sábado, dezembro 31, 2016

Sitting at the dock of the bay


2016 cai na memória comum como uma espécie de peste negra enrolada em gonorreira, mas seria muito difícil, pessoalmente, que fosse mais devastador do que os dois anteriores. A estranheza de encarar a vida como uma sequência alinhada de ciclos solares é sempre bizarra, sendo os nossos dias tão aleatórios e desproporcionais no que nos devolvem que haver, de facto, uma ordem a domesticá-los é absurdo. Mas aqui sentado na porta de saída para o que vem daí, com o benefício de já ter vivido a incógnita, vejo uma ruptura. Pequena, mas existe, e 2016 foi de facto diferente do que vinha vivendo. Um pouco por acasos felizes, um pouco por opções tomadas tantas vezes sem o mínimo de plano firmado e racional (e que, neste sentido, são também acasos felizes), este ano trouxe-me várias pepitas de chocolate, com maior ou menor quilate,  e que se for frio e puser a minha tradicional visão de um mundo arder cuja única solução é regar com combustível de lado, não se passou assim tão mal quanto a isso.

O que se destaca? No primeiro dia ano, recuperei a minha melhor amiga, o que só podia ser prenúncio de que nem tudo seriam colheradas de óleo de fígado de bacalhau; e em grandes planos e objectivos, completei o trabalho para um dos locais mais emblemáticos da minha cidade e que deverá perdurar durante uns tempos na memória de quem o visita; inscrevi pela primeira vez o meu nome na autoria de um livro, escrito a meias com uma das pessoas de quem mais gosto e com uma talentosa jovem que conheço há anos e que volta e meia precisa de umas marretadas para entender o quão boa é. Fi-lo ao serviço de uma instituição onde passei mais de metade da minha vida e que me deu bastante. A divida foi um pouco paga, mas acima de tudo, escrever este livro foi um prazer, seja pelo trabalho com as minhas colegas, seja por me ter devolvido um gosto antigo pela memória, pelas histórias alheias num fascínio quase infantil pelas peripécias de um tempo que não o meu, na reconstrução passo a passo de uma narrativa da qual também fiz parte num impacto pequenino, mas que aparentemente houve quem não esquecesse. Participar neste livro foi também reconhecer, de uma maneira egocêntrica, o efeito borboleta da minha presença na vida, principalmente de outros. O que, depois de um ano em que saí basicamente convencido de que era uma silhueta só com formato atravessada por toda a gente e sem deixar marca, foi refrescante.

A decisão de viajar até ao lá longe da Ásia Central, a um local totalmente fora da minha zona de conforto, foi nova ocasião para me surpreender comigo e acima de tudo pensar que tenho um desejo de morte cada vez mais crescente; no entanto, depois de quase meio ano ainda a escrever pequenos relatos do que por lá vivi - e, lamento informar, ainda faltam alguns - e de publicar fotos que têm suscitado a admiração geral e a curiosidade por um país do qual boa parte dos meus conhecimentos nem sequer ouvira falar até Agosto, mostra o quanto esta viagem acabou por ser importante para mim. Tal não se deve apenas à semana e meia (e não, não foi ano e meio) de cirandas por aqui e por ali, mas acima de tudo pelo que vivi numa terra diferente e pelo que soube ser capaz de fazer. Avançar para um desconhecido, embora com rede, fez-me perceber que não estou completamente morto por dentro, que algo se mexe e encavalita, que a minha curiosidade pelo mundo permanece e me agita, que ainda pretendo espreitar o que existe do outro lado da cortina. Se nunca estiveram removidos a sério do vosso elemento, façam: conheçam gente diferente em locais que nunca pensaram, reorganizem a vossa visão do mundo, entendendo que o surreal existe, mas não é necessariamente mau: apenas uma ocasião para se voltarem a sentir bem com aquilo que possuem e tem, que boa parte dos vossos problemas são de primeiro mundo e se todas as dores têm validade, o prazo de umas é maior que de outras. Vim do Quirguistão com uma melhor noção do que sou, até para outros que não me conheciam e de quem ouvi coisas nas quais não me reconheci à primeira. Trago dessa terra, acima de tudo, imagens que recordo quase diariamente, de momento e paisagens, de pequenos instantes de humanidade e histórias de gente diferente, e também algumas das melhores fotografias que tirei porque há locais que se apresentam sozinhos em estrondo sem que precisemos de fazer muito.

Houve desilusões e micoses no escroto, mas a pedido de alguém, não me demorarei muito tempo nelas. Tudo o mais foram projectos pouco abjectos, amizades redescobertas ou feitas, riscos e medos vencidos, outros medos ganhos e escaldados, a ideia de poder ser útil e lampejos ocasionais de desejo e vontade pela minha pessoa, que incendeiam a barriga como um prato de chili, mas se espalham em labaredas linguarudas pelo resto do corpo no agradável torpor de um beijo granada, Também há disso na vida e que continue a haver para todos nós, que se tudo isto for uma guerra e as trincheiras são as horas de cada dia mau, que a paz se sele com um beijo selo, enviando-nos ao remetente do ano que se segue num postal ilustrado cujas cores somos todos nós. No caso deste blog, eu limito-me a traçar a moldura: quem pinta sois todos vós quem lê, quem gasta aqui tempo, quem fica a pensar quando se vai embora. Bom ano, amigos.

segunda-feira, dezembro 26, 2016

Cronistão 18: A casa da montanha


Não sei se alguma vez se viram aos pés de uma coisa com sete mil metros. Uso a palavra "coisa" porque pode ser tudo o que imaginam que se ache na disposição de ter de metros sete milhares, cabalísticos ou não. Se nunca usufruíram do prazer, posso dizer-vos que é uma enormidade e que nada na vossa vida em altura se pode sequer comparar ao espanto que é o sentimento de uma insignificância abençoada, a descoberta de que há limites a ultrapassar e que o topo do mundo será sempre ilusório. Penso que vos é conhecido o meu gosto por montanhas, trepá-las e conquistá-las, fotografar o seu relevo, recorte e poder, simplesmente ficar cativo de um hipnotismo de apneia, a falta de ar sempre que se contempla o topo, a fartura de vida quando olho em redor e há tantas elevações que o meu próprio coração é o retrato de uma taquicardia orográfica. O Quirguistão, para um guloso como eu, é basicamente um rodízio de rocha e os próprios Soviéticos reconheceram o fascínio quando escolheram baptizar a maior montanha do seu território com o nome do homem que fez mover a revolução soviética. Hoje tem o nome de Avicenna, no Tajiquistão, mas por aqui, não há quem não lhe chame Lenine, Lembram-se do fetiche que este país tem por estátuas do seu próprio santo e anjo vermelho? Pois claro que tinham de passar isso para outro plano, literalmente. Claro que, em 1993, um outro pico chamado Ismoil Somoni (para a Rússia, Pico Estaline) revelou ter mais 300 metros, mas isso são pormenores.


O Pico Lenine estende-se pela fronteira com o Tajiquistão  e é, descubro depois, uma dos mais fáceis picos do mundo para escalar acima dos sete mil metros. À medida que nos aproximamos, fica essa ideia e vê-se, ao longe, uma base de montanha para alpinistas. Ninguém quer subir pelo lado Tajique, país que sofreu recentemente uma violenta guerra civil e ainda tem má reputação. Vemos alguns alpinistas, mas nenhum em subida. Contemplam, como nós, a monstruosidade daquela montanha. É Verão, mas está ainda completamente coberta de branco, como se um lençol a tapasse num sono de hibernação permanente e a certa altura alguém (que não Lenine, que está em Moscovo à vista de todos) despertasse do topo. Encho os pulmões de oxigénio, puro mas denso, fazendo arrepiar o meu sangue e trazendo-me um tipo de cansaço que só em altitude se encontra.Há uns vinte minutos que saímos do local de dormida e a a marcha é lenta, pelas muitas fotos que há para tirar, mas também porque a marcha se faz por trilhos apagados, destruídos pelas águas do degelo e não planos. O céu nebulado ameaça uma chuva que nunca vem e inundo-me do aparato fulgente da Natureza, que vejo em caldeirões de montanha onde se cozinha neve, pequenos lagos que mais não são do que passos de gigante que deixaram para trás espaço para repouso das águas e também nos olhos de quem sabe que a máquina fotográfica é apenas uma testemunha silenciosa e imperfeita para o que assistimos. Deve ser esta a reacção mais repetida que encontram nos meus relatos, mas é impossível não senti-lo. Conseguem vê-lo nos olhos dos guias locais, que são amigos de bar destes montes e paisagens, que com eles partilham conversas no balcão do quotidiano e que não conseguem cansar-se de engolir com as pupilas este manjar visual.

Na base do Lenine, há um glaciar, de onde brotam águas que no Inverno abrem uma garganta. Esta, quando a visitamos, leva pouco volume aquático, mas dá à paisagem um tom irreal. A temperatura baixa enrola-nos como um yo-yo e caminhar é a única solução não apenas contra o mundo extraterrestre, mas também os tremores de frio patrocinados por uma orquestra de rumba hipotérmica. Há luvas, há barrete, há um grosso casaco e ainda assim, não conseguimos competir com a grossa pelugem dos vários iaques que encontramos em manadas. Dominam o planalto, que parece um plástico de bolhas com os seus altos e baixos e quando nos observam, trazem avisos mudos. O nossos respeito é imediato, aprendi a nunca questionar bichos territoriais cujos cornos são o dobro da minha cabeça e penso que o cliché da Ásia Central é isto: alta montanha, iaques, neve e assombro. Alguns clichés existem porque são de facto verdade, e na verdade, repetindo a palavra, o cliché de aqui escrever isto funciona porque qualquer assombro ao qual não queiramos encontrar a artificialidade do voo poético só pode mesmo ser despachado em frases que fazem parte do nosso código genético como viajantes, Quando o sol se põe, já estamos perto do acampamento e deito um último olhar ao gigante pico que não tossiu enquanto ali estivemos nem espirrará depois de irmos embora. Descansa plácido, imune aos nossos destinos, alheio às minhas preocupações e anseios e devaneios e nunca se importando com as dores que carrego e que na viagem me fazem, por vezes, dar solavancos na culpa do meu prazer. É como se me observasse sem julgar, mas também sem ajudar, e com isso me avisasse que a vida é isto, uma gigantesca montanha cheia de cortes e recortes, com avalanches ocasionais e topos desmedidos de conquista.


