sábado, setembro 09, 2023
THE X-FILES: o anti-poder
quinta-feira, setembro 02, 2021
Georgia on my blog: Um banho de História
Não recolhe longe das minhas
ideias que atravessei a Europa apenas para passear naquela que foi um dia a
capital da Iberia. Tbilisi desabrocha como cidade algures no século V, quando o
rei Vakhtang I precisava de uma capital para o seu reino com nome latino. A
região de Tbilisi fora habitada desde a Idade do Ferro, devido à sua
localização geográfica e segundo a lenda da fundação da cidade, foi esse o
principal chamariz para o malogrado rei fundador. Estava o senhor numa caçada a
faisões numa floresta quando se aleijou. Algures por entre o arvoredo,
encontrou uma fontezinha de água sulfurosa que lhe curou as chagas com
assinalável rapidez e o o monarca, fascinado, decidiu logo ali desbastar as
árvores para erguer um povoado. Porque nada diz “obrigado” como a destruição
completa de uma zona natural que contribuiu para o nosso bem estar. O sucessor
de Vakhtang, Dachi I, completou a mudança da capital do reino para esta cidade
onde passeio e o seu crescimento nos séculos seguintes deveu-se à proximidade
com a Rota da Seda e à benesse de ficar praticamente a meio caminho entre três
mundos: o Romano, através de Bizâncio; o Eslavo, através do Cáucaso; e o Persa,
numa ligação com as terras longínquas do Oriente Chinês. Portanto, estar em Tbilisi
acaba por ter uma certa sonoridade consoante com os meus anteriores roteiros de
viagem. Nunca aqui estive, mas as pistas de outros passeios estão no ar. Quando
atravesso a ponte Metekhi, sobre o rio Mtkvari – um escorrega de água castanha,
sinal de que o degelo está no seu final, que risca em serpentina esta urbe
georgiana – estou a sair de um presente que a Geórgia ocidentalizada constrói
para si e embrulho-me no passado histórico deste povo. A cidade está dividida e
a ponte, no fundo, é um de deLorean com grades. Permite-me viajar no tempo.
O turismo domina-a e a caça ao
turista também. Ainda nem cheguei à outra margem e já fui abordado por umas
cinco pessoas a oferecer-me passeios turísticos pelo país. Recuso educadamente
e mesmo por entre o calor abafado que já criou um mar Cáspio nas minhas costas,
tento fazer sentido do desenho da cidade. Do meu lado direito, noto brotado os
exemplares de arquitectura contemporânea do Rike; mas do lado esquerdo, entre
igrejas e a afastada muralha da fortaleza de Narikala, a verdadeira Tbilisi,
pelo menos a mais próxima da original, assume-se. Partilhando o nome com a
ponte, a igreja da Virgem Sagrada de Metekhi assume a sua contra-luz, vigiada
por uma estátua do rei fundador. A igreja foi aqui construída, num pequeno
monte onde supostamente um mártir ortodoxo chamado Habo foi executado no século
VIII. No entanto, pouco resta da igreja original. Várias destruições
decorrentes de catástrofes naturais e eventos militares levam a que apenas
vejamos uma sombra do passado. Como acontecerá, aliás, ao longo dos dias em que
aqui passamos. Percorrer a cronologia de Tbilisi é a pretensão de registar um
mapa de convulsões. Entre ocupações à força, terramotos e mudanças de dono
imperial, há muitas oportunidades de perder a identidade; mas algures, entre
reconstruções e genuína vontade de glorificar o passado através do esplendor da
arquitectura (o melhor exemplo é a renovação que a cidade atravessou no final
do século XIX e início do século XX) marca mais o carácter rugoso de um magote
de pessoas com uma identidade comum, orgulhosas dessa identidade, recusando o
seu desaparecimento por entre as brumas da História. Ocasionalmente, no
entanto, o apelo do vil metal chama com um trompete e a identidade comum
senta-se no lugar de passageiro em sono que ronca. Foi o que aconteceu no
primeiro local que visito na zona histórico, o Bazar de Meidani. Outrora, foi o
mais importante dos postos comerciais que se localizavam na praça que lhe dá o
nome, o grande centro de compra e venda da velha Tbilisi. Hoje, mantém o local,
um túnel subterrâneo por onde se distribuem pontos de venda; mas atravessá-lo,
seduzido por música local que acredito passar numa versão do “Oceano Pacífico”
autóctone – que tomará aqui porventura o nome de “Mar Negro” – e o aspecto
impecável de quem vendeu a alma ao Diabo via Loja do Gato Preto, com um toque
de tijoleira a fingir o antigo e mobiliário a pedir designação de Vintage, não é
de todo o que já encontrei de genuíno por outros pontos da Ásia onde o comércio
continental ainda se faz sentir com uma força que treme. Começo a temer que
afinal, para lá de fantasmas do genuíno, vá encontrar demónios do consumismo.
No entanto, nem sempre o que é
antigo salva a alma de um local. Noto que, espalhadas pelas paredes e muros, um
artista local chamado Goshaart tirou umas tardes e noites do seu tempo para
enfeitar as ruas e becos com pinturas, muitas delas alusivas a clássicos da
Sétima Arte. Noto uma obsessão com a saga “Alien”, o que só lhe dá crédito na
minha caderneta bancária. Misturando xenomorfos e gatos, esta pessoa lava-me um
bocadinho o mau gosto deixado pela visitar a Meidani e os meus passos não se
perde, mas encontram-se de súbito na zona das termas de Tbilisi. O papel
lendário destas águas já foi referido, mas é apenas quando se visita esta zona
da cidade que se entende o quanto o acto de alapar num tanque de água quente
está enraizado em quem vive e sobrevive na cidade. É tão georgiano quanto um
kachapuri, vender efígies de Estaline ou conduzir sem qualquer respeito pelo
código da estrada (spoiler alert). O nome da capital significa, aliás, “o lugar
quente”. Vir aos banhos é um pouco como apertar a mão à cidade e fazer conversa
de ocasião para não desapontar um anfitrião. É essencial. Quase todas as termas
ficam na mesma zona, o bairro de Abanotubani, colado ao rio e distinguível de
imeditado pelo traço dos seus edifícios termas, casas de tijolo basso encimadas
por uma cúpula onde uma chaminé revela segredos através de fumo. Preenchidas
por buracos que deixam passar a luz, já que tradicionalmente o interior não
possui iluminação artificial, é debaixo de terra que a acção acontece. As águas
vêm de uma fonte que origina num pequeno ribeiro que ladeia o complexo termal,
inserido no meio de outros edifícios locais, e a temperatura ronda os 40 graus.
É um bocadinho como ter Beja durante o Verão a escorrer pelas costas. Embora as
águas tenham propriedades medicinais, uma boa parte dos visitantes actuais
fazem-no pela experiência e pelo ambiente. Mas o seu papel na cultura georgiana,
e costumes, é inegável. Ir às termas é o pretexto de vários romances e poemas
da literatura nacional e até asiática. Estão abertos durante todo o ano, mas é
no Inverno, logicamente, que a procura aumenta. Ao contrário dos banhos mais icónicos
de cidades como Budapeste e Istambul, os de Tbilisi não são spas. As pessoas
não vêm aqui para ser apaparicadas, mas sim por questões de saúde e higiene. A
pessoa em questão despoja-se do vestuário e instala-se ao natural numa sala que
pode ou não se partilhada. A actividade termal tem divisão sexual por questões
de decoro, excepto se optarmos por uma sala privada, onde cada um pode aquecer
com a cara metade sem que ninguém tenha alguma coisa a ver com isso. Se te
sentires um conde abaronado, podes pedir um tratamentozinho medicinal mais
relaxado, proporcionado por um ou uma Mekise. Esta pessoa, especializada em
manusear o teu corpo da mesma forma que eu trato os lençóis da minha cama
quando tenho de enfiá-los na máquina de lavar, uma massagem vigorosa para remover
a pele morta e assim contribuir para a saúde da tua epiderme, que se fores bem
a ver, merece plenamente, pois tem de te aturar durante o dia inteiro.
