que não vivem continuam a existir em imagem. É cruzar o alívio da alegria de ter alguém que me compreende e onde me posso deitar no conforto de ser o meu próprio lar com a frustração de não poder partilhar os frutos do sacrifício de um homem, a surgirem pouco depois de eles terem partido. Um paradoxo onde habito e sou ao mesmo tempo actor num drama em dois actos: no primeiro, vejo-me como um solitário; no segundo, procuro a companhia de outros e retorço-me cadavericamente na minha alma quando não a tenho.
O terceiro acto deste drama acontece de todas as vezes que mastigo a tristeza de estar à frente de um polígono de terra e penso naquilo que quero dizer a quem não ouve. Nos poucos minutos em que consigo estar composto a poucos metros de ti. Quando a tristeza que procuro definir tem uma forma bem sólida, bem concreta e não me foge mais. Está ali, É um espaço de tempo onde a tua cara é a imagem dessa tristeza, e ao invés de me roer com esse buraco de não saber, posso dar à tristeza a tua forma. Talvez a memória do prédio triste que sou não me ocorra, mas sei qual o andar onde moras. Falta-me o espírito para ser feliz à distância de um botão, mas enquanto morares, sei que a minha tristeza não é fútil, nem destrói. Bóia, à tona de ti, também dela, com braços mais compridos do que o tempo.
E também com tudo o resto que cria o mundo espectral onde viver é uma ousadia e um acto arrogante de soberba. A tristeza mistura tudo isso. Até mesmo a hipótese de um dia dar lugar à alegria.
3 comentários:
Lutos...
A tristeza é um estado vicioso... Bem sei do que falo. No meu caso resulta de uma enorme insatisfação que sinto em relação à vida. É como se tivesse um buraco cá dentro que ainda não consegui preencher. Falta-me intensidade. Falta-me tudo.
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