Ou talvez seja apenas rocha. Um dos princípios da montanha é que te dará apenas e só o que procuras e que és. Tudo o mais, fica para quem vem depois de ti.

terça-feira, dezembro 20, 2016

Crónicas 17: Uma habitação no fim do mundo


Não têm que querer saber isto, mas gramam com a informação na mesma: uma das minhas viagens de sonho é descer a Argentina pelo litoral de Buenos Aires até à Patagónia. Desde que vi um documentário no Odisseia há uns anos que a visão se formou na minha cabeça - um carro que desce um semi-plano, nem planalto nem planície, o mar sabendo-se ao longe, um céu azul mas nem tanto, com a cinza arrastada de vaporosos cúmulos, vento criando furacões dóceis entre as janelas do carro e aproxima-se a última cidade antes de tudo o mais, um ponto semi-civilizado que é o último bastião populado antes de entrarmos na vastidão da terra que se estica até beijar ao longe os dedinhos do pé das montanhas. Não faço ideia se a sensação é igual à real, mas assim o realizei; e quando, depois de um longa descida montanhosa, desfilei até à entrada de Sary Tash, foi exactamente o que vi. Sabia que o mar estava lá longe, bem longe, sem salitre no ar, mas aquelas elevações cobertas de neve, quase miragens, quase prova tangível da capacidade que o mundo tem em se superar, eram tão andinos que quase jurei estar na América do Sul como se levado por um ritual xamânico. De Sary Tash cheira-se o Tajiquistão, que não está a mais de 40 km de distância, e aspira-se o ar que se pode, tendo em conta que nos encontramos aos 3200 metros, algo que já vai sendo normal nesta invenção dos homens que chamamos de Ásia Central e me fui habituando a não ter nome, apenas um instinto, uma sensação baldeada nos pés quando a calco, nas mãos que pressiono a minha máquina fotográfica e com ela quero transportar coisas que nenhuma máquina está preparada para guardar.


Não sei o que é Sary Tash; é com certeza uma espécie de qualquer coisa, mas não estou certo de quê. Há um posto de gasolina abandonado, mas os barracos denunciam gente que não quis fazer do fim do mundo casa, apenas forte de resistência. O meu carro estaciona para podermos almoçar e logo vemos na rua crianças, nenhum adulto. É como se estes tivessem simplesmente desvanecido, deixando as infantis criaturas à solta e entregues aos seus próprios engenhos e passatempos. Numa mercearia ali colada, quatro garotas, a mais velha com uns dez anos, a mais nova não tem mais do que 4, gerem a loja sem falar um ponta de inglês e são uma pessoa com oito pequenos braços que trata de tudo: o dinheiro está numa caixa de ferro debaixo do balcão e quando os produtos se encontram nas prateleiras mais elevadas, cadeiras e o velho truque das cavalitas não têm segredos para as nossas merceeiras. Não compro nada e rebusco na mochila a minha velha amiga lata de atum, que me entretenho a comer com um garfo roubado num hotel em Naryn, bebendo a paisagem impressionante do Pamir ao longe e sabendo que é ali o destino. Sary Tash é um ponto fundamental na região, centro populacional único num raio de dezenas de quilómetros e embora o aspecto seja menos do que lisonjeiro, respeito isso. Significa "Pedra amarela" em turcomeno e se olhar em redor, orbitando sobre mim mesmo, vejo China, Tajiquistão e Uzbequistão. É terra de todos e sente-se qualquer coisa de surreal, aliás quando reparo num garoto que enfrenta o alcatrão em cima da sua bicicleta, pergunto-me de onde vem, para onde vai ou sequer se tem esses objectivos e se conhece que é cidadão de tudo e de qualquer lugar, que lá longe na capital nem se lembram dele nem de quem é, nem de Sary Tash e os seus casebres de zinco acossados pelo vento, como cães que te ladram se te perderes na neve, um garoto que só vê os pedais e o guiador, desconhecendo o ritmo giratório da corrente. Quando saímos de Sary Tash, penso nele e nas trabalhadoras meninas de balcão, no nada que rodeia Sary Tash, do tudo que pode ser acordar uma manhã, olhar a montanha e sentir que o mundo se restringe ao que a vista alcança e de como se poupam tantas chatices quando assim contemplamos o espaço.


Depois de apanharmos um guia, entramos nas já conhecidas estradas de terra batida e cascalho do Quirguistão. O objectivo, diz-me o Zé, é o lago Tulpar, onde dormiremos novamente numa base de montanha de yurts. Num poste de alta tensão, um puto montou um balancé de corda e diverte-se a abaná-lo com o movimento do corpo, sorrindo. Se eu tivesse esta vista todo o santo dia, sorria também, uma terra acastanhado clara com vegetação rasteira, os dentes da montanha fazendo-me sentir como se rolasse dentro da boca do mundo e pontas de neve confundindo-se com fiapos de nuvens. Os meus olhos consomem-se e nem reparam que a estrada vai acabando na sua serpente num repente, a vista abre-se e o poder do Pamir esmaga, com a ponta meio escondida dos descomunais sete mil metros do Pico Lenine a dobrar o dia como se a rocha bruta tivesse efeito sobre o tempo. A temperatura desce consideravelmente e subimos mais uns 500 metros, só para risadinhas. Há tempo para arrumar as coisas dentro de uns yurt já aquecidos previamente, gente simpática que faz disto vida a trabalhar e recebendo estrangeiros. O lago Tulpar nem é bem um lago, apenas o que sobra do degelo e a minha vontade comichosa e descobrir a montanha. Quero saber se a Patagónia mudou de lugar, se a Terra do Fogo incendeia os países da Ásia Central com o mesmo impacto com que esta terra me tem posto os olhos a arder, transformando todos os momentos em que penso em L num fogo posto permanente, de uma saudade que me rói a cabeça, abre o coração a todas estas experiências e congela todas as minhas lágrimas não vertidas nas imagens que levo daqui. Na base de um altar rochoso, rezo da única maneira que saio: amo, a L e a experiência do embasbacamento, que é exactamente igual, porque ambos me lembram que estar vivo é um direito, mas mesmo que me deixe torto, há-de sempre deixar o meu lado esquerdo em brasa,


terça-feira, dezembro 13, 2016

Cronistão 16: Paisagens


Osh fica para trás, depois de uma gincana por entre o caótico trânsito da cidade e o objectivo é deixar novamente a civilização para trás rumo ao sul do país. Passaremos a noite no lago Tulpar, uma pequena massa de água na base do pico Lenine, um mastodonte montanhoso que, diz-nos um mapa com informações topográficas, estica o pescoço acima dos 7000 metros. Depois de uma semana instalado nas quirguizes terras, a paisagem torna-se familiar e não falo apenas da orografia: a cadência incessante das montanhas que obriga a minha retina a fazer flexões; a tomada das estradas por manadas e rebanhos, tão merecedores do espaço como qualquer veículo; velhos e novos que vêm a vida numa pausa permanente, como se o tempo apenas se notasse nas rugas da pele, no enrijecer dos músculos, numa noção de que há mais segundos do que poeira e que só o sol muda numa terra em que tudo o mais se mantém no reconfortante sossego da permanência. No meu lugar instalado, tento encontrar os sonhos atrás dos olhos destes transeuntes quando nos cruzamos nos escassos segundos em que o carro rola. Nas ocasiões em que paramos, a sensação oprime-me.


Num conjunto de casebres à beira da estrada, que por conformidade devem chamar de aldeia, encontramos um grupo de garotos cujo mais velho não terá oito anos. Somos ocidentais, diferentes, logo ganhamos o direito a gente ficcional, personagens de histórias que lhes contam quando vão dormir, tão no mundo da fantasia quanto o Pai Natal. Uns brincam com pedras, outros levam recipientes na mão, têm tarefas a fazer, mas quando paramos, correm para nós. A tendência é tirar fotografias e pelo canto do olho, reparo numa criança que deve ter descoberto a utilidade total das pernas há uns meses apenas. Têm curiosidade a olhar-nos e vêem um grupo de estranhos com máquinas ainda mais estranhas, desconhecidas, apontando para os amigos. Num gesto automático e de pura imitação, coloca defronte do olho uma garrafa vazia que tem na mão e filma-nos também. Macaquinho vê, macaquinho faz. Primeiro de pé, depois de joelhos, aproxima-se e afasta-se, filma um e depois outro. Vê o mundo por uma garrafa e calculo que a ideia que tem da vastidão da experiência humana é semelhante, a cabecinha de uma criança a descobrir uma novidade que seria quase tão incompreensível para alguém dez anos mais velho. Quando os deixamos para trás, o mais velho corre ao lado da carrinha em passada larga, sorrindo, dizendo adeus. Fotografo-o, no momento em que não toca o chão, não voa mas está pelo menos fora do mundo e é assim que recordo esta garotada suja, mal vestida, descalça mas incrivelmente sorrindo, feliz na benção da sua própria ignorância do futuro. 