Não as experimentamos, mas do que
leio de experiências alheias posteriormente, fico arrependido. Observo-as do
exterior e tomamos um caminho que passa por entre os vários complexos de
banhos. Encostada ao espaço, a mesquita de Jumah não toma conta da estranheza
da sua presença, espaço muçulmano em terra de fortes crenças cristãs. É o único
espaço de culto islâmico em Tbilisi, herança sunita do tempo dos Otomanos.
Sofrendo do mesmo processo de construção e reconstrução que marcou todos os
edifícios da cidade, deve a sua sobrevivência à devoção de um milionário azeri
que financiou a sua reconstrução. Misturando arquitectura árabe e neogótica, a
sua fachada em grande arco, cobertas de pequenos azulejos de azul do mar,
combinando com o ribeiro que a separa das termas, convida à entrada. É também
um símbolo de união numa cidade multi-cultural. Que eu saiba, é a única
mesquita no mundo que recebe Sunitas e Xiitas, dois ramos da religião muçulmana
tantas vezes em conflito e recusando entendimentos. Quando a mesquita xiita foi
destruída aquando a construção da ponte Metekhi, estes ficaram sem lugar de
oração. Os Sunitas abriram Jumah aos seus adversários doutrinários e desde
então, ambos os grupos partilham o espaço sem conflito aparente. O caminho
segue o curso de água para longe do rio. Está acimentado e tem claramente um
destino. É aqui que o leviatã do turismo de plástico assoma de novo, entre
gente com vestes tradicionais à procura de um cobre mais através da sua
presença ou de folclore bacoco e ponde carregadas de cadeados, celebrando o
amor e também as falhas de engenharia que um dia provocarão lesões graves a alguém
no leito do ribeiro. Fica evidente qual é o destino desta via sacra penitencial
do vil metal. A alguns metros, vejo uma bonita cascata e como já aprendi
noutras andanças, não há beleza natural que não possa ser estragada por gente
sem outra sensibilidade que não seja o vazio. Um par de jovens espera o turista
com bicharada, um falcão e um macaquinho. Já vi disto no Peru, mas aí usavam
lamas e vicunhas. Fazem-nos sempre sinal a indicar a oportunidade fotográfica.
Damos uma notinha, tiramos uma foto com o bicho, ficamos ambos contentes. Só
que não. Na minha cara, veem um cruzamento estranho entre o doutor House e o
Wolverine e a minha máquina fotográfica vira-se para a água que cai pela rocha.
Três polícias vigiam o espaço, aos quais se junta um quarto. Fico com a ideia
de que este ponto é o perfeito local de ócio para as forças de autoridade
locais e que algures noutros pontos da cidade, criminosos marcam os horários da
sua actividade pelo trânsito dos senhores agentes junto à cascata. Se o fazem,
são espertos. Olho para esta garganta de pedra e imagino, algures em séculos
passados, mulheres lavando aqui a roupa à mão. Do que li na minha pesquisa
prévia, mães de família costumavam passear por aqui como olheiras de futuras
esposas para os seus filhos, numa versão sentimental do jogo Championship
Manager aplicada à actividade matrimonial. Procuravam porventura qualidades
úteis a uma esposa, como a destreza na aplicação de sabão ou a assertividade
quando se curtem lençóis contra calhaus para tirar as nódoas mais rapidamente.
Imagino-as a registar nomes num bloco de notas e a comparar as melhores
contratações possíveis umas com as outras. Tendo em conta os costumes
religiosos locais, duvido que as jogadoras pudessem ser contratadas com opção
de empréstimo.
Depois de passarmos pela sinagoga
de Tbilisi, não muito distante da mesquita a cuja porta estivemos – provando
que estas duas religiões do livro não se largam nem por um bocadinho – a ideia
é batermos à porta de um curioso museu: o das Relações Acabadas. Apropriadamente,
dá-nos uma tampa. Está fechado. O motivo tem menos a ver com o nosso desamor e
mais pela arquitectura do próprio edifício, que conserva muitos traços das
casas civis soviéticas. O uso da madeira, a varanda que sai para o exterior
suportada por vigas, duas assoalhadas com divisões encabeçadas umas por sobre
as outras. Mas depois de a Georgia acabar a sua relação com a URSS, é
apropriado. O projecto foi iniciado por um casal croata, Olinka e Drazen, e é
um dos poucos, talvez único, núcleo museológico cujo espólio reunido depende
totalmente de crowdfunding. Os objectos em exposição são enviados por quem
quiser, se onde quiser, e dizem respeito a esse momento sempre mágico e
inesquecível que é o fim de um relacionamento amoroso. Do exterior, não consigo
vislumbrar qualquer bulldozer, mas acredito que exista por lá um. Pelo menos, é
assim que me costumo sentir quando me partem o coração. As pessoas enviam os
objectos para se livrar da sua presença ou então porque têm um valor
sentimental profundo que sobrevive ao trauma da separação. O amor e o seu fim
são ecuménicos, afinal, um pouco como Tbilisi. Atravessam origens geográficas e
crenças no Além, atravessam diferenças de carácter e disposição, atravessam
barreiras sociais e culturais. Algures, alguém já foi atropelado por esse TGV
que é a decepção emocional. As relações não são apenas amorosas. Podem ser
familiares ou de amizade. O Amor tem muitas formas de se exprimir. Apesar de o
conceito ter começado na Croácia, rapidamente se alargou pelo mundo. Existem
sucursais em São Francisco, Singapura, Istambul, Cidade do Cabo ou Buenos
Aires, para dar alguns exemplos. Descubro mais tarde que o mais recente abriu
em Portugal, na cidade de Aveiro. Talvez porque é fácil afogar a tristeza com
uma caixa de ovos moles; ou porque certos amores e desamores são um pouco como
um moliceiro esburacado, prontinho a repousar no fundo da ria local.
Por entre ruas estreitas e becos
desavindos, onde vários estilos e almas se dardejam e gotejam em trocas de
séculos comuns, andamos um pouco sem rumo. A zona histórica de Tbilisi é de uma
decadência com classe e personalidade, onde até mesmo as ruínas, num orgulho
muito próprio, como quem cai pelas escadas abaixo de fraque e cartola, têm
muito para ver e para reter. A cidade parece desaparecer e morrer, mas com o
sentido de humor de Oscar Wilde que no seu último fôlego, topando o papel de
parede do seu quarto, proclamou: “Bem, um de nós tem de ir embora”. Noutras
cidades, esta morte seria real; mas porque o Turismo é hoje um importante
factor monetário, alguém algures elaborou um projecto que não está isolado: a
certa altura, reparamos que há um extenso conjunto de obras públicas que visa
recuperar alguns edifícios antigos e abandonados. Nalgumas zonas até já se
observam os seus efeitos. O resultado, por uma vez, satisfaz. O respeito pelo
desenho original é notório, a réplica dos elementos decorativos total, o charme
do século XIX não está presente, mas ainda assim faz uma aparição especial. Há
uma limpeza que se deve claramente à modernidade, mas o desenho neo-gótico e os
elementos arabescos e até soviéticos reconhecíveis. Novamente, Tbilisi parece
uma cidade deLorean, viajando no tempo, uma cabine telefónica azul na qual
esperamos encontrar um Doctor Who falando um idioma que ninguém reconhece e
cuja escrita se nos escapa. Há urbes dominadas por monumentos de espanto ou por
uma vida cultural intransigente na sua dinâmica. Outras atraem-nos pelo seu
esmagador tamanho; mas Tbilisi é fascinante nessa sanfona existencial que
propele para o futuro com um motor do passado. O presente não parece bem
existir, é um estado temporário por definição, mas também necessidade. A
capital quer-se bem lá à frente, mas deixar o que a fez para trás. Reconhece o
que a faz forte, mantém o que o visitante procura e os habitantes de
acostumaram a ter e a chamar de seu. Se a ligação às tradições e o
conservadorismo por criar por vezes um ambiente hostil à diferença, por outro
lado mantém este vínculo que vemos nas casas de muitas cores, verdes amarelas e
azuis, que vão surgindo numa das ruas mais antigas da cidade e que desemboca na
Abesadze, uma via que desce quase directamente para a principal rotunda de
Tbilisi.
Não é só o tempo a dar horas,
também a barriga. Descemos a Abesadze, abstraída de trânsito, procurando um
espaço agradável para o nosso primeiro almoço na Georgia. No trajecto, passamos
por uma igreja reconhecidamente católico. Posso ser agnóstico, mas 18 anos de
educação católica não se atiram assim à rua. É o maior templo local desta
confissão religiosa, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção., mas a zona onde
nos encontramos tem sido historicamente o bairro católico. Já aqui existiu um
mosteiro dominicano e também uma outra catedral, a da Anunciação, bastião
católico numa terra dominada por muçulmanos. Esta versão foi construída apenas
no século XIX e durou apenas algumas décadas, porque quando a URSS engoliu o
país, o culto foi proibido e a igreja fechada. Apenas em 1993 houve a
reabertura e desde então que vai funcionando. Entramos, apenas com alguma curiosidade.
A decoração é relativamente simples, com alguns candelabros dourados e uma
estátua da Virgem segurando o Menino Jesus e denunciando o orago do templo. Nas
paredes laterais, encontram-se alguns baixo-relevos. Parte do grupo indaga
sobre o que significam. O meu tempo no lado crístico da Força leva-me a
identificar de imediato as estações da Via Sacra. À entrada, Cristo é criança;
mas como em quase tudo o que envolve o Cristianismo, a Morte é o tema central e
forte. Depois de termos caminhado durante toda a manhã, sentamo-nos em
descanso, no silêncio. Contemplo um pouco e respiro mais pausadamente. Penso no
Tempo, no Espaço e nas dimensões de Tbilisi, outras e de outrem. Quero
filosofar e reflectir, quero rasgar o cosmos com grandes conclusões, mas a
minha cabeça é sempre trazida ao seu verdadeiro e derradeiro valor pelo órgão
que verdadeiramente manda nas minhas vontades: o meu estômago. Vai ressonando
ausências. Uma relação acabada com a comida. É necessário procurar um poiso
para acalmá-lo. De outra forma, passarei a tarde a caminhar torto em
desfalecimento.
Apropriadamente, o restaurante
que encontramos é a perfeita reflexão de um desfalecimento. Mas isso é uma
história para a próxima semana.
segunda-feira, agosto 23, 2021
Georgia on my blog 2: Penitência
Para alguém a quem é regularmente
requisitado um relato das viagens que faz, sou um péssimo viajante. Digo-o
várias vezes e praticamente ninguém acredita. Mas é verdade. Os grandes
viajantes, pelo menos aqueles que leio e que conheço e que sigo, têm um grande
sentido de aventuras e disponibilidade. Alinham em tudo e arriscam, são
arrojados, estão lá para disfrutar das diferenças. Eu pertenço a um clube
diferente, que não tem todas as modalidades; e uma delas é a da alimentação.
Dizem que a comida é uma óptima maneira de percorrer um novo país, mas aí sou
turista de sofá. Tenho vários problemas de gosto e desgosto, desgosto na
maioria, que me cortam a iniciativa no que à culinária concerne. Petisco aqui e
ali, mas com o cuidado de um celíaco deixado numa feira de francesinhas. Mas
gosto de saber o que é o quê, os ingredientes, a alma de um país nos excessos e
ascetismos alimentares; e até mais do que ns restaurantes ou bancas de rua, um
bom método de conhecê-los é através dos pequenos-almoços nos hotéis onde durmo.
Invariavelmente, há um buffet onde o hóspede pode livremente escolher o que
mete na pança. Em quantidade e género. O “Brim”, o nosso primeiro hotel na
Geórgia, oferece uma vasta gama de panificação, desde o universal pão de forma
até outros de sementes ou mistos. Há também panquecas para gulosos. O queijo
abunda, juntamente com os enchidos, mas há também pratos com quadrados de
manteiga e vários potes de doce. A fruta faz-se representar pela família dos
melões, em três géneros. Para beber, há café, chás vários e noto que existe o
hábito de beber o leite frio, não quente, e se o quisermos, temos mesmo de
pedir, não está disponível para consumo imediato. Presumo que não seja parte
tão integral dos pequenos-almoços caucasianos como dos nossos. Há alguns bolos
e tartes também, que considero sábio afastar-me logo na minha estreia. Um
contacto medido, calculado. O suficiente para alimentar o corpo para um dia
longo, cansativo, de tonificação das pernas. Sento-me algures juntos dos meus
companheiros e viagem. Optei por pão de sementes com manteiga e uma caneca de
leite. A simplicidade que Buda tão bem apregoava. Talvez Buda fosse um
cobardolas alimentar como eu. Os historiadores deviam pesquisar sobre isso.
À saída do hotel, é visível o Palácio da Presidência da Georgia e uma rua que desce em direcção ao centro da cidade. Mas a opção é subir. A uma certa distância, avisto uma cruz no topo de um texto triangular muito angulado. É a pontinha da Igreja da Santíssima Trindade de Tbilisi, conhecida popularmente por Sabema. Os georgianos são uma população profundamente religiosa, em sentimento e em preconceito. Semanas antes de ter aqui chegado, uma marcha do orgulho gay foi cancelada porque os seus organizadores foram atacados por elementos da extrema-direita política local, provando para lá de quaisquer dúvidas o quanto os partidos de extrema-direita têm lugar numa sociedade democrática. A marcha fazia parte de um evento de cinco dias, organizado para celebrar as várias e distintas identidades sexuais do país. Indivíduos menos abertos à iniciativa simplesmente invadiram o escritório dos organizadores, num terceiro andar, uma boa parte dos sevandijas trepando as paredes exteriores, partindo tudo, agredindo gente – incluindo jornalistas – e queimando os símbolos identificativos da comunidade gay. Não é como se o ataque fosse inesperado u até uma aberração dentro dos sinais que o Governo dera. O primeiro-ministro do país, Irakli Gharibahvili, avisara que tais demonstrações de orgulho seriam vistas como inaceitáveis para a generalidade dos habitantes do país. A Igreja Ortodoxa, principal entidade religiosa da nação, invocara um dia nacional de oração contra a marcha, como se algures uma entidade divina tivesse feito da sua vida uma missão contra quem é diferente. A ironia maior é que apesar de tudo, Tbisili tem uma orgulhosa comunidade gay, sem grande medo de demonstrá-lo em público. Nos dias que passei na cidade, vi várias vezes casais de pessoas do mesmo sexo passeando de mão dado, beijando-se e acariciando-se em público; e os anos anteriores viram marchas e festivais de orgulho desenrolando-se na cidade. Ocasionalmente com problemas, outras vezes pacificamente. Mas a estratégia de quem usa a violência para calar o que se celebra na diferença é precisamente obrigar a esconder, a ocultar… o que nunca deu bom resultado, pelo que sei da História. Quase como se a ignorância fosse morte, e em várias maneiras até, estes ogres são prova disso. Os ogres em questão mexem-se no espectro da extrema-direita e nas mangas da Igreja Ortodoxa nacional, que a pretexto de valores tradicionais e outros que, baseados num livros escrito há milhares de anos por povos antigos com uma concepção de vida muito diferente da nossa, são arcaicos e retrógrados, pretendem impor uma visão do mundo que nem sequer se pode chamar de antiquada, visto que até povos antiquados como os Gregos e os Romanos a aceitavam.
A Igreja da Santíssima Trindade é de 2004, recente para os padrões dos grandes edifícios religiosos que conhecemos; mas é um dos mais largos edifícios religiosos do mundo e a terceira catedral ortodoxa mais alta de toda a cristandade. Sendo recente, a ideia foi sintetizar no seu desenho algumas das grandes tendências da monumentalidade da fé georgiana. A início da sua construção, em 1989, marcou uma afirmação da identidade nacional, baseada na religião, contra a opressão soviética e num país que adoptou uma bandeira com cinco cruzes de São Jorge, não é difícil perceber a motivação e o sucesso da escolha. Porque a minha religião é melhor que a dos outros, o Patriarcado de Tbilisi decidiu destruir um cemitério arménio que se encontrava no local, que por sua vez já tinha sido vandalizado pelos soviéticos. É de notar que os Arménios são ortodoxos, mas de um ramo diferente dos georgianos. Os países são vizinhos e, no que talvez não seja coincidência, ambos reclamam para si o título de primeiro país cristão em toda a História. Como o Cristianismo revela paz e amor, claro que os Georgianos optam pelo preconceito e desprezo. É algo tão velho quanto o próprio tempo e chama-se subjectividade. Claro que Cristo falava da amizade entre os povos, mas será que alguma vez conheceu um Arménio? Pois. Portanto, a Georgia sentiu-se legitimada a destruir um importante património histórico e espiritual num bairro historicamente arménio. Acho sempre curioso como a construção de um edifício simbólico pode reflectir o espírito de uma comunidade, a sua caminhada; e concretização desta Igreja acompanhou os avanços e recuos do progresso da Georgia, dentro dos seus problemas e tumultos e guerra civil, avançando e parando conforme os ímpetos da estabilidade. Daí só ter ficado completada em 2004. É estranhamente simples nas suas linhas. O complexo que a rodeia inclui as residência do Patriarca de Tbilisi, um jardim, um mosteiro, um seminário e outra logística de apoio a fiéis e peregrinos. Há um portal de entrada ainda longe da própria igreja e temos de percorrer a distância que os separa agredidos pelo sol da manhã, quente, deixando antecipar um dia de calor abafado. Ainda são nove e meia da manhã e já estou a suar como se fosse um gato num bairro recheado de restaurantes chineses.
Depois de algumas fotos, ouço um
murmúrio grave e com o ritmo regular de um metrónomo vocal. Não reconheço a
língua, como tal deve ser georgiano. Sinto-o planando do interior do edifício e
não estou sozinho. À entrada, duas senhoras idosas vestidas de preto parecem pensar sobre as suas escolhas de vida; e o negro é a cor que mais se repete
no vestuário de quem está e de quem chega. O espaço é largo e muito alto, sem
decoração na pedra que não linhas directas, verticais, relevadas. Em cada uma
das seis colunas interiores, olha-nos o desenho berrante de um ícone ortodoxo,
invariavelmente um idoso de túnica azul segurando uma relíquia e um livro com
os olhos tenebrosos de quem julga sem vergonha, de quem pede penitência e não
dá clemência, só oportunidade. Na parede sobre o altar, há uma gigante versão
de um destes ícones, um imenso homem de vermelho e ciano que ergue a mão em
bênção. É Jesus, o Nazareno. Por debaixo, numa versão menor, o patrão maior do
Cristianismo ensina alguns históricos patriarcas ortodoxos, provavelmente na
melhor maneira de conseguir comida infinita. Enquanto capto estes pormenores,
os cânticos tornam-se opressivos, inescapáveis, pesados. A ideia parece são ser
celebrar, mas punir. Vigiar e punir. Não há instrumentos, apenas vozes de
homens, das profundidades de uma caverna já de si profunda, clamando num idioma
que me é estranho pela vibração do arrependimento. Os fiéis presentes alternam
entre o macilento e o dramático. Enquanto passeio, não ouso fotografar, a não
se alguns cliques discretos que carrego com a máquina junto ao peito. Não sou
cristão, mas momentos de devoção carregada de desespero de alguma forma
comovem-me num certo antro cá dentro que não sei bem como apagar. Tenho
simpatia por quem chega ao fim do caminho e só encontra de bom para si o
inacreditável. É preciso atingir um certo ponto de angústia, ou de crença
inquestionável, para se ser religioso. As instituições religiosas costuma
jogar com isso, com essas duas capacidades: a de perder a esperança num saco
roto ou a de se entregar sem qualquer tipo de hesitação ao que é
incompreensível. Sei-o racionalmente, devia olhar para estas pessoas como
papalvos, e sei que parte de mim o faz e fará e está a fazer enquanto escrevo
isto. Mas quando beijam os quadros e as figuras com devoção, e total
desrespeito para com as regras higiénicas contra a COVID-19, quando estacam
minutos desfilantes numa tentativa de desfibrilhar a vida pelas letras que
constam num pequeno livro de oração, quando mulheres entram de cabeça coberta
numa reverência maquinal, há algo que não se consegue bem transmitir nas
palavras e que só as grandes mentiras permitem: a comunhão de uma ilusão que
não percebe nem entende, mas que se abraça sob pena de vivermos mais
solitários, mais abandonados. Dando uma volta a pé pelo espaço da igreja, vejo
bastantes pessoas. Sou apertado por cada nota musical cantada, num momento que
me é raro deixo-me deslizar à maneira de uma bola que num jogo de bilhar se
encaminha para o buraco, mas bate três vezes nos cantos e sai. Observo,
tentando não invadir o espaço de cada um. Reparo que sentado uma cadeira, um
homem ricamente vestido, preside a tudo com uma cara menos beatífica e mais
feroz. Barba de derviche, longa e grisalha, óculos redondos e uma postura de
quem está muito para lá de oferecer consolo. Sinto que os ícones espalhados,
atrás de vidros, limitados por molduras, oferecem mais empatia que aquela
figura. O momento é solene, tem a sua beleza, mas até naquele antro interior
cuja localização me é desconhecida, entendo que o que vejo no mundo está para
lá das vibrações da voz que empurra para as brasas. Sem pressa, com paciência,
encaminho-me para a saída. O espaço luminoso não esconde as ondas tenebrosas de
uma ortodoxia escura, à moda eslava, mas perdida entre a Europa e a Ásia. Um
cristianismo feito por gente dura e dada ao sacrifício, cuja História está
carregada de episódios de abnegação perante uma força maior, como se o
indivíduo se submetesse a vontades insondáveis de morte alheira para a
celebração de valores universais se o universo estivesse mais carregado de anãs
vermelhas de sangue do que de supernovas de esperança. Oferecem algo naquela
igreja, mas não vou aceitá-lo, porque há algo em mim que se repele quando vê
mulheres cobertas de negro da cabeça aos pés como se essa fosse a sua única
missão enquanto vivas. Antes de me retirar, a última imagem que me fica é a de
uma idosa encostada a uma coluna, em transe, com um caderninho nas mãos que lê
em sofreguidão existencial. As carnes da cara afundam nos espaços entre os
ossos do crânio e por momentos, sinto que quanto mais reza, mais paga em saúde
física. Dias depois de ter voltado de viagem, a face daquela pessoa ainda me
lança em inquietações sobre o mundo. Quando li pela primeira vez sobre a
vitória dos Taliban em Cabul, foi nela que pensei. Gente que parece viver, mas
que na verdade se esfuma numa altar pírrico como filhos de um deus menor,
desconhecido e inconcebível no seu desprezo e da sua indiferença perante o que
é realmente importante. Nós.
