sábado, novembro 22, 2014

O tom dos dias



Haverá gente que certamente está farta já de ler sobre dor e sobre não estar bem, sobre quem foi bem embora e quem não se pode ter. Eu entendo bem: aliás, garanto a todos esses que se pudesse até, nem escreveria nada sobre o que aqui dentro é um profundo poço de petróleo a que atearam fogo, e não tem parado de arder, entre golfadas de soluços, desde há quase dois anos. Estou tão farto da minha dor quanto alguns de vocês, acreditem. Gostava que passasse, de ter alguma paz interior, mas já entendi que não vou tê-la em 2014, pois há sempre um novo motivo para acreditar que se algures existe um Destino, este é o meu ano do yo-yo: puxa-me para as alturas e depois deixa-me tombar, passeando o cão, raspando o chão comigo até a pele não ser mais do que um tapete. Nem sequer posso sentar e esperar que passe, porque naquilo que muitos anos são vazios, este é uma cornucópia de emoções, novas sensações, desesperos e vitórias, de tudo o que constrói de facto a vida, e não são coisas de plástico ou de metal, mas que carbura em tons loucos o nosso motor sedento de justificar que vive, e que não está simplesmente aqui em missa de corpo presente, ide em paz e o tédio vos acompanhe.

Dentro dos novos limites da dor que descubro todo o amaldiçoado dia em mim, sinto que lido com isto sozinho, raras vezes com a companhia de alguém. Isto é perfeitamente normal, pois nós somos, em última instância, os responsáveis pela nossa sobrevivência. Se um dia morrer alguém que é próximo, deixem que vos explique como se desenrola o processo de apoio: nos primeiros dias, surgirá muita gente que vos diz "Estou aqui para o que precisares, não hesites"; passadas umas semanas, o discurso evolui para "Pois, é não deve estar a ser fácil..."; um mês depois, um ou outro ainda se lembra de perguntar "Então, estás bem?"; depois disso, a vida continua e o meu mundo é o único que conta, e sou como o Principezinho, só no seu planeta, olhando para o espaço a perguntar-se se andará por lá alguém. É do mais normal: afinal, cada um tem as suas coisas, e quando se vê alguém na contorção de uma dor que não cabe em nós, o mais normal é ter alguma compaixão e nos oferecermos na totalidade, desejosos de ajudar; mas depois voltamos ao que é nosso e passa. Já me aconteceu, e não se culpa ninguém, porque não há culpas para distribuir, A vida assim o pede, e estou mais habituado à ideia de que estou o tempo todo só, e que de quando em vez alguém me agarra pelo braço, só para garantir que estou ligado à corrente a um mundo que não se limita ao que os meus pés pisam. Valorizo muito essas mãos, talvez mais do que elas pensam, e compensam outras mãos que não se estendem porque talvez tenham passado a ser manetas.

Não deixo de me surpreender, ainda assim, quando choram por mim. Aconteceu-me recentemente, e a visão de alguém a sair de si pelos olhos através de lágrimas por sentir como seu aquilo que é tão meu toca-me mais do que aparenta. Não soube o que fazer, nunca se sabe. Aproveitou para elogiar o que aqui escrevo, e percebeu que quando exponho a minha dor neste blog é para compensar essa vida solitária que me coloca mano a mano numa luta a solo. "Li aquilo e foi como se vivesse em ti durante uns minutos, és tu a expor o que é comum a todos nós, a arrancar a verdade das coisas", e os olhos estavam desenhados a sal líquido. "E quando li aquele texto que começa assim... Puta que pariu! E ela não voltou? Ela não disse? Ela não fez?" E continuou perplexa: como é que conseguia caber tudo em mim, e como é que eu conseguia pegar naquilo e transformar em algo assim? Quando lhe confessei o que me consome, e o que me tem consumido depois daquilo que ela tinha lido, ela sossegou-me. "A dor escolhe-nos, tal como o amor, para no capacitar e dar ferramentas, que mais à frente havemos de necessitar", e talvez seja verdade, que há um propósito em tudo isto, até mesmo vir aqui em dias em que não suporto o peso e venho aqui largar um pouco, seja para me expôr em ferida, ou pelo contrário lembrar que há algo de bom em que cada dia em que se acorda e nos entregamos ao que sentimos e queremos, mesmo que não tenhamos o que desejamos, e passemos a vida colados a uma ou outra pequena grande luz que brilha a nossa vida, aquecendo-a, deixando-nos na sua órbita, mas, em última instância, nunca se dando totalmente às leis da gravidade,