O ponto alto literal da viagem é a passagem pelo Pico Taldyk, uma elevação montanhosa que encontra aos 3615 metros razões para me deixar em estado orgásmico. Qualquer que seja a direcção que o nosso olhar consome, o prazer vem logo atrás, de mão dada com o espanto. Situado nas montanhas Alayn, o Taldyk é atravessado por uma anaconda de alcatrão chamada M41, mas que é conhecida no resto do mundo por uma nome bem mais assustador: a auto-estrada do Pamir. Vinda do do norte do Afeganistão, que fica a pouco mais de 100 km daqui, foi um daqueles projectos megalómanos construídos por um governo local, mas oferecido de bandeja a grupos de guerrilheiros que a patrulham e aí exercem o seu poder criminoso. Aqui, felizmente, estamos longe desse foco de violência, mas os perigos não acabam. Durante o Inverno, é muito comum esta estrada congelar e não são raras as derrocadas e as quedas de camiões centenas de metros em desfiladeiros, quando um veículo de várias toneladas vale tanto como nós quando se encontra com o gelo. Temos até a oportunidade de ver os restos de alguns, paz às suas válvulas. No cimo do Pico, um pequeno obelisco relembra Yuri Grushko, engenheiro que supervisionou a construção desta rota nas décadas de 20 e 30 do século passado. Mas à nossa chegada salta mais à vista um pequeno altar com velas, flores, objectos ofertados e alguns sinais cabalísticos que convidam a especulações sobre bruxaria e feitiçaria. A pouquíssima distância vemos três casinhas de pastores, cujas ovelhas se limitam à sua rotina de comer e ruminar num valezinho entre montanhas. Será este o ponto de encontro dos Illuminati da Quirguízia? Talvez; mas quando olho para a longa descida que nos espera, mais de 30 km inclinados negativamente até Sary Tash, lembro que em Portugal se comenta que todos os santos ajudam. Na Ásia Central, porventura, é mais seguro pedir auxílio às criaturas sobrenaturais da montanha. Assim como assim, estão bem mais à mão e aposto que nenhuma delas é gerida por um grupo mundial de pedófilos.



terça-feira, novembro 29, 2016

Cronistão 15: A benção do Lenine


O regresso a Osh fez-se a pé. Os 5 bravos que haviam ficado para o desafio do "trepomonte", carregadinhos da adrenalina da conquista até aos olhos e contactando em simultâneo com o seu macho primordial e  fêmea precavida e escaldada de várias viagens com condutores da Quirguízia, fizeram-se ao caminho caminhando. O toque para a penúltima oração do dia ressoava quando passei ao lado da maior mesquita do país e com o sol descendo lentamente no beijo do ocaso, senti-me exótico, mesmo vestindo t-shirt e fato de treino. O objectivo que traçáramos era exactamente o contrário do religioso: visitar a maior estátua de Lenine do mundo. Não há tramp stamp mais emblemático do domínio soviético do que a figura sólida do líder bolchevique original olhando as massas lá do lato, vigiando a revolução e talvez questionando porque raio é que estes países gostavam tanto de lembrar tempos de ditadura mantendo o maior símbolo da URSS em destaque nas suas cidades. Era a terceira estátua desta figura história que víamos e não seria a última; arriscava-me a dizer, aliás, que todas as cidades deste país adoptaram uma. Talvez cristalize a esperança da Revolução, um qualquer instinto que insufla a crença de que daquele bronze sairá o camarada Valdimir Illych Ulianov anunciando "Malta, foi só um ensaio. Agora é a sério e vamos cumprir tudo o que prometemos". Talvez o que conte não é o que há, mas o que pode, não o existiu mas que provirá, nunca a desilusão, mas sim uma antecipação total da segunda oportunidade. Como Portugal, também o Quirguistão que se falta cumprir a si mesmo.



De facto, estando na base, a coisa é bem imponente. Aponta o caminho de algures, talvez o rumo para Ekaterinburg ou simplesmente para longe da Geórgia. A estátua cruza-se com o sol e Lenine volta a brilhar por momentos. Ouvimos então acordeões e concertinas e a nossa atenção é puxada de imediato para um parque ali perto. O Zé comenta que deve ser festa, talvez casamentos, e não está errado. Três casais, dezenas de convivas, 4 músicos a animar tudo e uma procissão de limusinas Hummer: é o que temos. Parece ser tradição local combinar aquele parque como ponto de encontro e não entendo muito porquê, é discreto e banal, não se vêem flores e quase é um pedido de benção a Lenine: pai dos povos, por favor, que o casamento seja supimpa. Misturamo-nos  pelas caras mongóis, algumas maquilhadas, algumas já ébrias e afastado dos meus colegas, cada um com o seu foco, encolho-me receando as reacções à presença de um ocidental de câmara na mão. Venho vacinado das minhas experiências anteriores, mas o nó foi desatado pelo néctar de Baco e sou até puxado pelo braço: fotografa-me, devem dizer-me em russo, fotografa-nos a todos. Olha esta careta, topa esta palhaçada, agora dançamos todos, fazemos comboinho, anda, é festa. Há rodas da danças, rapazes novo com passes bailarinos armados aos cucos, palhaços da comédia, riam-se todos, vivam os noivos. Assim me atrevo e até filmo, as festas estão todas em caos atadas e passo de uma para a outra sem dificuldade. Fotografo gente, o que quase sempre me é alérgico e capto na cara de todas as noivas uma tristeza que não engana. Podia dizer que é um segredo feminino, mas também nos homens encontro um sabor melancólico, não sei se escravo, no olhar, na postura, na pose, uma pequena intuição de que ali não foi o amor quem assinou a vontade. Para quem se habituou ao cliché dos países muçulmanos do outro lado do planeta, o choque é grande: mulheres maquilhadas, vestidos levemente decotados, coloridos, sorrisos e alguns flirts e os homens sem barba, sem gravata, não antipatizam, chamam-te e tentam perceber-te até. Um tenta encetar em diálogo duplo linguístico uma troca de impressões sobre máquinas fotográficas: é o homem que cumpre essa função na festa e deve ter feito um esforço para não se rir com a simplicidade do meu canhão. Chega outra noiva, é a quinta pelas minhas contas e esta sim, de cabeça tapada, corresponde ao que pensávamos. É também a altura em que abandonamos aquele microcosmos e quando, mais tarde, vejo o resultado dos meus cliques, não só não fazem justiça ao pandemónio e ao surrealismo da experiência, como provam que eu estou bem a fotografar naturezas inamovíveis.


Enquanto tiramos as últimas fotos, salta-me à vista uma garotinha que não tem mais de 16 anos, contornando a praça em que nos encontramos agora, defronte do Lenine venerado. Joga à apanhada com o nosso olhar ou às escondidas com o meu estonteamento. O cabelo longo, louro, não se vê muito por aqui e denuncia a sua origem eslava. Osh, no sudoeste do país, é muito mongol, Ásia Central no esplendor dos olhos em bico e pele morena e beleza desta jovem destaca-se por um exotismo que no nosso Portugal seria mais banal do que exótico. É num relâmpago que nos entreolhamos, estamos a pensar no mesmo e a atentar no mesmo. Ela desaparece uns minutos e quando reaparece, vem na nossa direcção. Em Osh, somos bichos tão estranhos quanto ela e a bizarria atrai-se como velcros que se colam. Chama-se Katarina, é russo-cazaque e com a sua blusa branca e saia pelo joelho, é mais rara por aqui do que um Yeti. Em mim, a vergonha de achar esta pequenina mulher atraente instala-se e só o Zé, nosso guia e nosso homem com lata, se atreve a meter conversa e a pedir fotos. Tanto eu como o António e o Rogério deixamos levar-nos também. Torna-se impossível não querer levar uma recordação de uma pessoa que verdadeiramente se destaca e de alguém que porventura procurou num quarteto de ocidentais terreno comum, gente que a percebe. Conversamos uns minutos, trocamos e-mails. Na despedida, um adeus e na minha mente, penso em como os escrúpulos devem ser tudo nesta região e aquela bonitinha Katarina teve a sorte de apanhar quatro mosqueteiros da decência. Outras não terão tanta sorte e num dia onde andei fora de mim, desço um pouco à terra, aos problemas do mundo, ao que me está longe quando no meu sótão teclo ao computador, mas que aqui é tão possível quanto um casamento por encomenda.



Muito depois de ter regressado ao hotel, o travo de malícia curiosa e inocência de espanto da Katarina vai acompanhar-me e quando à noite espero o comboio do sono, olhando para o tecto, é impossível não ter presente o que lhe reserva o futuro, passado no Quirguistão.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Um rastilho


Algo estranho se estabelece quando a tua figura sentada decide ficar a menos de meio metro de mim que, sentado também, estou mais aninhado do que outra coisa. Torna-se dificil comandar aos olhos que se orientem quando te estabeleces como terceiro pólo do planeta. As linhas do teu corpo são mais tortas do que direitos, no sentido em que me perco por atalhos se não agarro com força as minhas divagações. É às vezes um movimento do cabelo, noutras até um pequeno gesto com a mão, a estática do teu olhar ou simplesmente a cor que enche a sala quando te ris, pode mesmo dançar-se no acaso de um toque ou na palavra que dita com um sentido pode tão bem ter outro se me der à fantasia, entretenho-me mesmo com o modo tímido com quem o teu peito se preenche no teu vestido, com uma imaginação própria, autónoma, um trejeito casual de sedução, arrastando menos o meu olhar e mais a minha própria respiração num ritmo análogo e semelhante.

Pode ser tudo isto o que me transforma em mais do que um, nem sei se chega a dois, mas mais do que um de certeza: aquele que é e aquele que quase é, que quase revive se as tuas mãos alinhavassem a minha cara com um novelo de ballet de pontas, pontinhas sedosas de carícia, pequeninas margaridas que despontam vapor de Zéfiro dos meus poros, do pequeno lençol de células que me cobre e no qual te puxo na minha imaginação para que te enroles. Se a tua face descobrisse no meu ombro uma razão para se auto-justificar em esplendor, se o teu limite fictício em forma de mulher se aproximasse menos de meio metro e mais do que te permites, se reencontrasse na minha própria forma menos ficções e menos limites, se as tuas palavras enganchassem os meus ouvidos para atracar cá dentro, no pavilhão dos impulsos, se fossem convite de suspiros numa pequena torrente de saliva, se a minha língua fosse um barco, se a tua fosse uma onda e se as nossas bocas fossem tudo menos o Oceano Pacífico.

