sexta-feira, março 03, 2006

Road to the Oscars: "Capote"



"Capote" é, antes de mais, um filme americano, sobre americanos, interpretado por americanos e respirando América em cada fotograma; mas quem desconhece a sua proveniência, poderá julgar estar, em certos momentos, perante uma fita de produção e sensibilidade europeias. Isto funciona contra si, e também a seu favor: contra si, porque existem planos no filme que, embora deslumbrantes do ponto de vista visual, são redundantes a nível da narrativa, uma cataerística, assumamos, tpicamente do cinema europeu; é uma vantagem, porém, porque a sua história e o personagem principal se prestam a um tratamento pouco clássico. Antes de mais, a história é mais sobre o processo de criação artística que uma biografia de Truman Capote, embora possamos perceber melhor a trajectória final da vida desta peculiar figura da cultura norte-americana do século XX no final deste filme,

A trama conta-se em poucas linhas: uma família é encontrada burtalmente assassinada numa pequena vila no Kansas e Truman Capote, notável escritor e coqueluche do mundo socialite nova-iorquino, vê aqui uma inspiração para escrever uma obra brutal. Viaja, por isso, para o Kansas, para falar com os habitantes da vila e os envolvidos directamente no caso, nomeadamente os dois assassinos, principalmente um deles, Perry Smith, com quem estabelece uma estranha e complexa relação. A acompanhar Truman, primeiramente, temos a sua melhor amiga, a escritora Harper Lee, que funciona quase como a ligação da bizarria de Truman à realidade.
Este não é, está claro, um biopic convencional: normalmente, os filmes biográficos, principalmente na tradição hollywoodesca, criam imagens simpáticas e inspiradoras das figfuras que retratam. Aqui, nunca dei por mim a sentir simpatia por Truman Capote: para conseguir escrever o sue livro e acabá-lo, Capote manipula Perry Smith, faz-se passar por seu amigo, finge que o ajuda e mente-lhe acerca dos objectivos da sua obra. Tudo por causa do seu egoísmo, egocentrismo e pela arte. A dado momento, Capote diz a Harper Lee: "Quando penso no quão bom o meu livro vai ser, nem consigo respirar". A sua obsessão por esta obra, que ele apelida de a melhor ficção de não ficção da década, é tal que cada apelo que opderá conduzir à libertação dos acusados é uma machadada em si, uma razão para ficar deprimido, pois desta maneira, o final não chega. Ora, o que acontece é que se sente, perfceptivelmente, um conflito no interior do escritor, pois se quer a morte dos assassinos, nutre uma admiração secreta por Perry Smith, que genuinamente admira o escritor e se deixa influenciar por ele num bom sentido, tornando-se visivelmente uma pessoa melhor por tê.lo conhecido. Essa é a moral de Capote: coisas feitas por maus motivos, mas que acabam por ter boas consequências devem ser consideradas ignóbeis? E será que os fins justificam os meios? Até que ponto se deve esquecer a realidade em prol da arte? Capote trata um crime que afecta toda uma comunidade rural e conservadora e o drama pessoal dos seus habitantes e dos criminosos que acabam por depositar nele as suas últimas esperanças como um fait-divers, como uma anedota. A realidade em que Capote vive é superficial e o próprio Capote é o seu publicitário e cria-se como uma espécie de cromo, embora tenha dentro de si dramas pessoais intensos e que o aproximam de Perry Smith. No entanto, perguntamo-nos quais os dramnas pessoas, pois Capote dá várias versões da sua vida a diferentes personagens. Harper Lee, a personagem vidro atravésa da qual vemos o verdadeiro Truman, trágico e enredado em si mesmo, revela que a mãe do esritor cometeu suicídio. Como se diz a certa altura, parece que Capote e Smith viveram na mesma casa: o escritor saiu pela porta da frente e o assassino pela dos fundos. Em "Capote", dois mundos chocam: aquele em que Truman vive e aquele em que as vítimas e os criminosos habitam; quando estes chocam, Capote não pode ficar o mesmo e acaba por se tornar humano: não no sentido risonho do termo, mas destroçado, acabado, deprimido. Desde "In cold blood", Truman Capote nunca mais terminou um livro, e viria a morrer em 1984 devido a complicações relacionadas com alcoolismo e drogas, vícios que começam nesta altura. Em certa medida, todo o filme é sobre a perda da inocência de Capote.
No entanto, este filme não teria metade do poder que tem se não fosse a fabulosa interpretação de Philip Seymour Hoffman. Truman Capote era um personagem que facilmente oderia descambar para a caricatura e o riso fácil, mas Hoffman é Capote da maneira mais literal que possamos imaginas. Nunca deixando que Capote seja um desenho, ele enche-o de vida e de sentimentos, de pulsões e de conflitos interiores. Sabemos que é o Capote do folclore norte-americano que ali está, mas cada gesto, cada trejeito, cada frase transpiram humanidade. Aquele é Truman Capote, o homem e artista, não o Capote cromo. Hoffman tem um trabalho físico notável, mas mais assombrosa ainda é a construção interior que faz de Capote e da evolução que sofre à medida que este caso se desenrola És espantoso. Espantosa também é a estreia de Bennet Miller, um realizador que na sua primeira longa-metragem mostra que é necessário estar com atenção ao seu trabalho futuro. Embora com falhas no primeiro acto, deixando-nos talvez demasiado frios e distantes, consegue recyperar no segundo acto e terminar fabulosamente o filme com uma cena incrível, de tão simples que é. Miller encena uma fusão de noir com um drama psicológico com laivos de "O silêncio dos inocentes" e sai-se bem. Merec claramente a nomeação.

"Capote" não será filme para ganhar Oscar de melhor filme, mas é uma obra complexa sobre a complexidade de uma criação literária e do homem que a criou. Cria uma empatia estranha com o espectador, que se afeiçoa a dois homens que cometeram um crime horrendo e macabro, seguindo tudo do ponto de vista de um escritor disposto a sacrificar tudo em prol do livro perfeito, inclusivé sacrificar-se a ele próprio no altar da genialidade.

Sem comentários: