segunda-feira, janeiro 23, 2006

Road to the Oscars: "The Constant Gardner"



Começo aqui a rubrica onde analiso os filmes com maior possibilidade de nomeação para os Óscares deste ano, tentando cobrir o maior número possível de estreias, de visionamentos em DVD e em DIVx.

"The constant gardner", em traço muitos gerais, trata primeiramente da história de uma mulher entusiasta e bem alternativa, cuja grande ocupação é combater as injustiças. Acaba por escolher como alvo as grandes companhias farmacêuticas, que escolhem África como um campo de testes alargadodos seus últimos medicamentos, ainda em fase experimental. É então que, de súbito, aparece morta. O seu marido, um fleumático diplomata inglês, mais preocupado com as as suas plantas e a neutralidade britânica (que não existe na prática), fica devastado, mas ao começar a compreender que a morte da mulher foi um homicídio horrendo perpatrado pelos homens que ela comabtia, reage como seria de esperar e parte para a luta, à procura dos responsáveis, e para acabar o trabalho que a mulher deixou a meio.

A intriga do filme é aparentemente a de um thriller, mas a grande surpresa do espectador é constatar que "The constant gardner" é acima de tudo uma história de amor. Primeiro, entre um diplomata e a sua esposa; depois, entre o mesmo diplomata e o fantasma da mulher. Fernando Meirelles, o realizador, gere estes dois planos da componente romântica com uma mestria assinalável, com um estratagema utilizado normalmente por Alejandor Gonzalez Iñarritu, o flashback constante durante a película entre momentos passados e presentes.
A escolha do realizador brasileiro é, aliás, certeira, pois o seu domínio da intriga fragmentada e complexa é visível no filme que o tornou famoso mundialmente, "Cidade de Deus", e a pergunta era se o seu estilo de montagem de rápida e fotografia saturada e vívida se coadunava com a escrita de John Le Carré, normalmente mais sofisticada e britânica. Resulta mesmo, o que se deve também à adaptação feita por Jeffrey Caine. A prova de que Meirelles não se vendeu, como acontece com muitos realizadores estrangeiros que vêm trabalhar para Hollywood (hmm, John Woo é o que me dói mais, pois sou fã dele em Hong-Kong e até agora, para louvar, só tenho "Face off" e pouco mais), levou César Charlone, o brilhante director de fotografia e cameraman de "Cidade de Deus", o que só favorece o filme.
No entanto, há algo que se repara de imediato: Fernando Meirelles filma bem de qualque maneira, mas menos nos meios urbanos de Londres e bem mais quando é deixado à solta nos bairros de lata quenianos, onde mostra o ambiente em que vivem aquelas pessoas de forma fascinante, dando a ver a podridão, mas também a alegria das pessoas e a forma como tentam encarar a vida com optimismo, no meio da sua miséria e da luta diária pela sobrevivência. Brilhante a sequência do teatro de rua, praticamente no início do filme.
Os outros grandes responsáveis pela qualidade do filme são Ralph Fiennes e Rachel Weisz. O primeiro é espantoso a nível da composição interior de um homem que aguenta a emoção até onde pode. Quando ele vai reconhecer a mulher à morgue, a sua fleuma, a sua ausência de sentimento, arrepia-me mais do que se ele começasse a chorar feito desalmado, mas sinto claramente algum pesar nele. Estamos a falar do mesmo homem que interpreta Amonh Goeth, o nazi carniceiro de "A lista de Schindler", que se entretinha a vir à janela de manhã para atirar sobre trabalhadores judeus. A sua obsessão é patenteada ao longo do filme, mas sem nunca perder o fio da personagem, aquilo que lhe é natural, dando-se, naturalmente, a transformação do gélido diplomata num ser humano totalmente aberto aos problemas do mundo. Já Weisz, inexplicavelmente atirada para a categoria de Actrzi secundária, é um poço de vida como Tessa Quayle, a activista que dá a vida pela sua causa e caminha naquela fina linha que separa a utópica chunga da mulher de causas que compreendemos e apoiamos com uma segurança incrível, criando uma mulher-criança a que não resistimos. Ambos os personagens, Justin e Tessa, são plenos de emoção e de intimidade. Meirelles mostra, para além da grande história, a petit histoire quotidiana neste casal. Notável a sequência em que Ralph Fiennes, imitando Jacques Cousteau, filma Weisz grávida, na banheira, como uma webcam. Há uma química genuína entre estes dois actores.
O pior do filme é mesmo o final. Não vou aqui revelá-lo, mas um filme realista usa um final que sai claramente da lógica de mundo real onde "The constant gardner" se movimenta.

É, no entanto, um excelente filme, que em nada me defraudou. É não só um filme denúncia, mas uma obra com um enorme coração. Fernando Meirelles continua a mostrar porque é considerado um cineasta brilhante e poderá chegar aos Óscares. Num ano onde a qualidade parece imperar, acredito piamente nisso.

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