Uma rua, do nosso lado esquerdo,
atravessa um bairro antigo de Tbilisi e é por ela que vamos aceder ao centro da
capital. Casas velhas e decrépitas alternam com casas destroçadas. Tijolos
persas associam-se a novas cores berrantes e há, espreitando de portas
espaçadas, desejos de transformação turística. Existem ocasionais negócios, mas
acima de tudo a confusão que aprendi a associar às cidades asiáticas, um caos
organizado onde todos se entendem, menos os pobres estrangeiros que não
receberam o manual. A certo ponto sinto-me a alucinar, porque juro ter visto
condutores em posições diferentes de veículos. Uns guiando à esquerda, outros
à direita; mas percebo que é o comum, que os carros com volante destro são mais
baratos e afinal, uma das grandes capacidades do ser humano é a adaptação.
Passamos por um pequeno parque onde velhotes jogam à sueca e continuamos a
descer, ladeados por trânsito aleatório até um pequeno miradouro que oferece
uma vista de grande quilate sobre o parque Rike, um dos locais mais
frequentados de Tbilisi. Situado junto ao rio Kura, é um espaço para se estar e
ficar, muito verde, com fontes luminosas, um skate park e várias construções de
aspecto modernaço. É um dos símbolos da transformação da Georgia numa pátria de
inspiração ocidental, europeia, contemporânea. Tenta fazer pelos seus
habitantes o que a perseguição de gays desfaz rapidamente. O parque têm outros
objectivos simbólicos. Visto numa perspectiva aérea, e é possível fazê-lo
através de um balão estacionado mesmo no centro da área, cria um mapa em grande
escala da Georgia, com as suas linhas fronteiriças regionais. Espalhados pelo
espaço, há objectos curiosos e claramente colocados para oportunidades
fotográficas: um grande piano branco de mármore, um tabuleiro de xadrez gigante
com peças a condizer e uma sala de espectáculos construída para se destacar,
pois termina em dois mastodônticos tubos de metal que dominam o lado leste do
parque. Brincam com a opinião alheia acerca da sua harmonia ou cacofonia
relativamente ao espaço. Mas destacam-se e convidam-nos a explorar e ver. Todo
este espaço chama-se, apropriadamente, a Praça da Europa. É um piscar de olho à
União Europeia, um convite ao convite. Uma demonstração de simpatia pela Europa
ou a reflexão da ideia de que se a Polónia e a Hungria podem fazer parte dos
valores europeus, porque é que não temos os mesmo direito?
O miradouro é um varandim onde podemos tirar
fotos e contemplar os elementos mais
evidentes do parque e também a outra margem do rio, que visitaremos de seguida
e inclui o que de mais importante compõe o seu centro histórico. É o nosso
objectivo seguinte. Temos de descer umas escadas íngremes, atravessar o parque
e depois o rio. Vou presumir, porque adoro presumir sem certezas, de que existe
uma ponte para atravessar. É a beleza da presunção do que não se sabe, a esperança
e a fé de que existe. Enquanto caminhamos, vejo crianças brincando, artistas de
rua, vendilhões que não do templo. Neste parque, Tbilisi é uma cidade de tempo
que há-de vir e não o amontoado confuso de casas inabitáveis onde mora gente,
de poeira e sujidade que vi no caminho que desci. Da mesma forma que se pode
perceber muita coisa sobre um por aquilo que come, também se intui a ideia que
fazem de si através das suas cidades. Esta capital procura-se num meio caminho
entre o que o passado fez e o que um futuro pode trazr de novo ou manter de
antigo. O parque Rike e a Igreja da Santíssima Trindade são ambas modernas, mas
não da mesma maneira. Um abraça a ruptura, a outra mantém uma continuidade de
algo necessário, mas pernicioso. Como a paixão da qual não desligamos e nos vai
mirrando. Talvez seja assim a Georgia. Um jogo de corda que puxa de um lado,
puxa de outro, mas não parte nem acaba. Só estica e vai esticando. Numa encruzilhada
que não sei bem onde vai dar; mas numa cidade que ainda que dividida, tem muita
personalidade, sinto-me com vontade, apetite e abertura de mente para tentar
descobrir o que mais há. Se sou renitente em encher o bandulho de comida
internacional, dou graças a esses deuses da viagem chamados curiosidade e
caminhada de ser felizmente muito guloso nos cozinhados da descoberta.
segunda-feira, agosto 16, 2021
Georgia on my blog 1 - Reinícios
Portanto, a bem da honestidade que sempre caracteriza as crónicas de viagem que escrevo, devo informar que este não era o plano original. Vamos rumar ao Cáucaso, mas era suposta, depois de duas semanas com os olhos e os pés na Ásia, uma viragem radical na bússola e aterrar na América do Sul. Uma andança pelos Andes, bulindo na Bolívia com um desvio pelo Chile, na pontinha que abarca o Atacama. Duas semanas, montanha da boa e altitude para me dar cabo das articulações. No entanto, desde as minhas desventuras pela terra do tio Jinping, o Império do Meio passou a ser mais falado. Em primeiro, porque finalmente deu jeito à comunidade internacional usar os uigures como arma de arremesso contra a China, depois de ter feito aqui o alerta. Não estou a dizer que o Guterres fala comigo todos os dias, mas… não, não fala. Bolas, se quiser missa, há muito por onde escolher em Coimbra. E depois, algures por volta de Dezembro de 2019, uma história passou rapidamente de risota para pânico generalizado sob a forma de um vírus saído de Wuhan, anónimo, manhoso, uma praga respiratória mais parida no Extremo Oriente. Mas ao contrário de gripes aviárias e suínas, esta pegou mesmo. Era uma questão de tempo até a nossa própria incúria como espécie de pináculo da evolução nos apanhar. Os Gregos chamam-lhe “hubris”; e esta “hubris”, que também virou “nemesis”, condiciona as nossas vidas em fluxo temporal e sem pedir licença. Vai para ano e meio. Daí que no ano passado tenha ficado em terra; e daí que mesmo este ano, até um mês antes de ter comprado a viagem, também temesse mais uma translação planetária de arranhar os braços, qual viajómano sem dose. Mas tudo se deu pelo melhor e tive carta branca e certificado preenchido. Só mudou o destino. Dos Andes, mudei para o Cáucaso.
Porquê a Georgia? A bem dizer, estava
na minha ideia há alguns tempos. A divisão geográfica entre Europa e Ásia é um
daqueles territórios ambíguos de identidade, fecundos de histórias e Histórias.
Ter sido passadeira de impérios e povos, culturas várias de fusões únicas torna
esta região que vai do Mediterrâneo às fronteiras do Irão numa espécie de
caixinha de brinquedos partidos, mas valiosos. Ainda hoje o território
georgiano está marcado pelas múltiplas identidades que ficaram destes passeios.
A Abecássia e a Ossétia do Sul são duas nações sem estado, que reclama uma
existência separada da Geórgia e que ainda hoje mantêm uma disputa na sua
independência. Falaremos delas mais à frente. São ainda resquícios de uma
ocupação soviética longa e que ainda hoje marca uma boa parte do país, ainda
vivendo no estado mental russo, num espírito eslavófilo impossível de apagar.
Percorrer o país é assistir ao confronto entre esse passado e um desejo de fuga
para a frente, que como na esmagadora maioria dos países europeus de Leste que
fizeram parte do sistema comunista, encontra abrigo e desespero na adesão à UE.
Mas o passado da Georgia é muito mais antigo do que a ideologia de Lenine.