Por isso escrevo sobre dor. Porque não é, de facto, dor, mas sim vontade de sair disto, vontade de querer mais, vontade de mudar, vontade de recordar e de honrar, e vontade de não desistir, e de querer o que não pode, de não deixar morrer esse poço de que falei, porque se existe significa que estou vivo, e mesmo só, mesmo à deriva, mesmo com mãos ocasionais que não só me agarram, mas me confrontam, e num braille da pulsação me dizem "Estou aqui, mesmo que o aqui seja o nosso algures", vivo, e sem me esconder, espero Não sei se por ti, mas espero por mim, de certeza. Espero chegar um dia e poder dizer: "Hoje não dói, mas até queria que doesse, só um bocadinho aqui na barriga", e ao mesmo tempo sorrir e descobrir debaixo dos meus pés um segredo que me cresça asas nos tornozelos.

terça-feira, novembro 18, 2014

Contra/A favor



"Conta-me a história", pedes-me, e não há história para contar. Há pequenas narrativas que se juntam, que nem chegam a formar um todo. Desconheço o que queres que te conte, e notas a minha indecisão. Por isso, reformulas: "Fala-me dela", e aí a minha hesitação é outra. Mencionar-lhe o nome é tê-la presente, e se quisesse isso não me teria afastado. Não falar é esquecê-la, e se desejasse tal infortúnio não me isolava dentro de mim desde que lhe disse que não conseguia viver comigo, e por isso escolhia estar sozinho na sala da minha pulsação. "Há alguma coisa que possas dizer então? Pareces fora de ti", e pela primeira vez algo acertado surge numa conversa que não quero ter, mas que forças uma e outra vez. Fazes demasiadas perguntas, mas esse é o imposto fixo de ser cientista. Aqui não há ciência, a não ser que se conte a improbabilidade como uma teoria que define o mundo.

No meu silêncio evito-me, e por isso não lhe falo de momentos que me acertaram o compasso da vida, todos com ela. A abertura em prestissimo de compatibilidades, passando a um primeiro movimento alegricissimo, a orquestra em estrondo empurrando-nos um para o outros só com sopros, e que se substanciou no segundo movimento, quando no topo de todo descemos ao que de mais íntimo existe em nós e encontrei molto vivace nos teus lábios, num beijo adagio. Não sei quem tinha a batuta do concerto, mas por mais que tentasse fugir cavalgando valquírias, não consegui fugir, Nem tu, acho. A maior luta que existe num orquestra é entre o músico e a música: o primeiro pode até negar-se a servir a segunda, mas esta é uma força muito maior, mais obrigatória e urgente, que se impõe e não deixa espaço para dúvidas. Por isso, que posso eu contra quem me guarda nos braços e insiste em dizer que está tudo bem, que o planeta é nosso e só nosso, que a galáxia e os cosmos não interessam, e que enquanto estivermos deitados na relva, o granizo nunca a queimará? Tocas a música do que não consigo cravar em palavras num compasso ternário: um beijo, um abraço e a curvatura do teu sorriso, numa arquivolta dos sentidos. Deixei de ser clássico: baralhas-me e transformas-me em imprevisível jazz.

