A expressão "Ben Affleck cineasta" ainda causa alguma confusão no uso, mas há que dar a mão à palmatória: o homem merece. "Gone baby gone" era um filme interessante, se bem que desequilibrado, ancorado numa performance secundária. Em "The town", Affleck repete tudo o que faz dele um bom realizador, num nova história de crime na cidade de Boston, a sua musa da mesma maneira que Nova Iorque é de Woody Allen.
"The town" traz-nos a história de um qarteto de assaltantes de bancos, encabeçada por Doug, interpretado pelo próprio realizador, e Gem, superlativamente trazido à vida por um Jeremy Renner que pareceu ter tomado demasiadas anfetaminas depois de uma noite a beber shots de adrenalina. Eles são muito bons no que fazem, mas quando cometem um erro que pode levar à sua prisão por um agente do FBI (Jon Hamm, em modo anti Don Draper) com um interesse no caso a raiar o obsessivo, Doug vê-se obrigado a travar conhecimento com uma das reféns do assalto depois do mesmo, de modo a garantir que ela não viu nada que possa incriminá-los. No entanto, já se adivinha que isto vai dar em paixão e o personagem principal fica dividido em tantos dilemas que parece o mastro de um navio apanhado numa tempestade de Maio no cabo Horn. Com um novo assalto a aproximar-se e uma séria ameaça à sua fisiologia e à daqueles com que se importa, cabe ao esperto ladrão não se deixar tramar.
A história, adaptada de um romance de Chuck Hogan, tem alguns lugares comuns do heist thriller: o policial obcecado; a paixão pela mulher errada; o último trabalho que compra uma saída para uma vida que não se quer. No entanto, Affleck casa bem isso com o grande trunfo do filme, a cidade de Boston. Isto pode parecer sacrílego, mas nem Scorsese fez um melhor aproveitamento desta metrópole suja em "The departed". Affleck é natural da capital do Massachussets e nota-se isso, quando filma. Não é que ele seja dotado tecnicamente, mas escolhe os ângulos exactos que captam o espírito dos edifícios e o labirintismo das ruas. Isto não se ensina numa escola de cinema, aprende-se crescendo no sítio. Affleck pode estar destinado a ser o poeta cinematográfico de Boston, e dentro do typecasting comum em Hollywood, este não é nada mau emprego.
Tal como em "Gone baby gone", alguns dos grandes actores de Hollywwod parecem querer dar uma mãozinha a Affleck, mesmo que, no caso de Chris Cooper, seja para aparecer cinco minutos numa cena apenas. Rebecca Hall, no papel da mulher que pode fazer com que Affleck queira realmente sair de uma vida de crime, está impecável, sotaque e tudo, e Jon Hamm (com a companhia à guitarra de Titus Welliver, também conhecido como o Monstro de Fumo Negro da série "Lost são uma interessante dupla polícias filhos da mãe (em Boston, os heróis são sempre os bandidos), mas a grande surpresa do filme, para mim, é Blake Lively, mais conhecida por um papelucho insosso na série "Gossip girl", e que aqui, como uma prostituta ainda apaixonada por Doug, é uma completa surpresa de transformação, transmissão de emoções, sotaque bostoniano, presença... Tive de morder a língua, honestamente, depois de vê-la. Se começar a escolher os filmes correctos, podemos ter aqui alguém que pode ir longe: já tem o palminho de cara, o enche decotes e o talento para tal. Renner poderá vir a ser nomeado para o Oscar de melhor actor secundário, e o filme começa a ganhar buzz suficiente para entrar no campeonato de Melhor filme.
"The town" é um daqueles filmes à antiga. Primeiro, é para adultos ou para jovens que pensam como tal. A história é simples, no entanto bem contada em estilo clássico e escorreito, uma raridade nos dias que correm. Sem saber ler e escrever, Ben Affleck conseguiu reunir Dylan Tichenor para a montagem e Robert Elswitt para a direcção de fotografia, e com a equipa técnica habitual de Paul Thomas Anderson, qualquer filme fica automaticamente melhor. ão sendo um realizador de técnica apurada, consegue algumas sequências muito interessantes (a
set piece do último assalto está muito boa a nível de tempos e ângulos de câmara) Affleck não é um Fincher, um Nolan ou um Jonze. Nunca fará um filme definitivo, uma obra-prima eterna da história do cinema; terá, no entanto, uma carreira incrivelmente consistente, porque percebe como apresentar uma história ao espectador, como gerir personagens e como escolher actores. Por muito básicas que estas qualidades nos pareçam, não há muitos que as tenham. David Lynch, por exemplo, pode ter feito "Veludo Azul", mas não as tem. Tendo juizinho e continuando por este caminho, Affleck poderá vir a apagar das nossas memórias "Gigli" e "Pearl Harbou", e isto é muito mesmo. É, a propósito, curioso este regresso ao passado por parte do eterno compincha de Matt Damon. Em "Good will hunting", um homem mais dotado que os amigos numa área acaba por descobrir que a solução para a sua vida está precisamente em abandonar o meio e a cidade em que sempre viveu. 13 anos depois, Will Hunting volta a Boston, como criminoso, mas também genial na sua arte; e sabe que a resposta para os seus problemas está fora do que lhe é familiar. Mas agora está preso em Ben Affleck, que descobriu exactamente a mesma solução, mas atrás de uma câmara.