Entre a realidade história e o planalto mítico, o país chama a sai múltiplas
heranças, quase todas com a marca ocidental. Numa bruma de imaginação, era aqui
que estava guardado o tosão de ouro buscado por Jasão; e também no Cáucaso
encontramos o local de tortura bárbara a que foi sujeito Prometeu, o Titã que
ousou a entrega do fogo divino da inteligência aos homens e que por isso foi
punido a ser parcialmente comido por uma águia todos os dias durantes séculos.
Os achados arqueológicos, dizem-nos, no entanto, que a região era habitada
desde o Paleolítico e que foi uma das primeiras regiões do mundo a produzir
vinho – os georgianos dirão que foi a primeira. A alguns reinos temporários,
como Colchis ou a Iberia (sim, Iberia, leram bem), seguiu-se uma ocupação
romana tensa, com disputas permanentes com os Partios, antepassados dos actuais
iranianos. A área, plena de cultos pagãos, foi cristianizada em 337 e desde
então, orgulha-se de se proclamar como a mais antiga nação cristã do planeta.
Como verão, este é um dos suportes maiores da identidade do país. Depois de uma
ocupação muçulmana, a Idade Média trouxe nos séculos XII e XIII um período de
esplendor nas artes, ciências e política nos reinados de David II e da sua neta
Tamar; mas durou pouco e os séculos seguintes viram este território a soçobrar
primeiro perante os Otomanos e depois o Império Russo. Foi na esfera deste
último que a Georgia se manteve até 1991 e é o bafo deste último que sopra
ocasionalmente no pescoço dos georgianos quando os senhores de Moscovo se
recordam do quanto gostam de aventuras expansionistas. Hoje, Salome
Zurabshvilli é a presidente do país e um raro caso de uma mulher liderando um
país numa região marcada a fundo por fundamentalismos religiosos que por
natureza não têm grande amor pela plenitude da Mulher.
Acima de tudo, e algo que me
interessava por demais depois da experiência chinesa, a Georgia é um país onde
é possível andar com liberdade e existe uma certeza relativa de que não me
estão a espiar constantemente. Ainda que esteja vacinado e, como sabem, o meu
chip de 5G me denuncie aos overlords do mundo. Depois de um ano parado, não
estava com apetite para grandes aventuras e risco. Nove dias no Cáucaso,
relativamente interessantes e com bastantes oportunidade fotográficas,
apelavam-me o suficiente. Para mais, ainda me permitia presenciar o aniversário
da minha sobrinha, algo que lhe prometera. Ainda que a Beatriz não saiba
distinguir, por ora, “promessa” de “à pressa”, era para mim importante, visto
que sou tio e padrinho e acima de tudo, palhaço da garota. É um cargo
importante. Encaro tudo com alguma leveza: levo apenas dois livros e alguns
podcasts para me entreter. As viagens não serão longas e com um bocado de
sorte, ainda passo pelas brasas. Calha que o dia da viagem seja precedido por
uma noite muito mal dormida. Quando chego ao aeroporto e me despeço da Catarina,
ainda me sinto meio grogue. Não ao ponto de me sentir a desmaiar quando o avião
descolar, mas já naquele ponto onde a realidade é apenas um conceito desfiado a
lã. Os protocolos de segurança parecem-me, por isso, normais ainda que não o
sejam. A minha temperatura é medida várias vezes no aeroporto e sinto que sou
mesmo uma brasa e toda a gente o nota. O certificado é obrigatório em todos os
pontos e a certa altura, julgo até que me vão perguntar pela cor dos boxers e
se tal bate certo com o lote da vacina que consta do ficheiro. Quando encontro
o grupo com o qual vou viajar, uma novidade: algures, quatro portas abaixo da nossa,
está uma conhecida figura. José Sócrates. Ex-primeiro ministro, actual bandido.
Se calhar, quer roubar milhas aéreas às pessoas, sob o pretexto que são todas
suas amigas e que no fundo, é apenas um empréstimo. Talvez venha inspeccionar
se os aviões cumprem as regras relativamente ao combate às alterações
climáticas. Afinal, Sócrates foi ministro do Ambiente, uma pasta que pertenceu
a indivíduos honestos e ligados à causa pública, como Isaltino Morais ou
Arlindo da Cunha; mentes tão brilhantes e progressistas quanto Assunção Cristas
e Luís Nobre Guedes; ou esse monstro da decência que é o corrente João Matos
Fernandes, homem que defendendo a causa ecológica, quer escavações a céu aberto
no único parque natural português e um aeroporto numa área natural protegida.
Não sei mesmo como é que acham Sócrates uma anomalia. Ele apenas fez escola.
Veio ao aeroporto certamente para aguçar o seu instinto verde. Sinto a tentação
de conversar com ele, de lhe perguntar se é rumor ou realidade que fará com Al
Gore uma dupla de forças especiais que, vestida de Capitão Planeta, andará por
aí a punir os criminosos do ambiente; e se eventualmente tem mais amigos em
Paris ou quem sabe, ruma a Atenas para assumir o manto de filósofo do seu
histórico homónimo. Mas fico-me. Reduzido a uma insignificância de aldeão. A
única coisa que gamei na vida foi um rebuçado e senti-me culpado. Tenho
consciência, claramente não estou na mesma liga de sociopatas compulsivos.
O voo atrasa-se, mas sai. Ao meu
lado, um casal português que viaja para Istambul. Têm musiquinha de Lisboa no
paleio. Vêem imensos filmes. Aliás, no voo, querem ver um filme e “óvi-lo”
também. Mas riem ambos; ela diz que é uma aborrecimento ver filmes, porque
mesmo gostando muito acabam sempre por adormecer. Acharam o “Matrix” um tédio,
mas aconselho-lhes o “Casablanca” e isto parece ao homem uma ideia xexional.
Explico a premissa, falo do Rick Blaine e ele fica convencido. É um cláchico.
Tem de ser visto, nem que seja umavez, tudo pegado. Os clássicos são mto
importantes e eu concordo. Escusado será dizer que vinte minutos depois, sornam
pegados. Tento ler, mas sinto o cansaço a apanhar-me. Opto por um podcast sobre
Scorsese mas a meio, sinto que perdi algo. Dormi uns minutos e nem me apercebi.
Há anos, isto não aconteceria. Nunca fui de ter posição para dormitar em
transportes. Mas hoje a espera foi curta. Talvez seja a idade, talvez tenha de
abandonar esta ideia de que ainda sou jovem. Só na cabeça, só nas ideias. Só na
imaturidade. Até o tempo parece correr em vez de coçar e estamos a descer para
Istambul antes que me aperceba. Algures na memória, recordo-me de um mar
turquesa, de pequeninas casas, de barcos vagabundos. Mas não consigo localizar
onde. Divago sem voo, o único ar está lá fora e o que respiro é mais ficção do
que conhecimento do que sou, de onde estou. Sinto-me ainda mais trocado quando
aterramos na grande metrópole turca. Não é a minha primeira vez, mas sinto-me
como se fosse. Nada reconheço no aeroporto. Perco-me em mim e no exterior; vejo
um enorme painel relativo a Gobekli Tepe, que parece ainda maior perante a
pequenez do espaço. O Ataturk, quando aqui estive, pareceu-me bem maior, uma
cidadezinha própria. Mas depois de alguns letreiros, percebo que é um novo
aeroporto inaugurado em 2018, o terceiro internacional da cidade. É marcado
pela celebração a cultura turca. Gobekli Tepe é o expoente maior, prodígio
arqueológico descoberto no início do século e que obrigou a rever o que
sabíamos acerca da evolução das sociedade humanas. Datado de pelo menos 9000 anos
antes de Cristo, é indubitavelmente o local onde se desenvolveu uma cultura
complexa e com construções megalíticas dominadoras. Se não era uma cidade, era
um espaço religioso vasto. Para terem uma ideia, quando estive na faculdade, a
cidade mais antiga do mundo era Jericó, o Çatal Huyuk, conforme os estudiosos.
Ambas eram do ano 5000. Ou seja, Gobekli Tepe quase que dobra esta etapa da
evolução humana. É um local tremendamente importante e os Turcos, sempre
prontos a celebrar-se nacionalmente num onanismo otomano bacoco, aproveitam a
boleia e transformam em folclore este importantíssimo achado. O costume em
autocracias. Mas o nacionalismo bacoco também nos calha, Portugueses. Na espera
pelo voo para Tbilisi, sabemos que Patrícia Mamona ganha medalha de prata no
Triplo Salto. Com tudo isto, até me esquecera que há Jogos Olímpicos a decorrer
e que Portugal tem um ou outro atleta com qualidade. Nenhum de nós treinou para
a medalha, mas congratulamo-nos como se a tivessemos ganhos. Mamona somos nós,
nós somos Mamona. Quando digo esta frase na minha mente, soou muito melhor do
que ao vê-la escrita agora. Recordo-me da experiência na Ataturk em 2016, nas
mulheres tapadas, nas separações claras entre sexos, no domínio óbvio dos
homens. Não noto tanto isso desta vez. O Istambul International Airport está
mais distante da civilização, talvez seja disso. Talvez seja um hub entre
países onde o fantasmas das burkas e da Sharia não esteja tão presente. Ou
talvez tenha aparecido na hora da Tolerância e algures depois das oito,
apareçam os verdadeiros facínoras.
Duas horas e meia separam-nos da
capital georgiana. À noite, a Anatólia é tão obscura quanto o nosso
conhecimento sobre as culturas que daqui até às estepes mongóis, assombram a
visão do comum ocidental. Não sei o que esperar dos georgianos. Não o mesmo que
dos quirguizes, ou sequer dos chineses. Se serão mais europeus, mais asiáticos.
Se serão uns mestiços culturais. Perdidos entre dois mundos ou bem encontrados
num seu, com parcelinhas de todos os que fizeram destas terras casa temporária
e por aqui semearam mais do que vinhas. Consigo ler um pouco durante o voo. Um
livro sobre as consequências da Revolução Bolchevique na Ásia Central e os
velhos jogos entre os Russos e os Britânicos nesta importante geografia. Os
capítulos finais do chamado Grande Jogo. Algures no livro, após a morte de
Lenine, Estaline abre caminho para liderar a União Soviético. O paizinho dos
povos José nasceu na Georgia, é talvez o mais famoso dos todos os que deram por
si vivos neste país. Com o nome de Ioseb Besarionis Jughashvilli, nasceu em
Gori. Os mais lúcidos entre nós reconhecem nele um dos homens mais sinistros do
século XX, essencial para entender alguns dos seus principais eventos e
assustador para quem ainda se impressiona com a crueldade humana. Revelou algo
dela quando pôde dispor dos povos da Ásia Central. Teria ainda muito mais para
gastar até morrer em 1953; mas a história de Estaline é para ser contada mais à
frente. Quando me deparar no impacto desta figura num país em vários episódios,
nomeadamente num mercado de rua. Mas é incontornável. Portugal tem a sorte de
não ter um Estaline para recordar. Salazar, ditador conservador e de casual e
efectivo desprezo por quem pensava diferente, marca-nos pelo seu período de
governo, pela repressão e perseguição do que é diferente, pelo atentado contra
a liberdade que a sua existência representou na nossa História, pelo tratamento
dado aos que vivendo num espaço dito português, eram tudo menos isso no
além-mar. Mas no grande contexto da História, é aquilo pelo qual tanto lutou:
um provinciano, uma figura paroquial, um idoso desenhado na capa da Time sem
expressão mundial. A vilania de Salazar é, como Portugal, nossa e de pouco
interesse para os que marcam recordes de vítimas. Estaline está na primeira
liga. É um papão do mundo, é verbo de encher, é insulto fácil. Todos sabem que
foi Estaline. O que representa verdadeiramente. Alguém tão virulento na sua
impiedade, na sua iniquidade, que todo um regime de brutal repressão sentiu
necessidade de se afastar e renunciá-lo. Como o apóstolo Pedro fez a Cristo,
ele apóstolo misógino e misantropo. O legado deste fantasma é algo com que a
Georgia ainda hoje lida. A União Soviética era um espaço único, mas os males
são individuais. Estaline não é russo: é georgiano.
A viagem é tranquila. No
aeroporto, rapidamente encontramos o caminho para a zona dos passportes. Vou
estrear o meu. Uma jovem mulher interroga-me num inglês engasgado. Por debaixo
da máscara, fala baixo. Temos de nos repetir várias vezes, mas sorri-me com os
olhos várias vezes, pede-me mais documentos, o certiciado. “Welcome to Georgia”,
carimba-me e tenho a primeira marca no meu quase imaculado documento de
viagens. Há algo no ar e não é o perfume de uma nova terra. Um burburinho de
infecção não covidiana preenche as paredes. Não luz nem é ouro, mas revela-se
precioso. Enquanto espero a chegada da minha mala, vejo o constante abrir e
fechar da porta que dá acesso à entrada do aeroporto. Uma multidão imensa,
cheia de cartazes, enche o espaço. Por momentos, comovo-me. Sinto Portugal
brilhando alto, o orgulho da nação. Porque só pode ser uma de duas coisas: ou
esta imensa turba georgiana quer celebrar connosco a medalha de prata da
saltadora Mamona ou, atrevo-me a sonhar, são espectadores fiéis da RTP
Internacional. Há uns meses, participei no programa televisiso “Joker” e com certeza
sabem que chegava hoje. Querem parabenizar-me, aplaudir-me por não saber qual é
o elemento base de uma queijada de Sintra. Levar-me em ombros por ter posto
Vasco Palmeirim na ordem ao mostrar-lhe que há uma parvoíce maior para lá de
Alvalade e que ele desconhecia. Saudar com aparato militar o entretenimento
puro que a minha presença sempre desperta. Com ansiedade mal contida, lágrimas
transparentes nos cantos dos olhos, encaminho-me para aquele vasto magote,
pronto a abrir os braços, a receber aplausos. Mas desilusão: não é a mim que
esperam. O meu rosto não consta nos cartazes, a minha semelhança é pouco com um
outro homem que faz dois de mim e veste um kimono. Branco, ainda por cima. É
difícil exagerar o número de pessoas que ali estão. São centenas por certo, há
grupos folclóricos vestidos a preceito e dando música, bandas filarmónicas,
militares em peso com armas carregadas e prontas e render a guarda. Cartazes
toscos, demonstrações de admiração popuçar, bandeiras georgianas insufladas de
orgulho num quantidade capaz de enciumar Cristiano Ronaldo, melhor ser humano
português de toda a História e destinado a trocar de lugar com Afonso Henriques
no Panteão de Santa Cruz. Saberei mais tarde que o aparato se destina a receber
Lasha Bekauri, judoca que trouxe o ouro de Tóquio a uma nação de 4 milhões de
habitantes. Ao todo, o país trouxe 8 medalhas, metade delas no Judo. A de
Bekauri foi a primeira de ouro, à qual se seguiu outra no halterofilismo. A
luta livre completa o trio de modalidades que trouxeram a glória olímpica. Um
país de força e de defesa. Quando Bekauri chegar, verei mais tarde, está-lhe
guardada a volta em ombros que julguei minha por conta da aparição que fiz num
concurso de cultura geral. Ninguém dá o devido valor aos acumuladores de tralha
na cabeça.