Não quero contar tudo isto, mas penso. Evito o que se segue, e quero guardar o que de bom ofereces, mas como um eclipse, surge tudo o mais que não aguento, e sai-me "Como é que algo que nos torna mais do que somos, que mal caibo nesta altura toda, pode deixar em mim uma falha sísmica tão desoladora?", e tu, cientista, tu, para quem a matemática é a suprema viga mestra das voltas do planeta, tens resposta pronta: ""Porque deixas. Porque isso de sentir é para quem gosta de descer lentamente à sepultura. Amar alguém é entregar um botão a outro, e esse botão, uma vez pressionado, dá-lhe o direito de te explodir quantas vezes as necessárias para que nada sobre, e caias sob o peso da tua própria felicidade. É uma lei universal da energia: quanto mais dás, menos tens; uma vez sem nada, ficas isso mesmo: ficas nada." Mas eu não me sinto nada. Pelo contrário, desde que te te deixei ao largo que me sinto demasiado, seja em confusão ou sentido ou talvez demasiado cheio de estar vazio; e nem toda a ciência e lógica podem fazer sentido ao que me rói: como é que fazer algo que é bom para mim é também passo largo para me maltratar como se fosse o meu inimigo eterno. De certa maneira, sou.

Uma palmadinha nas costas, e sorris. "Pois, mas é assim o mundo", e este é o código de quem não percebe nada, e acha que no meio dessa selva aleatória do ecossistema humano as coisas podem fazer sentido só porque sim, e porque tudo tem uma maneira de se entender, mesmo que não haja explicação. Achar que se pode amar alguém com quem não se poderá ficar, e mesmo assim permanecer inteiro o suficiente para viver o mundo. Sou pedaços, partidos e espalhados, e como arames que se atraem por um pólo magnético, continuam a encaminhar-se para ela, que não é minha, nem pode, e continuará a sua vida, enquanto eu me sento com alguém que claramente a percebe, mas não a conhece. Quando me despeço do cientista, ele fica entregue a cálculos, mas eu permaneço o resultado de uma soma mal feita.

quinta-feira, novembro 13, 2014

Movimento



Arranquei quando o sol chorava, pois estava de lua. Girar a chave para dar um giro apanhou-me de surpresa, mas de certa forma estava à espera que o carro me levasse para longe dali e para perto de mim. Não me lembro bem o que me incomodou dessa vez. Talvez a grande pilha de pequenas coisas, ou pequenas coisas empilhadas à grande. Caiu-me tudo em cima, e a solução foi saltar dali para fora. Uma estrada é uma via de comunicação, mas quando estou fechado no interior de um carro, corta o acesso ao mundo, enquanto me conduz a um universo que me espera num encontro ao qual insisto em chegar atrasado. Cansei-me disso, e hoje vou partir no alcance da hora marcada.

Lembro-me de quando parei, ás 4 da manhã, no topo da montanha, e aí fiquei, comendo amendoins, até ver o sol nascer, enquanto a solidão do mundo me acompanhou; recordo-me a viagem de 36 horas até ao centro do deserto, onde renasci, e morri, e ressuscitei e quando voltei já não era o mesmo; vagamente me surge defronte dos olhos um clarão de luz que era uma indistinta cidade, onde encontrei duas aventuras, uma delas com pernas. A outra, sem pernas, foi a presença caridosa da noite, dando-me colo e escrevendo segredos no meu cabelo. De manhã, nem me lembrava delas, mas lembrava-me das pernas e esse talvez fosse um dos mistérios da noite; há na minha cabeça a ténue miragem de calor que a praia me trouxe, há dois meses, quando dormi três noites seguidas na areia numa preia-mar da alma. O sal da água conservou-me fresco, e em cada mergulho, mesmo a 10 graus de temperatura, sentia-me primordial e único, um pequeno corpo num grande corpo sem fim visível, mas com ele assinalado, um pouco como o empurrão que me leva à água até os meus lábios ficarem roxos, e eu ser quase insensível ao tremor, e aquele prazer de me enrolar na toalha e ficar sentado numa conversa de pupilas sobre um púlpito de areia,l uma oração a Nossa Senhora do marulhar, murmúrio de avé maria das ondas, bendito sou eu entre os perdidos que se encontram fora do mapa. Cuspi todos os mafarricos numa pedra, e fi-la levitar várias vezes até entregar ao mar o que eu próprio não sei fazer desaparecer. Dizem que nada lá fica, e que o vasto espelho reflectirá tudo o que nele quisermos perder; e por isso, nunca mais fui ao mar.

