sexta-feira, novembro 18, 2005

Incompletas

Se há coisa que eu tenho a mais no meu computador, são histórias incompletas. Começo-as, acho-as uma grande ideia e depois a minha vontade vai esmorecendo Sei que está errado, mas eu estou a tentar ganhar a luta contra a minha própria natureza. Este é um excerto de uma, que ainda não tem título:

O acontecimento daquela noite fez com que Xavier se perdesse ainda mais nos dias que se seguiram. No trabalho, não se conseguia concentrar e os colegas já o haviam alertado para isso, pois cada um dependia do trabalho do outro e ele não se podia distrair; as horas de refeição eram passadas a olhar o infinito, procurando respostas, pouco ligando ao que o alimentava e é melhor nem falar do tempo livre: a rotina estelar passava para um segundo plano, quando a dúvida e a curiosidade lhe consumiam as noites no terraço do prédio. Quem seria aquela pessoa que, vinda do nada, parecia compreendê-lo? Saberia realmente ela as dúvidas que dançavam no seu cérebro? As perguntas primordiais: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? O que é a vida e o que é a morte? O que será o futuro e o porquê de um passado que todos têm, mas poucos compreendem os motivos pelos quais os acontecimentos se sucederam; tantas dúvidas...
Passou-se entretanto uma semana; num sábado de manhã, Xavier saía de casa, para ir às compras. Ao abrir a porta, teve novamente uma surpresa: um seta pintada no chão. Apontava para as escadas que seguiam para cima. Podia ter muito bem virado as costas e não ligado mais à brincadeira, mas o seu íntimo dizia-lhe para arriscar e seguir. Por isso, pôs-se a subir, encontrando outras setas pelo caminho. O objectivo era, surpreendentemente, o seu terraço. Antes de abrir a porta, mediu bem o que ia fazer. A partir dali, não voltaria atrás. Respirou fundo e preparou-se para conhecer o que lhe atiçara a curiosidade.
Do outro lado, em pé, à beira do edifício, estava uma figura virada de costas para ele. pelo aspecto, devia ser uma mulher. Foi-se aproximando, pensando na melhor frase para quebrar o gelo, mas ela antecipou-se-lhe:
- Já se perguntou porque é que o céu é azul?
Perguntou sem o olhar, nem sequer se virar na sua direcção. Xavier baqueou, ficou sem saber o que dizer. Mais uma vez, ela interrompeu o silêncio.
- Se acreditarmos em Deus, podemos dizer que ele escolheu essa cor na sua paleta pois esta lhe era mais conveniente; se formos científicos, podemos afirmar que é a uma mistura de gases que deve esta coloração; se ficarmos na nossa, podemos inventar. Eu cá acho que um dia alguém decidiu ver assim o céu e, de súbito, toda a gente passou a partilhar essa visão. Vemos aquilo que somos ditos para ver, o que não quer dizer que aquilo que fica nos nossos olhos seja realmente a verdade das coisas. E você? Qual acha que é a verdade?
Não ousou dizer o que quer que fosse, com medo de errar. Ela leu-lhe os pensamentos.
- Eu sei que tem medo, é natural, ainda não nos conhecemos bem. Mas você vai perder esse receio. Eu também moro no edifício, mas você nunca me viu, apesar de eu já o espiar há algum tempo. Sei das suas inquietações, sei que vem aqui todas as noites procurando respostas e encontrando ainda mais perguntas. Não lhe trago nada disso, por agora, apenas uma proposta: já ouviu falar de Santiago de Compostela?
- Sim... - disse, quase com medo de falhar. Aquela mulher deixava-o desconfortável - É uma cidade na Galiza.
- Essa perspectiva é muito, muito redutora. A cidade de Santiago é um importante centro de peregrinação desde a Idade Média, pois é lá que estão sepultados os restos do mártir S. Tiago, que mais tarde se viria a tornar numa importante referência sagrada para a Reconquista cristã. Ainda hoje é um dos centros católicos da Europa, juntamente com santuários como Fátima, Lourdes ou Cracóvia.
- Onde é que a senhora quer chegar com isso?
- Faço parte de um grupo que todos os anos faz peregrinações até Santiago e de cada vez que lá vai, tenta recrutar novos membros, novos companheiros de viagem. É por isso que me estou a dirigir a si: quero que nos acompanhe.
- Ainda falta muito para o próximo Verão, acho que tenho tempo de sobra para pensar.
Ela ri. Xavier não percebe, mas é elucidado.
- Qual Verão, nós partimos depois de amanhã. Decida-se.
- Depois de amanhã? Mas eu tenho um emprego, eu trabalho, vocês não?
- O que é que você acha? Bem, dou-lhe até hoje à noite para se decidir. Não se dê ao trabalho de me procurar, eu telefono-lhe.
Finalmente, ela sai da beira do edifício e passa por ele.
- Não seja burro ao ponto de o destino lhe mostrar o caminho da felicidade até ao fim dos seus dias e você não o seguir.
Depois, sai do terraço e desapareceu da vista de Xavier, que, com aqueles primeiros esclarecimentos, ficou ainda mais confuso do que estava

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