Mas estás sentada a menos de meio metro de mim; e embora esteja aninhado, na minha cabeça sou um gigante desperto. A maior pena que cumpro é a realidade do mundo.


segunda-feira, novembro 21, 2016

Cronistão 14: Tarde cultural


O Park Tata, junto ao rio Buura, é um dos pontos de encontro para quem caminha por Osh. Quando, depois de almoço, decidimos resmoer é para encontrar famílias e grupinhos caminhando, alguns aborrecidos, alguns simplesmente automáticos; a certo ponto, encontro umas banquinhas que quando reunidas tentam ser o prelúdio de um parque de diversões. Numa, um trintão tardio cruza os braços ressalvando a musculatura digna de uma cordilheira andina e olha-nos duro e desafiador. A seu lado, está montada uma barra horizontal, bem boa para puxar umas elevações em suplesse. Uma plaquinha em russo tenta descrever o que se oferece, caso paguemos o estipulado e julgamos que é um exibicionista. Fixe, penso, eu pagava 50 com só para te ver sofrer e quando me preparo para puxar as notas, alguém tem a mesma ideia. Ele lá gesticula que afinal não, é um desafio: homem contra homem e quem fizer 30 mais rápido, fica com o dinheiro. O riso que se segue tem tradução universal e está visto que não será ali que o iron man encontrará competição. Eu sou o mais novo do grupo e não sei se me conseguiria levantar duas vezes do chão sequer, pois os meus braços são a mais definitiva prova de uma herança somaliana nos meus genes. Deslocamo-nos então para a banca do lado, onde se apresenta um jogo mais lúdico e menos bárbaro: duas garotinhas convidam-nos a atirar setas a uma parede onde diversas caixinhas guardam balões prontos a rebentar mediante a nossa pontaria. O vosso amigo esfrega as mãos e embora lembrando-se que costuma ficar sempre em último em jogos de dardos, o que interessa é espalhar a boa vontade entre os povos. Portugal fica mal visto, pois em seis setas, metade acertam o alvo. Os meus colegas seguem-se, com resultados melhores; a minha actuação espalhafatosa deixou a multidão ansiosa de me ver segunda vez e a turba manifesta-se: quer ver Bruninho novamente a fazer palhaçadas, porque quem não quer? Todo o meu grupo de amigos portugueses, mas isso não interessa; e portanto, chamando a mim as pontiagudas ferramentas de espectáculo, abro o livro: cada tiro é antecedido de antecipação e frenesim, um pequeno gesto, uma pequena piada, gestos largos e excessivos que comunicam universalmente. Aplausos, risos e sorrisos, um pequenino orgulho preenche-me e sinto que vim para longe fazer algo, animar o pachorrento quotidiano desta gente. A última seta será à filme: viro-me de costa e com um cálculo rápido, sai rápida da minha mão. O estouro do balão dissolve-se nos aplausos da plateia e enquanto ergo os braços, todos riem, todos somos humanos, todos apreciamos um cromo. O Ocidente e o Oriente não se encontram apenas no Bósforo.


Apanhamos dois táxis para o Sulmain Too. É uma espécie de nave espacial que se estatelou num monte à saída de Osh e alguém do grupo acredita piamente que tal é mesmo um objecto fora deste mundo. Na base do monte, vejo a mesquita muçulmana e recordo o que li sobre este ser um local sagrado do Islão. A história é que o venerando e venerado Maomé descansou por aqui uns dias e achou, na sua finita paciência, tempo para regar umas rosas. Rosas do Islão, afinal os trvadores provençais chegaram bem mais longe do que pensava.  É impossível não me sentir estranho ao largo deste monstro de betão, soviético até aos alicerces mas cuja envolvência rochosa cria em mim uma dissociação estranha.  Mas o local não é uma instalação artística de Giger, é mesmo um museu. Quando entramos, entendo o snetimento de um ocidental por aqui: uma placa anunciando bilhetes a 25 com muda de imediato para 150 apenas e só com a nossa aparição; e lembrem-se que Portugal não deixou aqui herança. Não julguem. No interior, interessantes apontamentos sobre o zoroastrismo e a vida selvagem pré-histórica misturam-se com a celebração de uns importantes petróglifos numa verdadeira salada russa de História e Paleontologia. O ponto principal de atracção é uma enorme janela que dá para a cidade, com formato de antena parabólica. Projecta no interior do Sulmain Too a aura alienígena que esperamos de um bólide espacial e a decoração, usando desenhos estilizados dos famosos petróglifos, não diminui a sensação, pelo contrário. No exterior, a varanda permite uma vista onde Osh se apresenta como urbe de verdade, extensa, larga, barulhenta e confusa, e ao longe, fictícia, traçada apenas nos mapas, a fronteira com o Uzbequistão imagina-se e estamos a tão poucos quilómetros que se consegue sentir a Rota da Seda em movimento.


No regresso ao centro da cidade, instala-se um desafio masculino: em redor do Sulaiman erguem-se vários pequenos montes e nas nossas cabecinhas, desenham-se já brutais fotos a ser tiradas. Uma breve conversa leva 4 bravos a meter pés à ladeia de terra, em busca de aventura. Cada um escolhe o seu caminho, mas as macacadas estão garantidas e serpenteando por rocha e cascalhinho, os nossos pés encontram na ponta de um rochedo um motivo para que o corpo pague a viagem. Num acaso não planeado, a nossa chegada combina com a de um trio de americanas com quem nos cruzámos no museu. São três irmãs, a Marguerite, a Caroline e a Bonibelle e provam que alguns estereótipos de comédia romântica sobrevivem e estão bem de saúde: a primeira é nem é gira nem é feia, antes pelo contrário; a segunda dá a ideia de poder despoletar uma segunda guerra de Tróia; e a terceira, a mais nova, é gordinha, girinha e outros -inhas e -inhos variados. Se lá atrás ficara pouco impressionado pelo facto de 3 garotas de Seattle desconhecerem a existência dos Rage against the Machine, Marguerite salva a honra do convento quando revela que não está na Ásia Central de férias: pertence ao Peace Corps e é médica, trabalhando como voluntária em aldeias. As suas duas irmãs mostram-se envolvidas politicamente, Caroline até faz parte dos vários voluntários que trabalham para Hillary Clinton e quando o nome Trump é falado, entre risadas, apercebemo-nos de várias Américas. O trio é do estado de Washington, tipicamente democrata, e falam do mundo como se fosse algo familiar, destroçando alguns estereótipos sobre a insularidade norte-americana.

Quando nos despedimos, a coincidência surge e sabemos que estaremos no mesmo local no dia seguinte. Talvez nos encontremos, e eu penso que sim, um mundo tão grande e tão vasto e dois continentes encontram-se no cimo de um rochedo em Osh, apenas e só por maluquices e desafios. Numa outra altura, a Rota da Seda era uma auto-estrada do mundo, e ainda hoje, esses mesmos percursos históricos continuam a unir um planeta que das diferenças não consegue fazer unidade; excepto as tres irmãs Leeds e quatro portuguesinhos: o cansaço é universal, a coincidência é cola e quando decidimos todos descer, os trambolhões são um abraço neste ponto de encontro.


quinta-feira, novembro 03, 2016

Cronistão 13: Rock the casbah


A luz é branca, conheço-a mas num segundo estranho. A lentidão ergue-me em solavancos e difuso e baço, um lamento em árabe consegue sobrepor-se ao barulho do trânsito e ao zumbido entre os meus ouvidos. Chamam para oração e no quarto de hotel, a hora é de pensar na peregrinação por Osh, onde me encontro. Aqui estou num real hotel, dezenas de andares, corredores que lembram "The shining", elevadores apertados, funcionários que sorriem simpáticos impessoais. É a primeira cidade a sério que encontramos na nossa viagem e só a capital é maior. O seu domínio sobre o lado quirguiz do vale de Fergana, um dos locais mais venerados e disputados da Àsia Central, nem se questiona e 3000 anos de idade dão-lhe a honra de ser a mais velha cidade do pais. Quando caminhamos nas suas ruas largas, há dezenas de pessoas que avançam connosco e no nosso oposto, sinais de que nesta zona mais a sul abandonámos a maioria eslava e existe uma influência muçulmana vincada. Nada que oprima: mulheres de beleza impossível levitam e existem longe de nós, mas a poucos centímetros de um toque que confirme que não são aparições, lenços tapando as cabeças mas pouco defendendo os ocidentais de traços faciais que envergonhariam a mais bela caligrafia corânica e colocariam frases a arder apenas e só porque de outra maneira não se queima a atracção. Podíamos passear em Osh simplesmente para desfrutar disto mesmo, embora a cidade, em si,

O que existe também em abundância é um caos organizado em desorganização permanente, o que se espera depois de dias a conhecer os hábitos rodoviários das quirguízias terras. Cada um por si e vamos ver no que dá, semáforos em entroncamentos que acendem em simultâneo e oferecem uma visão semi-apocalítica que faz da Rotunda do Relógio um paradigma escandinavo de organização. É preciso ver como todos se escapam, como se mete o nariz para testar as águas e depois arrancar prego a fundo pelo buraco que se descobriu. O caminho que fazemos tem como objectivo um outro local onde a desorganização foi acordada com um aperto de mão seco e sincero e desde que ninguém se atrapalhe, todos podem simplesmente estar em reboliço: o mercado de Osh. É o maior bazar a céu aberto da Ásia Central e uma prova de como a vontade humana é, tantas vezes, uma lei eficaz quando existe bom senso e disponibilidade. Antes de descer as escadas, o meu olhar alcança tendas e panais, contentores e casamatas que se espalham por dois quilómetros e meio em ambas as margens de uma imitação de rio: são cinco quilómetros de barafuste, solicitações constantes aos transeuntes, apelos que sobrevivem e fazem girar todos os dias a vida de centenas de mercadores e vendilhões. Do meu lado direito, vende-se comida; do meu lado esquerdo, uma miscelânea de safanões e o que mais possa descobrir. Descendo umas escadas, estou no labirinto e o único minotauro que encontrarei será Vladimir Putin, estampado em t-shirts com a garantia de um posto que está cima dos czares: Mr. President. 

