sexta-feira, dezembro 30, 2005

Lição número 1: Chorar? Sim...

No meu tempo de vida, não morreram muitos parentes próximos; e por próximos, entenda-se que o grau de parentesco mais distante será o de um bisavô. A primeira foi a minha bisavó Ermelinda, que morreu mês e meio depois de eu ter nascido. Não quero acreditar que eu tenho sido um presságio agourento... O que conta aqui é que eu não tinha sequer notação do que era vida, quanto mais o que era a morte. Tinha mês e meio! Se me dessem leite materno e o conforto de um cobertor quentinho, era o Paraíso para mim. Embora ainda hoje se sintam os efeitos desse lgado de preferências (continuo a procurar uma mulher que me dê de mamar e que me aqueça debaixo dos cobertores) o certo é que nem seuqer tenho memória da cara da senhora e se não fosem fotografias, não saberia hoje como era. O segundo foi o meu bisavô Basílio e aí já tinha a bela idade de 12 anos, ou seja, já teria pelo menos a ideia do quer seria o mistério da morte e o que pode provocar o falecimento de alguém. Lembro-me que cheguei da escola (e, estranhamente, as mortes seguintes têm sempre algo a ver com esta instituição), e a minha avó paterna me deu a notícia. Sabem como é que que eu fiquei? Como se ela me tivesse dito "A cama está ali e ali atrás é a sala." Exacto, não me aqueceu nem me arrefeceu. Acho que perguntei apenas: "Quando" e "Os meus pais chegam tarde?", e fui tomar banho.
O segundo foi o meu avô paterno, Hélder, 2 anos mais tarde. Morreu subitamente, de uma trombose, seguida de um AVC. Mais uma vez, chegava eu da escola e a minha mãe contou-me que ele tinha morrido. O meu avô Hélder e eu não éramos muito próximos, apesar de ele viver perto de minha casa, contrariamente ao meu bisavô, que morava noutra localidade. Novamente, o mesmo sentim,ento de indiferença: não gostava muito do avô Hélder, tinha modos crispados para com os netos e eu também não era propriamente a pessoa mais ponderada e calma quando era adolescente, por isso dava sempre faísca. Novamente, indiferença. As tragédias comuns pareciam não ter efeito em mim. Até então, se chorara, fora em criança, por ter levaod uma palmada ou esfolado os joelhos. Podia sentir comoção, mas não conseguia chorar. Nem prendia, nem nada: apenas nunca fora capaz de chorar.
E continuei a não ser capaz de o fazer nos anos seguintes. Não que não tenha tido momentos dolorosos na minha vida, tive-os. Para além disso, tive-me como principal inimigo, o que é um grande problema para a minha estabilidade emocional. Ainda assim, estoicamente permanecia. Até que 2005 marcou o ano da derrocada dessa muralha. No dia 21 de Abril, saía eu da escola, vindo de dar uma aula de apoio a alguns alunos meus, quando o meue telemóvel toca. Era a mninha mãe. A minha avó Lurdes, avó materna, acabara de falecer. Ainda me custa escrever isto... Na altura, parecia que um comboio desgovernado tinha passado sobre mim. Aquela mulher era referência basilar da minha infância, literalmente fora a minha segunda mãe. Ela gostava de mim como se eu fosse filho dela, talvez por razões que agora não interessa aqui explicar. Mas tínhamos uma relação muito próxima e ela ralava-se comigo para lá do que é paranoicamente aceitável. E morrera. Vim para casa, meio abananado e quando cheguei, abracei a minha mãe, que chorava e nem sequer tive tempo para descansar: fui directamente para o velório. Não tenho plena memória do que se passou, mas lembro-me de estar junto ao caixão onde repousava, fria, a minha avó. Tocar na mão dela gelada terá sido, porventura, dos momentos mais doloros pelos quais passei nestes 23 anos em que vivi. Estava ali e eu não podia negar, nem enganar-me, nem iludir-me: estava morta. Branca, pálkida, fria: um cadáver. E o único sítio onde ainda vivia era na minha cabeça, onde relembrava todos os momentos que passara com elas, desde a infância, até ao último ano e meio, onde estive à beira da cama dela, onde sofria de um enfisema pulmonar. Ainda assim, com choro à minha volta, luto, dor, vozes de cana rachada entoando orações da tanga, eu permanecia como o centro inabalãvel daquele mundo, confortando toda a gente, com presença de espírito suficiente para faezr rir o coitado do meu primo Ricado, que nem sequer conseguira encarar a visão cadavérica da nossa avó. Nunca descobri como o consegui fazer, nem me parece que o descobrirei. Mas por uma vez na vida, senti-me felkiz por ser cínico, sarcástico, de conseguir fingir que sou distante. Por momentos, sei que levei conforto a pessoas que dele precisavam.
No dia seguinte, no funeral, repetiu-se a cena. Era novamente eu a torre de pedra que não desmoronava perante a tempestade e confortava os outros. Não queria ir ao funeral, detesto-os. Para além disso, sou agnóstico. Mas fui. Era a minha avó, porra.
E até ao fim caminhei, até colocarem o caixão na cova: fez-se a última oração, a terra aceitou-a lentamente, enquanto o coveiro despejava sobre ela a terra em redor do buraco. A multidão que compunha o cortejo fúnebre (e era muita gente) começou a dispersar. A certa altura, reparei que era eu o único a permanecer, a observar a última viagem da Maria de Lurdes Basílio. Nese momento, quando realmente me apercebi de que nunca mais a voltaria a ver, chorei. Deitei lágrimas como uma criança, e sem ninguém para me consolar. Fiquei ali sozinho, a olhar o buracpo já tapado, e exprimir aquilo que me fluía nos olhos. Pensei então em algo sobre o qual reflectira tempos atrás: se a Morte viesse e me desse a escolher qual dos vaós iria em último, eu escolhia-a sem pestanejar. Acho que também chorava um pouco por isso: por me aperceber de que não ia escolher, e que as pessoas boas vão e as más ainda por cá continuam muito tempo. A vida não é justa, pensei; e chorei por isso. Porque não devia ser assim.
Desde então, fui uma vez à campa dela. Custou-me. Desde então, não voltei lá, mas talvez o faça neste início de ano. Tenho saudades dela, mas agora não choro. Agora rio. Porque tenho a certeza de que a Lurdes gostava mais me ver a rir do que a enxugar água salgada das faces.

1 comentário:

ni disse...

arghhh...este teu texto lembro-m perigosamente algo por que também já passei...
definitivamente, chorar sim!
:'(