quinta-feira, janeiro 03, 2008

Eu gosto de ajudar

Vou começar este post por deixar claro uma coisa: eu acho que ajudar pessoas é bom. Opinião polémica, não é? Nada tenho contra quem gosta de ajudar aqueles que precisam, mesmo que "aquele que precisam" seja uma categoria tão alargada que pode englobar quem passe fome e quem não tem sexo há mais de dois anos. Os bons samaritanos podem levar a sua vida.
Posto isto, passemos ao que me vai transformar num saco de porrada.
Passou ontem na RTP uma reportagem sobre um grupo de voluntários que a AMI levou a um campo no Senegal chamado Ren Mao. Não vi a reportagem completa, apenas excertos, mas os alegres convivas, como se fossem os sete anões, estavam contentíssimos da vida por ir para um continente tão carenciado, como alguém disse, ajudar. O doutor Fernando Nobre, presidente da AMI portuguesa, chamava a atenção para os problemas, algo com que ele lida, e vai continuar lidar mesmo quando os sete anões tiverem de voltar ao conforto do seu lar com clima controlado, o seu frigorífico Siemens carregado de comida e o seu sistema de água canalizada. Pelo meio, um homem tomava banho de água fria com uma caneca e demonstrava aquele ar de "vim para a selva, isto é que é ser homem duro", e uma senhora lavava os dentes sem ter um lavatório à frente e parecia voltar a contactar com o seu Homo Habilis há muito perdido.
Ah, e pelo meio, criancinhas que eles ajudavam.
Em que é que isto pode irritar qualquer pessoa de bem? E em que é que isto me pode irritar, separemos já agora as duas coisas? Simples: o tom do discurso e a pose de quem pensa que ajudar é uma coisa fashion. Falam todos em "Vou fazer isto, porque achei que seria uma experiência engraçada", ou "Retiro tanto disto, é algo de diferente." Algum deles diz "Hei, mas está aqui gente que, daqui a 15 dias quando me for embora e tiver belas histórias para contar aos meus amigos, ainda vai estar a passar problemas e a ter de percorrer 12 km a pé para ter acesso a uma garrafa de água"? Não: só falam em como aquilo os transforma e fazem com que a experiência de ir a África para aquela ocupação seja como umas férias, em que, pronto, passam menos tempo na praia. Aliás, pelo discurso, nota-se também que se acham a dádiva branca de Deus para um continente negro que se afunda. Ou seja, o velho ideal europeu de ser luz num mundo de trevas. Colinialismo no seu estado puro. Não tratar quem ajudam como pessoas iguais a eles, mas como uns sortudos pelo facto de aqueles portugueses se terem lembrado de parar por ali e dar-lhes uma mãozinha.
Na verdade, muitos pagaram para ajudar. Já estive envolvido numa ou noutra tarefa de solidariedade e trabalho em prol de alguém. Não paguei, mas também não fui a África, até porque em Portugal há várias associações e obras que precisam de voluntários. Infelizmente, não fica tão bem referir isso em conversas, pois dizer "Fui ajudar em África. Coitadinhas das crianças, aquelas casas nem têm telhado, blá, blá, blá." tem muito mais pinta, e ajuda a engatar miúdas. Lembrem-se de todos os grandes altruístas: so much fuss about them it's crazy.
Eu acho que a caridade não é nenhuma experiência: é uma atitude. Não é algo que se decida fazer num Verão e voltar para cá como se nada fosse. É uma coisa de todos os dias. Não sou nenhum bom samaritano, muito, muito longe disso. E não me consigo preocupar com toda a miséria do mundo. Desculpem, mas se fizesse isso, não conseguia funcionar. Acho até que as pessoas que realmente fazem a diferença na vida dos outros não aparecem nos jornais, e eu tenho vergonha de, ao dizer que já participei em meia dúzia de acções de solidariedade, poder ser comparado com elas. Isto porque essas pessoas não fazem as coisas para se sentirem bem, ou completarem um sonho qualquer, ou porque o seu umbigo precisa de uns centímetros extra (talvez um dia sejam esmagadas pelo peso do seu próprio ego); nem acham que porque são ricos, têm de ajudar os pobres. Fazem as coisas, porque sinceramente mais ninguém as faz e porque está certo.
E normalmente, essa é a única razão pela qual as pessoas se devem vangloriar de fazerem o que quer que façam.

E mais uma vez que ressalvo que a zurizdela não é contra o acto em si: é contra a pose. Ajudar é importante. Mas sugiro que comecemos por ajudar aquele nosso amigo que está a 5 metros de nós e evoluamos até ao desconhecido, que está a 5000 quilómetros. Fica a sugestão.

4 comentários:

João Saro disse...

De certa forma, concordo contigo, embora ache que quem tenha participado na reportagem não tenha sido assim tão forçado.

Provavelmente, se fosse para lá durante 30 dias, não sei se aceitaria levar comigo uma câmara atrás (pelo menos do início ao fim).

Acho que a tua crítica aplicava-a mais a outras situações do que a esta, mas compreendo porque também notei isso um bocado na reportagem.

Por fim, digo que para mim os exemplos são mais aqueles que com a minha idade decidem partir para uma vida dessas, no início por um período de 6 meses ou um ano e depois logo se vê. E se conseguírem passar a vida toda naquilo acredito tenham sido mais felizes do que qualquer gajo neste mundo desenvolvido.

raquel disse...

Claro que é uma experiência única mas nunca deixa de ser uma atitude. Só o facto de terem ido faz a diferença. O que eu acho é que fizeram alguma coisa para mudar alguma coisa seja em África ou noutro sítio. Acho que é errado julgares o motivo que as leva a fazerem voluntariado assim como julgares o que levam dentro delas para casa. No entanto, acredito (mesmo) que há pessoas que são capazes de fazer voluntariado uma vez e pensam “pronto isto já me dá para vida toda” e isso está mesmo muito errado. Mas acho que o tipo de pessoas que pagam para ir ajudar pessoas num outro país não são desse tipo de pessoas. Tenho dito.

Um xi

Rita disse...

E pim. Não vi a reportagem. Não tenho paciência para o discurso "ah eu fui voluntária nas favelas, numa aldeia em África. e, céus, são pobrezinhos, mas felizes". Percebo o que queres dizer, Bruno, quando falas da arrogância branca. Há voluntários, caramba, há pessoas assim. Agora o argumento do "vamos ajudar primeiro, e em vez dos que estão longe, os de cá", tb me soa um bocado a ridículo, populista, até. Cada um tem a sua sensibilidade. Há quem prefira longe, quem tenha curiosidade de conhecer realidades diametralmente diferentes e aproveitar a estadia. Não acho errado. Assim como há quem prefira o voluntariado cá, com as suas razões, igualmente válidas.
Assim como assim, o importante é ajudar genuinamente, sem calculismo, nem pretensiosismo.

João Santiago disse...

é triste, mas AJUDAR ás vezes é uma 'moda', no entanto só cada um sabe por que o faz e como se sente depois de o fazer.