Há toda uma outra disposição social nesta cidade. As pessoas querem estar contigo, falar-te, impingir-te. Apontam para a tua câmara e puxam-te o braço, fotografa-me e leva-me contigo, vê bem o que aqui tenho, não queres umas tâmaras? Velhotas puxam para o seu lado garotas e não têm vergonha. Tudo é barato com despudor, mas não resisto a brincar ao regateio, apenas porque é um jogo com Liga dos Campeões nesta zona. As compras saem-me baratas: 350 coms por duas echarpes, um caderno por 5 e ainda trago alguns chapéus tradicionais locais por mais uma pechincha barata. Estou aviado de prendas, mas quase deixo caí-las com tanto movimento agitação, alucinação até. Cristiano Ronaldo é deus do negócio, cara e corpo estampados em mochilas e até tapetes, como se o sue nome pudesse oferecer a quem pisa uma fracção do talento dos seus pés. Descobrem-nos portugueses, "Ronaldo, Ronaldo, Europa" mais do que uma vez e repetindo, atravesso e fotografo, não consigo ser turista simples. Os recantos descobrem-se, um lado escondido do mercado revela-se e quando da sombra dos toldos vejo a luz do sol, a parte dos ferreiros revela barbas simpáticas, abertas, solícitas, convidativas. Todos são de todos, entendem-se e vivem, sou apenas mais um corpo que tão simples atravessa e existe com um tempo limite neste deserto de grãos de areia que são gente e cujo vento sopra em todas as direcções em afecto e resolução do mistério de choque de culturas, que não só não chocam como dão o agradável choque do clique.

Depois de comprar souvenirs gastronómicos (chás para a Raquel, especiarias para a Joana), cruzo-me com um vetusto e desenrascado senhor que carrega para um carro de mão dezenas de pães redondos. Entre a minha fotografia e um sorriso forçado que aprendi a armar para completo desarme de quem fotografo, sou surpreendido pela genuína simpatia deste quirguiz, que me estende um estupendo e apetecível pão. Quando procuro a carteira para pagar, nega, gesticula que não, ri-se e aponta para a minha barriga. "Está com fome", pensa e eu leio e estava mesmo. Entre mim e dois que me acompanham, vamos partindo pedaços e comendo, depois de profusamente agradecer a um santo vulgar. Nunca comi pão tão bom nem que me soubesse melhor. Tão sincera foi a oferta que senti na minha boca despertar toda a verdade, de falar sem medo, de simplesmente ser sem me mentir. O pão fez-me olhar para toda a experiência como aquilo que era: uma viagem, como a que fazia, como a que me carregou em ombros ao mercado. O mundo são pessoas em translação e eu apenas estou aqui para me deixar levar; e ainda com meio mercado para destapar, foi exactamente o que fiz.




terça-feira, outubro 25, 2016

Cronistão 12: Marks


O Marks é um tipo meio franzino, não muito diferente de muitos indivíduos bronzeados que durante o Verão são pescadores e o resto do ano fazem uns biscates: a pele engelhada, o passo gingão, os gestos feitos à laia de comunicação são tão portugueses quanto quirguizes e quando se apresenta vestido como um golfista escocês a pretexto de ser o nosso condutor de uma viagem longuíssima entre Naryn e Osh, nem acredito. Desenvolto, pega nas nossas mochilas e malas para arrumar no carro. São seis e meia da manhã e depois de um pequeno-almoço tomado, é hora de sair. Marks tem colegas, vamos em dois carros, mas é ele quem lidera a pandilha e gosta de enturmar. Quando paramos para apreciar a paisagem, quer tirar-nos fotos; ganha confiança suficiente para nos pedir para aparecer, e depois nem pede. Não é ostensivo, é apenas um tipo muito à vontade com as coisas e meio diferente de todos aqueles locais que não sendo rudes, são distantes. Marks gosta de amigos e sabe apreciar a viagem. Não faz má cara quando lhe dizemos que queremos fotografar e ainda recomenda dois ou três sítios bem catitas para captar as montanhas.


Na sua cabeça, não faz um trabalho: calhou ter um carro e malta estrangeira precisando de boleia. No entanto, fica claro que a viagem não é nossa, mas dele. Numa descida em gravilha, Marks vai com cuidado, mas ao aperceber-se de outra viatura em sentido contrário, parece dirigir-se ao seu encontro. inicialmente, achamos que se está a meter connosco, mas a trajectória não muda um nico, e o outro condutor apresenta a mesma atitude relaxada. Noto que estamos na beirinha da estrada e que mais dois centímetros e a beirinha é um à beira de cair umas boas dezenas de metros. Não falo a sua língua, mas digo o seu nome e Marks só sorri. A colisão é iminente e finalmente o segundo carro guina para a direita, deixando que o nosso passe. Marks trava de súbito. Entre nós, há olhares de terror partilhados, alguma perplexidade e quando o nosso amigo abe a porta com velocidade e sai disparado, preparo a máquina para o modo de movimento: vou assistir com certeza a pancadaria. Falso alarme: Marks abraça o outro condutor e afinal, são amigos. Era uma brincadeira, porque aqui a morte é um passatempo quando o tédio não pode ser opção. Insistem que lhes tiremos fotos, ambos nos dão endereços online e marram no envio das imagens, garantimos que sim, mas posso dizer que meses depois ainda não receberam nada. O amigo de Marks deixa-nos ver o seu Honda verde escuro e lá dentro, uma mulher toma conta de umas sete ou oito crianças, duas delas bebés de colo. Ela tem um ar meio desolado e a visão das máquinas fotográficas esbofeteia-lhe a cara.


Alguns quilómetros depois, após certas montanhas nos terem deixado abananados, Marks desce-nos à terra e envereda por um caminho que conduz a uma aldeia circunspecta. Paramos aqui? Sim, e se ao início a perplexidade nos invade, a constatação de que estamos no local de origem do nosso Marks deixa-nos sorridentes. Somos encaminhados até sua casa, conhecemos a mãe e uns familiares e convida-nos a partilhar mesa e comida. Eu conheço-me e evito um possível incidente diplomático recusando com simpatia a oferta. A maior parte do grupo comunga do momento e pão, queijo e leite fermentado trocam de mãos. Parece que nos conhecemos há algum tempo e no entanto faz seis horas que saímos de Naryn, e nem sabemos bem quanto falta para Osh. Haverá branca pelo meio, com uns carros, e um condutor idoso cuja adrenalina já não funciona enquanto se arma em Mad Max, mas naquele momento não sabemos e naquela casa de tijolo, que vai a maio de uma reconstrução, tudo é agradável e pacífico e nem uma insinuação para que deixemos uma moedinha estrada aquela aparência de comunhão mundial. Penso em como viajar é também isto, estar com quem não se conhece e fingir a plenitude da proximidade, falsa e oca, mas agradável. Cumprimentar velhos amigos de segundos e alapar nos azulejos de alguém com quem nem sequer conseguimos comunicar. Sairmos de nós, mais do que sairmos de algures: é assim que defino viajar.


quinta-feira, outubro 20, 2016

Cronistão 11: Que força é essa?


Os processos biológicos do ser humano funcionam sempre fora do nosso relógio e quando te vês obrigado a parar uma viagem de carro no meio dos montes, sem qualquer cidade por perto, apenas e só porque os teus intestinos tocaram a sirene e precisam mesmo de ser salvos, és lembrado que por muito livre arbítrio que deus nosso senhor tenha dado ao ser humano, és em última instância escravo do teu corpo. A carne não só se diverte como ordena e pede e obedeces e pronto. Durante vários anos, a minha relação com o meu tracto intestinal, se me permitem esta divagação depois de duas crónicas tentando descrever beleza que não pode ser colocada em letras, foi sempre de enorme entendimento. Se eu não queria, ele não puxava, e na quase totalidade das ocasiões em que me via obrigado a permanecer fora de casa, longe do assento pálido de cerâmica a que me habituei a chamar de "trono real", o meu abdómen dormia sem ressonar. Quando resfolegava, uns breves momentos de meditação ajudavam a controlar; e só mesmo no limite dos prazos é que a evacuação se dava. Nos últimos anos, porém, o diálogo tem acabado e este processo de paz é mais parecido com a situação do Médio Oriente. Ora, portanto, estou eu a quase 3000 metros de altitude, frio a picar, um ventinho que trabalha como uma navalha, horas contadas para chegar a Naryn, com muito do caminho numa estrada de calhau e eis que sinto o apelo que temo. Tento gerir, mas logo noto que é impossível: os espasmos multiplicam-se, o desconforto aumenta. A caravana pára e depois de encontrar um rolo de papel higiénico, disparo pela porta procurando um abrigo. Sem sucesso, é uma planície e eu penso que porra, tanta puta de tanta montanha alta como tudo e não há um único montinho onde me posso esconder. A solução apresenta-se como a traseira do veículo, e aí aninho e sou servo do meu sistema digestivo. Uns minutos chegam para me reduzir à minha insignificância celular e quando regresso ao calor de um carro, deixo o meu vestígio mesmo no meio da estrada, ali no ermo, ali no nada. Rei por um dia, tonto na estepe. Acho que é qualquer coisa deste género.


Reencontraremos o alcatrão uns bons quilómetros à frente, mas só depois de entrar na montanha russa: sobe-se e desce-se, enormes rectas debaixo do sol, 14 cotovelos em curva sob granizo inclemente em Agosto, a luz dançando nas frinchas das montanhas, tapa e descobre das nuvens, fileiras de montes alinhadas geometricamente como pedaços de um lego que ninguém montou e parece ter brotado do chão. A viagem demora umas oito horas e quando damos com as vermelhas elevações que rodeiam Naryn, passando um túnel que as atravessa, sabemos que estamos perto. Esta cidade foi outrora vital na Rota da Seda - estamos a menos de 100 km da China e a maior parte dos turistas que se aventuram por esta região juntam todos estes "istões" num pacote. Naryn é ponto de passagem obrigatório para quem chega e vai, por uma questão prática. Deve o nome a um rio que a atravessa e é atravessada por uma longa avenida chamada Lenin, através da qual descobrimos que o grande papá comunista deixou uma grande impressão neste local: simbologia da época, bustos e estátuas... A Avenida é larga e limpa e apenas quando perdemos algum tempo a percorrê-la a pé nos apercebemos de que a cidade esconde perpendiculares onde domina o entulho. No entanto, vemos crianças a brincar felizes, pessoas vendendo fruta e legumes num mercado espontâneo, mulheres que à janela estendem roupa e nos acenam, um velhote bêbado metendo conversa em russo com gente que só fala a língua de Camões e Chagas Freitas. Acho sempre incrível como estas pessoas passam por cima de dificuldades e obstáculos que me fariam queixar durante minutos a fio e simplesmente vivem e fazem o melhor que podem com isso.


Quando regresso ao hotel, aproveito para visitar a sala de estar, que a há. Uma jovem vê um reality show local com o namorado e não querendo perturbar, sento-me numa poltrona fora da sala, onde converso com quem cá está. Vejo passar várias pessoas, de várias cores e vestimentas e penso como mesmo numa cidade de passagem, sem grandes pontos de aparente interesse, se encontram mundos e imagino as histórias que cada um ofereceria se nos sentássemos a conversar. Penso em como as viagens são mais do que o chão que se pisa e as paisagens que se colam à retina, de como deixamos outro tipo de vestígios que não biológicos e que as pessoas e os olhares também ficam connosco e se explicam ainda menos do que as emoções. Esteve-se e observou-se, contactou mesmo sem falar e quando no fim de um dia o cansaço se esbate e o nosso corpo se entrega à cama, parece que no quarto pairam também essas vozes e experiências e que só dormimos mesmo sozinhos se não pensarmos em outrem, ou não nos recordarmos que nos milhares de distância que nos separam de quem conhecemos, existe uma viagem constante de afectos. Desligo o telemóvel pouco depois de ler o teu beijo e quando adormeço, tenho a certeza prática de tê-lo sentido nos lábios.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Cronistão 10: Banquetes


Fiz 20 anos de escutismo, grosso modo, e já dormi em várias modalidades de barbárie controlada. Tendas pequeninas e grandes, igloos e canadianas, o relento verdadeiro com cúpula pintada pela noite e casinhas grandes e pequenas onde só dormem os bichos, e até tenho para contar coretos e bancas do peixe. Já dormi em quase todo o género de locais que possam pensar, até camas. No entanto, foi a primeira vez que chamei refúgio a um Yurt, circular e branco, uma fortaleza de lona que parece querer sumir ao primeiro sopro ventoso, mas resiste sólido e protector, prometeu a quem o ergueu que não me ia deixar mal e assim é. Por fora impera o pálido monocromático, mas desvenda-se o panal que tapa a entrada e há um festival de cores, espalhadas em múltiplos tons, retalhos irmãos que formam cobertores por debaixo de mim, posteriormente por cima de mim e até em meu redor. A tenda é para 5 e mais tarde dormiremos encostadinhos, principalmente quando chegarmos de uma sessão de fotografia nocturna às estrelas que nos deixará cones de gelado. Mas agora o sol acabou de se pôr e estou no umbigo deste pequeno mundo interior, com toda a gente arrumando e desarrumando e eu simplesmente abstraio-me. Apenas regresso a mim quando chamam para jantar, e o o restaurante é igualzinho, branco por fora e espirro colorido por dentro. Variedades de comida espalham-se por uma mesa horizontal e corrida, frutos secos, pão compotas, biscoitos, rebuçados, salgados e carne seca, até que chega o prato principal que é um peixe enigma, pergunto-lhe como foi preparado e não me sabe responder. Na minha boca, segreda-me água doce e sei desde logo que veio do mesmo lago que fotografei anteriormente, O que deliciou os meus olhos consola agora o meu estômago e confunde-me a boca. O pão é também grande amigos para alguém como eu que sempre viu na comida um alçapão de incómodo.


A noite de sono que se segue é interrompida por um metrónomo sonoro, batuques de dedos no tecto do Yurt. No meu estremunho, identifico chuva e o meu corpo simplesmente se estira, relaxa, goza o prazer de estar tão longe de tudo com um prazer que me faz regressar a casa. Sinto isto sem pensar, e virando-me para outro lado como que apago e quando regresso a mim consciente, já são seis e meia da manhã. Sou chamado pelo despertador do telemóvel para fotografar. Vestido a rigor para um baile de baixa temperatura, sinto que o Yurt foi afinal nave voadora e aterrei noutro lugar. O cenário rochoso que me rodeava no dia anterior está agora aconchegado por um grosso lençol de neve, como se o meu sono fosse de hibernação e despertasse num Inverno permanente. Receio até caminhar, com medo de que esta viagem esteja ainda a decorrer, mas uso a máquina para fixar isto, ninguém acreditaria se contasse a diferença que seis ou sete horas podem fazer num local. As nuvens cinzentas quase me despenteiam com dedos e o lago reflecte a sua cor e murcha o verde dos pastos. Cavalos aproximam-se da água e param, ruminando a verdura, dispondo-se em contas geométricas, cada um a sua própria manada. São arcos defronte da escuridão das águas, contra-luz da brancura das neves e funcionam como uma demarcação entre terra, lago e céu, garantindo que são reais, mas em simultâneo aumentando a irrealidade desta visão. Enquanto caminho fotografo e vejo, ao longe, a luz solar furando de quando em vez, procurando aquecer-nos. O frio é uma capa que me desconforta, mas afirma vida em mim. Clico tantas vezes que a máquina corre o risco de se partir e quando sou insignificante aos olhos de uma montanha tão invencível que esmaga sem tocar, sento-me na terra aveludada, acolhedora e choro sem ninguém ver, porque não consigo suportar tanta beleza sem ter uma reacção física que me trema de alicerce a telhado, o mundo como uma casa tão inatingível que só consigo lá viver abdicando da minha armadura. Cada lágrima é uma benção e um agradecimento, uma alegria por estar vivo neste momento, longe de tudo o que não vale a pena e ser prisioneiro voluntário de um carcereiro chamado mundo. São coisas do mundo, que não se podem ver ao longe, como dizia a canção... e com a voz que me resta, não vou saber contar. Restam-me imagens, fotos e este sal que salta de mim porque sou demasiado imperfeito. Corre para o esplendor que o arrancou e é seu.


Subitamente, levo dezenas de calduços em simultâneo, pequeninos, Bolas de gelo brancas caem sobre mim e estou debaixo de uma tempestade de granizo em Agosto. O Yurt é a salvação e protegendo a máquina debaixo do meu blusão, com pouca dedicação ao meu próprio bem-estar, enceto rápido sprint para me proteger. O abrigo afasta-se a 300 metros e a minha corrida interrompe-se aos 50 quando me apercebo de que o ar se tornou mais denso e respirar um acto de coragem quando feita em esforço. Aos 3000 metros, viver custa um pouco mais, diz o teu corpo, como se lamentasse que para seres verdadeiramente feliz e mereceres o sorriso que tens estampado na cara tivesses de sofrer. Dar valor ao que consegues através de uma dor que é travão. Em passo acelerado, acabo por chegar à tenda. A mochila recebe a máquina, limpa e intacta, e nos cobertores, recubro-me ainda a sorrir. A dor passou e ser feliz é também deixar que o que dói corra para longe de nós, para uma altitude onde não tem outro remédio senão estacar e morrer à fome. O resto são montes nevados soprando feitiços que nos aumentam 100 vezes mais do que somos, sem que seja preciso entoá-los. Basta pensar neles e agora mesmo, enquanto escrevo isto, as nuvens rodeiam minha cabeça e estou certo que aquelas luzes que se dirigem para mim são de um avião. Daqueles que voa bem alto.

sexta-feira, outubro 07, 2016

Cronistão 9: Não ter palavras



Quero que façam um exercício e que na vossa biblioteca de memória encontrem o local mais belo que deram a provar aos vossos olhos.Não se apressem e instalem-se confortavelmente, percorrendo com delícia todo o mundo visual com que foram privilegiados na vida. Escolham devagar, com critério, com gosto. Quando se decidirem, recordem-se de como o vosso corpo se alterou nessa presença, como a respiração simplesmente se transforma, de como a vossa existência, nuns segundos, entrou num local onde a vossa mente jamais pensara subir. Enquanto se entregarem a estas linhas, mantenham no vosso centro essa trepidação do ser e tornem-se em mim no momento em que um Honda preto desceu uma ligeira colina para contemplar uma larga planície à beira de um lago onde pasta gado, principalmente cavalos. Estou a 3000 metros de altitude, a erva de um verde suave e cândido, atravessada por veias de terra onde os veículos podem entregar-se ao masoquismo mecânico. À minha frente, uma boca bem aberta, defronte de montanhas, enche-se de água e recusa-se a engoli-la. Chamam-lhe lago Song-Kol e o seu tamanho é modesto porque antes vimos uma mastondôntica massa aquática sem aparente fim. Saio do carro, tendas brancas chamadas yurts formando a espinha dorsal da vida da comunidade nómada que aqui habita, uma procissão de panos coloridos estendidos em cordas de roupa na pauta musical do vento, lançando-nos melodias que nem se escutam nem são visíveis, mas passam-nos pelas mãos.


Esqueço-os e às pessoas e fico estacado, assim como quem atrai não raios mas o etéreo, e concentro-me em como vou conseguir traduzir mais tarde o indizível. É o centro do meu mundo hoje, sinto-me tão anão  que me entrego ao cenário como um megafone que grita o esplendor. O lago e as montanhas esmagam, mas também são uma casa onde me considero sempre convidado. Tenho medo de chorar porque naquela mistura de cores e de desconhecido, de um domínio do mundo tão extenso e tão inconcebível que sou uma peçazinha sem importância num quadro perfeito, sinto-me fraco demais para suportar algo tão belo e excelso, tão único e especial, tão fora do meu entendimento como pessoa que as juntas que me suportam tremem e quase soçobram, mas agarro-me à máquina, aproveitando um sol que me acaricia com a ponta da língua e passo para o clic os clacs que me abalam. Aguento estóico, finjo apenas maravilhamento comum, mas na verdade tapo-me com um largo cobertor de espanto. Mais tarde, quando tenho alguns minutos estendido e posso percorrer tudo isto por extenso, corro todos os locais que dei a mim mesmo como provas e desafios. Apareço, feito espectro, no Cântaro Magro e atravesso a Nave da Mestra como se nada me importasse; a serra da Lousã abraça-me e nela reencontro tudo que nela me molda em plasticina do mundo e atira-me enrolado para os altos picos da Madeira, as levadas suas, a velha floresta do Fanal em nevoeiro, rolo como um tonto até aos Picos da Europa, a Ruta del Cares, rocha bruta, e noutros locais onde fui tantas vezes mais eu do que me cabia ser. Este local, entalado entre o lago e picos de oxigénio denso, é talvez o mais belo onde estive até hoje e sei de imediato que falharei na altura de transmitir a realidade do que me parece irreal e surreal.


A delícia é muito visual, mas rodeia-me uma cultura nómada que se instalou no espanto como quem já não se admira. Na Ásia Central, este é um modo de vida desde os primórdios e embora veja artefactos menos milenares como jipes, ainda há aqui muito de genuíno. As tendas pálidas, a ordenha das vacas, buscar água ao lago montando num burro, ver crianças com uns dez anos dominando o dorso de cavalos como se tivessem visto na vida selas antes de fraldas... A sensação é a de que esta gente, vivendo em altitude e distante de um traço de civilização a sério, segue o ritmo do sol, seja na duração dos dias ou dos ciclos. Chega uma altura em que recolhem lonas e animais para descer aos vales onde o Inverno não chega em brancura nevada. É um modo de estar e ser mais dependente dos caprichos naturais, mas onde o relógio interior badala com mais vontade; e quando fotografo quatro garotos de idades diferentes que brincam e se metem connosco, alinhando em "macaquinhos do chinês" sem tradução, vejo sorrisos que me lembram, vagamente, a criança que já fui. Não sou um deles, mas de máquina em punho, finjo ser. Aqui, no meio de um ponto que não existe para todos os efeitos da credibilidade, cada um pode ser o que quiser e sem memória.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Cronistão 8: o trânsito da paisagem


Em Balkychy, chegamos ao ponto intermédio da ligação entre Karakol e o lago Song-Kol. Como outras cidades quirguizes, o império russo fez surgir no meio de nenhures um entreposto que se tornou cidade, assumindo importância estratégica nos tempos soviéticos. Mas com a queda da URSS, veio uma travessia no deserto que é quase literal, porque em redor é o que praticamente existe. É aqui que mudamos de motoristas e até que cheguem, almoçamos numa coisa que nem tasco é: tem quatro paredes, um tecto e um balcão, mas parece ter sido um improviso repentista de alguém que encontrou um espaço fechado e se apercebeu de que havendo uma estrada ao lado, não se perdia nada em montar um comes e bebes. Não consigo perceber muito bem o que há disponível para comer, entre a ausência de menu, a falta de alguém que fale inglês (tradição local) e o aspecto daquilo que aparenta ser comestível. Assertivo, regresso ao carro e puxo de uma lata de atum e quem chama ao bacalhau fiel amigo, claramente nunca se viu por terras de exotismo para a boca. Sentamo-nos os nove numa mesa redonda, o centro de uma sala perdida nas traseiras e a decoração é tão kitsch que me fere os olhos - fotos panorâmicas das montanhas saídas dos anos 80 e sobre a mesa, duas fitas peganhentas, barradas de mel, servindo de pega-moscas e resultam, pois estão carregadinhas de insectos capturados, à vista próxima de todos. Qualquer coisa neste espaço dá fome.


O Talgat chega e vai conduzir-nos, com o primo, ao destino. Numa refrescante mudança, exprime-se em língua britânica de forma competente e é alguém com quem se consegue ter uma conversa que vá para além dos dedos e dos grunhos. Fala-nos da Turquia, onde estudou e se formou em Relações Internacionais. No entanto, a sua ambição é criar uma empresa de transportes com o primo, para levar turistas a todos os cantos do país. Acredita que o futuro está nesta área. É um rapaz motivado e ambicioso, mas percebe pouco de portugalidade: o seu jogador preferido é o grande maestro Rui Costa, mas apoia o Futebol Clube do Porto, naquilo que é uma heresia que quase consegue separar famílias em Portugal. No entretanto, os quilómetros deslizam o cenário e as areias barrentas dão lugar a paisagens de verdadeira montanha, com pedra sólida e bruta, o cinzento espaçado de verdes rasteiros e altitudes que travam na garganta com o freio do espanto: várias vezes chegamos aos 3000 metros e ao longe, os picos nevados do Tien Shan, a cordilheira mágica que da China entra no Quirguistão sem bater à porta ou pedir licença, alerta-nos que da terra partimos para o céu, terreno proibido. A estrada de alcatrão dá lugar à gravilha, algo que enfrentaremos durante 50 km de um caminho que noutros países seria apenas para jipes, mas que aqui, em espantosa inversão de valores e regras, é perfeitamente aceitável para qualquer veículo ligeiro, no caso um Honda. O carro queixa-se e tosse a certa altura, gemendo o furo no pneu direito traseiro. Felizmente foi num raro pedaço plano. Talgat e o primo procedem à reparação e nós, como bons turistas ocidentais, fartamo-nos de fotografar enquanto eles trabalham. O dia pede-nos isso, oferecendo uma luz solar cujo cortejo de ocasionais nuvens transforma o planalto no couro malhado de uma das muitas vacas que vamos vendo incrustadas na paisagem. Quando a viagem prossegue, sabemos que há tanto para registar, mas não podemos parar a cada motivo. É o grande drama de fazer turismo neste canto do mundo: aqui a Física inverte-se e o espaço é muito maior do que o tempo - Einstein encontra, aqui, a morada da sua loucura.


No topo de uma das montanhas, consigo afastar-me e simplesmente ser absorvido por tudo. Nunca por completo, sou demasiado sujo e complicado para pertencer a esta pureza simples de ser, mas o suficiente para me apagar uns momentos na busca da minha respiração mais cadente, num momento de altitude que me assenta bem. Vejo quilómetros de um vale se abre por entre montanhas, a luz do sol servindo de tapete, cristas rochosas que não ameaçam mas acolhem o olhar para poder ser iludido pela felicidade fugidia do sorriso automático da beleza. Penso que é isto, que tantas vezes é vida completa num pequeno momento estático em que nos deixamos fazer parte do que nos é superior, sem fés ou crenças, superior apenas porque sobreviveu e conseguiu, ainda assim, dominar. É a beleza da montanha e julgo não haver algo de mais belo para ver. A questão é que ainda não chegara ao lago Song-Kol, estando muito longe de imaginar que por uma vez o meu cérebro se iria apagar e as palavras se perderiam entre as estrelas.

sexta-feira, setembro 30, 2016

Cronistão 7: Fadado para morrer



Desde o primeiro dia que nesta terra distante a morte me tem passado pelos olhos. Não vestida de negro, foice a tiracolo, mas a maneira que nós, humanos por natureza e inclinação, arranjámos para mantê-la presente como fantasma: campas alinhadas em cemitério, últimas moradas de gente no momento em que expira ficou mais sem-abrigo do que abrigada. Se por cá reina a opressão do branco, campas como filas de almas penadas a ocupar os cemitérios, aqui as necrópoles são quase literais cidades de morte. A semelhança de alguns túmulos com casinhas de brincar é por demais evidente e as lápides fazem-se acompanhar de zero representação. Há diferenças substanciais em relação ao Ocidente e a primeira é a localização. Habitualmente, estão fora das povoações, e por fora quero dizer uns dois ou três quilómetros, pelo menos. Encontramo-las à beira das estradas, raras vezes delimitadas, apenas ajuntamentos de memória. As cores da paisagem dominam e aqui, nesta ligação que fazemos entre Karakol e a nossa próxima dormida, são de vermelho arenito. Por fim, não se usam fotos: há retratos esboçados do ente falecido, tentando talvez apanhar-lhe mais o espírito do que a forma. Quando olhamos fixamente, as faces esfumam-se um pouco, tremem e as pessoas voltam à vida em arremedos. É irresistível parar e tirar fotos. Do nosso lado direito, a margem sul do Issyk-Kul contrasta com a oposição de brutais montanhas, guardiãs dos mortos, respirando a paz da última morada. Noto que todos têm aqui lugar: há campas muçulmanas, ortodoxas e até comunistas, presumindo eu que o ateísmo também alapa morada. Muito ecuménico, este espaço, e quanto mais o fotografo, mais em paz me sinto entre pilares de pedra que se erguem dos restos mortais de alguém. Inunda-me uma ideia em expansão, nesta cultura diferente, de que faço parte da algo maior, seja isso o que for, sem símbolos ou marcas.


O encantamento continua uns quilómetros mais à frente, quando sinto a carrinha virar para uma estrada de terra batida. Uma placa indica "Skazka" e não entendo Quirguiz, como sabem. Pergunto o que quer dizer e respondem-me que vamos entrar no desfiladeiro das fadas. Não estou na Irlanda, mas aceito que existirão também tais criaturas na terra dos cavalos, porventura unicórnios. Cinco quilómetros depois, lidamos com dois garotos que são reis de uma cancela. Se queremos passar, cada um paga 50 som. Baratinho, por isso sacam-nos o dinheiro e avançamos então até um estacionamento improvisado na base de um barreiro. Mal saio, o sol oprime-me de imediato contra o solo e quando os meus olhos se ajustam ao enigma, contemplo obras de arte esculpidas por mitos com duas mãos. Numa larga extensão de forte vermelho acre, onde consigo escutar o tinir de milhões de anos de planeta, ergue-se uma cidade que não existe porque não é cidade. Seguem-se casebres, avistam-se pináculos de palácios que jamais existirão. O vale é um desfile de ilusões de óptica oferecidas com desprezo pela água da chuva e um vento caprichoso, mas sensível. Um torreão anilhado, assente no dorso esburacado e arenoso de um lobo de rocha, é o panóptico que a todos controla, invasores de um espaço privado desse senhor feudal inclemente que é a Natureza. Fotografar tudo isto é mais missão do que desejo. O meu dedo anseia por ganhar calos e tendinite, capturando esta aldeia das fadas onde a luz do sol é uma dança sem fim. Quirguistão e Magonia não rimam sequer na magia da presença, mas os seus domínios, onde elfos e duendes e gnomos têm também o seu bairro próprio, estão agora no digital de um cartão de plástico, mera sombra do que vimos, mas uma poderosa alegoria da caverna dos nosso olhares.