Uma viagem de carrinha separa-nos
do hotel. São vinte minutos de aceleração até ao centro de Tbilisi. O nosso
hotel recebe-nos às onze e meia da noite. Sinto-me meio morto, mas não
completamente. O interior é meio bruto, o aproveitamente de uma estrutura
industrial. Cinzentos, azuis e esculturas a atirar para o contemporâneo. Mas o
pessoal é simpático, prestável, acolhedor. É o nosso primeiro contacto com
estas pessoas de um país diferente e saberei que, no geral, é um prenúncio
certo. Vou para o quarto. Tbilisi recebe-me abafada, estão quase trinta graus à
noite. Da varanda, contemplo uma cidade estranha. Por entre as luzes nocturnas,
despontam inércias arquitectónicas que parecem não ter lugar, parecem de outro
espaço. Têm cores berrantes, não se escondem nem disfraçam. Tecem as vozes que
vêm da rua e escondem a identidade tbilisiana, guardam um mistério que talvez a
luz do dia desvende. Depois de alertar os que me são queridos de que tudo
correu bem, de que não foi mais este país com nome esquisito a afastar-me do
seu convívio, estendo-me na cama, ainda nebuloso, ainda perdido. Talvez por
estar numa fronteira, talvez por eu próprio ser fronteira. Entre o que sou e o que
quero. Ou talvez esteja a complicar demasiado. Isso seria tão meu que até na
Georgia sou capaz de me sentir em casa.
quarta-feira, junho 03, 2020
As andorinhas do meu beiral
A identidade da casa onde cresci tem muito pouco a ver com o número que a burocracia lhe atribuiu e mais com aquilo que os anos lhe foram colando. Nem falo de sujidade, ou de uma fuga de cor que obrigado a uma pintura renovada a cada dez anos - e mudando sempre a tonalidade: nasci numa habitação meio castanha e hoje, quando a refiro a amigos e conhecidos como ponto de orientação, tenho sempre tratá-la pelo amarelo. Aquela cor que se afligiria caso todos gostássemos do mesmo, ao que parece. Mas a memória mais frequente, e hábito reciclável, que mais me recordo de associar a este paralelepípedo com memórias lá dentro coladas é o espectáculo das andorinhas em Primavera. Para aqueles que não sabem do que se trata, importa esclarecer que não falo de caminhando na rua, olhar para o azul do céu e observar, em cruzamentos rápidos de negrume com asas, aves que parecendo perdidas, encontram-se sempre no último segundo da curva da vertigem. Desde que sou eu que as andorinhas regressam, todos os anos, aos seus ninhos de barro germinados nas bordas do meu telhado. Na sua ausência, os ninhos decaem e estragam com a passagem do tempo, as transformações do Inverno. Mas nunca os tirámos. Ficam lá, como referência, e elas voltam todos os anos. Não sei por onde andam no resto do tempo. Os ornitólogos falam em migrações para locais mais quentes, portanto costumo encarar sempre o desaparecimento das andorinhas como uma sabática em África. Renovam o bronze, recarregam baterias, são outras durante seis meses; mas todos os inícios da Primavera, as correntes de ar empurram-nas de regresso a Ceira e processo recomeça. Tapam os buracos com terra e ramos, na azáfama do tempo marcado e contado, da biologia perpétua do ciclo da Terra. Existem ninhos de ambos os lados da moradia e portanto circulam a toda a volta neste trabalho. Ouço-as chilrear, a irrequietude de todo um impulso numa voz que nem sequer canta; e nas manhãs, ou madrugadas que se prolongam quando não consigo dormir, é esse trinado que me indica a chegada da manhã. Dentro dos seus ninhos, já com pequeninas crias que de quando em vez metem a cabecinha de fora dependendo dos pais, anunciam que acordam para o mundo e continuam a sua demanda.
O ciclo das andorinhas sempre fez parte da nossa vida. Não são nossos animais de estimações, mas tratamo-las como tal, porque de maneira a que nos fascinem, existe todo o trabalho sujo por trás. Nem tudo é bonito ou admirável. Manter os ninhos implica deixar o telhado sujo e mesmo na ausência dos pássaros, permanecem ali como lembrança. Nem sequer são objectos bonitos, apenas montes de terra castanha clara que à distância e para um olhar menos treinado, quase parecem colmeias. Quando voltam a ganhar vida, os problemas duplicam. Em minha casa, as andorinhas moram por cima da escada que conduz à porta principal e também numa varanda adjacente à cozinha. São, portanto, locais que frequentamos. A presença constante dos visitantes deixa também outros restos da sua passagem, mais escatológicos, que se amontoam no chão. O trabalho de lavar sobrava sempre para a minha mãe, mangueira em punho, pelo menos uma hora de labuta, porque incluía também a varanda principal da casa, defronte da sala de estar do primeiro andar. Dava trabalho, ela chegava sempre cansa e no tempo de calor, pior ainda, a temperatura tremente juntava-se ao trabalho já de si cansativo. Mas por cima dela, o chilrear daquelas balas com asas não a deixava sozinha. Aqueles pássaros sempre foram para mim coisas diferentes. Nos filmes norte-americanos, há sempre a imagem dos traços na ombreira da porta que permitem visualizar a evolução do crescimento dos garotos. As andorinhas são isso para mim. A minha inocência infantil via nelas apenas animais fofos que animavam a minha vida no seu voo, na sua presença, no seu som. Quando comecei a conhecer mais o mundo e a ciência, percebi porque regressavam todos os anos, o que é uma migração, a diferença entre o Verão e o Inverno. Na minha adolescência, onde o calendário escolar se confunde com o civil, elas eram sempre sinal de fim de aulas próximo e férias de Verão. Na tarde quase noite do meu tempo adolescente, sempre que as observava, perguntava-lhes porque se a vida melhora de facto, se o drama acaba, se algum dia uma rapariga vai olhar para mim da mesma maneira que eu olhava para a Scully. Na minha vida adulta e suas migrações, identificava-me com elas e voltar a casa na Primavera encontrando-as sossegava-me o coração e pregava-me os pés bem no solo, como se de facto regressasse a casa. Aprendi também a suspirar quando via famílias constituídas em ninhos e eu procurando incessantemente alguém com quem partilhar a aventura da minha vida. Elas voltam sempre, mas apenas para me lembrar de que andar em duas pernas é mais complexo do que voar em duas asas. Passaram de simples visitas e reflexos da minha mente. O que também quer dizer muito da minha personalidade e onde ela foi parar.
Quando vejo meio metro de gente chamado Beatriz a apontar indiscriminadamente para o céu britando "Piu piu, piu piu", é um pouco como se recomeçasse o processo. Tal como as andorinhas regressam, aqui em casa o encanto por elas vai migrando e regressando também de cada vez que algum de nós ainda consegue olhá-las com o encanto infantil do fascínio. O seu dedinho aponta, as mãos batem palmas, no meu colo ela ri e diz "piu piu, piu piu", olha em redor e acompanha o seu movimento errático. É feliz. Penso em como nada disto se sucederia se nos tivéssemos dobrado à preguiça. se a minha mãe não suportasse todos os anos o trabalho de limpeza, de manutenção, se todos os anos não se dispusesse a aceitar de novo as andorinhas, não haveria Primavera. Quer dizer, havia, mas com menos flores. Para as coisas boas, é inevitável, o esforço está presente. Sem querer suportar a merda e o esforço de limpá-la, não surge depois a reciclagem do sorriso. A felicidade está tantas vezes ligada ao quanto querermos trabalhar para que aconteça e não simplesmente encantos e ténues acasos do destino que interpretamos como sinais ou inevitabilidades. Ser feliz dá trabalho. Que o digam as andorinhas que todos os anos reconstroem os ninhos sem piar nem queixume. Talvez seja de estar a chegar aos quarenta anos, mas é nisso que agora penso quando as vejo. Há quem tente curar a crise da meia idade com carros novos e cortes de cabelo arriscados. Eu interpreto pássaros e escrevo sobre isso. Podia dar-me para pior.