Subo até à base do torreão e sento o rabo em pó de fadas, desiludido por não ser LSD. Recolho areia, atiro-a e estupidamente, mas de propósito, tomo um banho, mas sinto--me outro, telúrico, pronto para me embrenhar no labirinto das fadas. Saio não pelo fio de Ariadne, mas puxado pelo mistério e pela vontade de descobrir mais. Sem querer, sinto-me preso numa teia de memória, o calor que me banha é superior ao do sol e penso em alguém que faz da magia das fadas a banalidade de um sorriso e num beijo , prende-me a um encanto onde sou simplesmente mosquinha, nem morta nem viva, só presa e encantada nesta polis de faz de conta, vermelha, mágica e ilusória.


segunda-feira, setembro 26, 2016

Cronistão 6: Relaxamento termal



A quarta maior cidade do Quirguistão foi fundada no século XIX, porque no meio de nenhures dava jeito haver um entreposto militar russo. Logo aqui se misturaram  os Dungans, chineses de origem muçulmana, com eslavos, tudo para manter um foco de guerra permanente contra a China. Chamaram-lhe Karakol. Apesar de pertencer hoje a outro país, a cidade ainda hoje alberga uma base militar russa, junto ao lago Issyk-Kul, onde se fazem testes com submarinos, diz-se.


A terra merece o nome, pelo menos em português, pois é uma violenta pasmaceira. Vale pelo kitsch de se encontrar um cinema que passa filmes de Bollywood em 3D e pelas mal-disfarçadas influências soviéticas, dominantes 25 anos depois da independência nacional e visíveis nos edifícios civis. Num deles, que desconfio ser a Câmara Municipal, encontramos expostos retratos de dignatários locais, que pelo aspecto são frutos de um gigantesco bacanal providenciado pelo ET do famoso filme de Steven Spielberg, uma mistura de traços asiáticos e andinos, num estilo gráfico reminiscente dos anos 80. A cidade divide-se entre muçulmanos e ortodoxos e cada um tem os seus locais de culto. A igreja é tão igual como qualquer outra do género, mas ao entrarmos no espaço da mesquita, por um corredor ladeado de hortas após passar um portal de madeira, a curiosidade é mais evidente: é quase como se Miró e Chagall se tivessem convertido ao Islão para destilar, numa obra de arquitectura, a sua religiosidade através de uma explosão de cor. O edifício faz lembrar os templos budistas e não se vêem sequer quartos crescentes ou escrita árabe no exterior. O minarete é uma discreta torre azul de madeira. Como em tudo aqui, o essencial não sobressai e fica ao nosso encargo adivinhar o que se faz, o que se move e o que se pensa. Há cidades sem personalidade, mas Karakol parece ser o tipo de local puramente serviçal, onde até os cidadãos só lá estão porque existem habitações e era chato ficarem vazias.


À tarde, foi-nos prometido que descansaríamos nas termas de Altyn-Arashan. Portugueses que somos, começamos logo a pensar em estruturas de pura dedicação ao relaxamento, com piscinas, fontes e, atreve-te libido, massagistas. Depois de almoço, preparo-me a rigor com calções, toalha e chinelos na mochila, o equipamento oficial do turista luso. Mesmo que não haja praia, o que conta é o estado mental e a época balnear não ocupa peso na bagagem de porão. Porém, leves sinais indicam que se está a pôr algo mais do que um simples passeio. Os veículos alugados são jipes, mas as termas são no cimo da montanha e a coisa até pode ser para o charme. Um deles atrai de imediato a atenção, por parecer mais velho do que eu. No interior, todos os fios estão espalhados, as portas presas por guitas à laia de fechadura e o aspecto convida à pura experiência da Ásia Central. Quando alapo o meu rabo, imagino que sou mesmo um aventureiro: na estepe, sê um dos duros, mas na verdade, e tivesse eu feito a pesquisa em casa, o que me esperava era uma valente estopada. É que, e deve-se dizer, o troço de 12 km que separa Karakol de Altyn Arashan tem uma certa reputação entre as estradas asiáticas, nomeadamente a de serem necessárias uma duas horas e meia para fazê-lo. Desconhecia este pequeno facto e seus motivos, mas nunca mais o esquecerei.


O curto caminho vai subindo a montanha até uns aceitáveis 2600 metros de altitude, um pouco como subir ao Pico, tudo isto num piso que transforma veículos todo o terreno numa orquestra de rumba onde os passageiros são congas. Quando, a certo ponto, se apanham calhaus de dimensão bem considerável, o corpo está tão moído que encolhe os nossos próprios ombros e aceita o que vier, e o que chega são noites em Havana, mojitos de vértebras deslocadas. Sentado no banco traseiro, recebo no colo passageiros à vez e lamento imenso não ter trazido capacete. O movimento é tão intenso que pouco antes da primeira paragem, só mesmo para garantir que os meus dentes não estavam, por essa altura, dentro do meu cérebro, julgo mesmo que ganhei o Euromilhões, pois sinto-me como uma bola na tômbola. Enquanto estamos parados, passa um camião todo o terreno, a mazurchka, que trata as pedras com a mesma condescendência com que Ricardinho olha os adversários no futsal. Vai carregadinha de turistas japoneses, que nos fazem sentir como extraterrestres na Casa dos Segredos. O condutor chama-nos então à segunda vaga de merengue. É um senhor já com uns sessenta anos que, sinto-me com sorte em apostar, deve ter combatido no Afeganistão e por isso, para ele, o passeio é de domingo. Mais do que uma vez a chave salta da ignição, obrigando a paragens a meio caminho entre o calhau e a terra firme, dando-nos a mesma emoção que é provocada por um tobogan. Entre uma avaria e outra, e alguém que quase salta do jipe em andamento para tocar xilofone de queixos estrada abaixo, lá chegamos às termas.


Meto os pés no chão e estou desfocado, tanto que julgo alucinar. Vejo apenas três casebres à beira do rio, mais uma hospedaria na outra margem com uma orgulhosa bandeira vermelha com um sol no meio. Preparo-me para uma caminhada de alguns quilómetros para chegar de facto às termas, vai-me fazer mesmo bem descomprimir, mas chamam-me à atenção: não, caro amigo, é mesmo ali, são aquelas casas, onde encontrarei uns tanques de dois metros por dois metros e meio, com água quentinha ao nível da cintura. Deve ser disto que falam quando empregam a expressão "choque de culturas" entre Ocidente e Oriente. Apenas o António Gil molha os pés, não se atrevendo a encharcar mais. A paisagem, no entanto, é uma massagem melhor que a estrada repleta de calhaus: no vale que o gelado rio atravessa, um verde que me recicla de alto a baixo, vê-se ao longe um brutal pico nevado, a cordilheira de Tien Shan exibindo-se gulosamente e confortando os portugueses burlados. O sol ainda brilha por sobre as montanhas, projectando com as nuvens sombras turvas e curvas, e a floresta reminiscente da Europa Central é um bálsamo. A pequena caminhada por trilhos improvisados leva a fotos tipo droga embriagante, e à descoberta de que todos pensam que somos israelitas, porque de facto é a nacionalidade que mais se encontra no espaço. Uma rápida vistoria de um mapa desenhado à mão (literalmente, creiam) indica a presença de uma nascente selvagem não muito longe das termas. Está claro que tenho de lá ir.


Acede-se por um trilho de terra que atravessa as árvores e acompanha o rio murmurante, a água empurrando rochas em ritmo de milhares de anos. As nuvens, no entretanto, roubaram muita da luz que nos acompanhava e as frondosas copas arbóreas criam um ambiente gótico, quebrado apenas por gente que de toalha às costas, se dirige para um algures que viu num croqui. A lógica é seguir caminho aberto e uns dez minutos depois encontramos um cantinho fantástico junto à água. Não existem escadas ou sinalização e do nosso lado direito, elevado a uns metros, apenas um tanque circular claramente feito por alguém, com cimento a assinar mão humana, nos indica que chegámos onde é suposto. Não está calor, o tempo põe-se feio e os meus companheiros entreolham-se, num desafio mudo e surdo, uma resposta que se torna cega à coragem. Ninguém se quer molhar. A excepção, claro, é este vosso amigo, que nem quer pensar que serviu de bateria de escola de samba durante doze quilómetros apenas para voltar mais à seca do que um abstémio no Carnaval do Rio. Vou eu, proclamo, e ao início pensa-se que estou a brincar e só quando me ponho de calções é que se percebe que este tipo é da aldeia e que ser da aldeia é não jogar com o baralho todo. O meu cuidado é todo para não escorregar. O meu corpo cansado desliza apenas  para dentro do tanque, a água quente puxa-me com visíveis dedos, unhas cravando-me de prazer em cada pedaço de pele e carne martirizados por horas de viagem de carro e quando me deixo amparar pelas palmas das mãos aquosas, solto um sonoro suspiro de prazer passível de ser confundido com algo mais.


Sou alvo de fotos, todos se sentem atraídos por alucinados e alienados, mas num repouso que nem é sólido, num calor que me envolve como, imagino, uma vez fui acolhido no ventre materno, tenho paz verdadeira pela primeira vez desde que aqui chego. A minha companhia retira-se, eu digo que já lá vou ter, mas o "já" é relativo. Descomprimo na totalidade, tanto que julgo até que o meu corpo perdeu forma e é plasticina, átomos que se misturam com as moléculas daquela água a quem já os Antigos reconheciam saúde. A minha paisagem é a de branco azulado e verde, um branco azulado que desliza por um leito e um verde permanente de exército de madeira e clorofila que guarda o meu descanso. Por fim chove a sério, e eu, cozinhando em banho macia o meu próprio sabor, assisto a tudo como um afortunado idiota, alguém que conseguiu estar num momento certo, no local perfeito e tão longe de tudo o que é seu. A casa é onde o coração está e penso em quem me dá tecto, enquanto as minhas pernas são serpentes debaixo da superfície do espelho onde reflicto o meu prazer. Por um instante, entre todas as voltas que estes últimos anos me deram num fandango de dor e da maior alegria que me atinge o coração, o ruído confuso desaparece e numa caverna, vejo luz entre pingos de chuva. Brilha muito, sim, mas apenas porque sai dos meus olhos.