Não sei para onde o hoje me puxa. Talvez para o amanhã, mas sempre preso a ontem. Estilhaço-me, e vou a dez mil sítios, rodo como uma ponte que deixou para trás os pilares, corroídos, e não sabe bem se caiu no fundo do rio ou se ela própria é o fundo de qualquer coisa. Quando me partir em tabuleiros, não serei passagem para ninguém, mas eu próprio pararei para tomar notas. Uma caneta e um bloco, um caderno de suspiros e tremores, alguns dos teus lábios, alguns dos meus, todos no chapéu do mundo. À pala de ti, dou por mim empalado. Em Guarda, ou noutro lado qualquer. O carro avança e eu já sei como começar o traço nas folhas. Era uma vez o que foi vez nenhuma, mas o que também aconteceu sempre que fomos. Talvez viaje para longe de ti, mas será isso possível quando és o meu meio de transporte para fora do estrondo do mundo em chamas?

O acelerador do carro não responde, nem me mete travão, mas não é motivo para marchar atrás do que não nos eleva.

terça-feira, novembro 04, 2014

Lisboa e a menina moça



Voltei onde já fui feliz. Onde, quero eu crer, ambos fomos. Desta vez, para evitar um deja vu em câmara lenta melancólica, evitei Sete Rios e desci no Oriente. Foi estranho, isto de pôr os pés numa cidade que nos diz tanto e ter de conjugar-me no singular. Senti a falta do monóxido de carbono do terminal, senti a falta de ver o teu carro e de entrar para um mundo de coisas boas numa viagem de dois dias, da casa carnuda em que recebias os meus lábios, dos teus olhos a saltar à corda com mil e uma coisas que faríamos, e até aquelas que sabíamos não caber no nosso tempo disponível, ainda me lembro muito bem da falsa espontaneidade do teu sorriso, quando querias convencer-me de que era daquele momento, mas eu sabia bem que era de sempre, de todos os dias da semana em que, não estando comigo, te imaginavas. Chegar a Lisboa era regressar, de facto, e a mim mesmo. Ao que queria ser, pelo menos, e quando estava contigo, senti-me muito próximo. Nunca pensei poder sentir-me em casa numa cidade onde raramente estivera; e no entanto, acontecia de todas as vezes que, em Lisboa, me acolhias.

Recordei tudo isto. Recordar é dar corda ao coração, que se for uma caixinha de música, com engrenagens bem colocadas, toca-te ainda canções que aleijam, mas também confortam. Voltei e não te encontrei, mas sem te procurar, reconheci-te. Sozinho, no meio de um nenhures contemporâneo, cheguei a fechar os olhos para te dar a mão, e até deste, ou eu quis, por momentos, voltar a ser quem já não sou, pelo menos enquanto me tenho, mas sei que nos horas livres do pensamento, ainda vamos aos locais onde fomos, em plural, passar os nossos momentos singulares. Cenas passam na tela, e na sala de cinema os beijos são pipocas, e tudo o mais luz que se desvanece na escuridão e projecta as imagens no ecrã. Já sei o final. Mas continuo a ver, porque as surpresas só me agarram quando não lhes pego. Ali, parado de pé, a nostalgia passa em IMAX, e percebo então que vives em mim como um copo que se bebe sem que moleste a garganta, uma bebida que preciso para enfrentar o resto, mas já deixando de ser alcoólico. Revestes-me num silêncio que partilho,sem que realmente o tenha contigo, e Lisboa volta a ser nossa, ainda que não seja realmente de ninguém, e eu juro que consigo ver ao longe a tua silhueta e sorrimos um ao outro, encolhendo os ombros, com a vida em ciclovia e nós sem bicicletas.

E sem medo, damos as mãos, já sentados, e permanecemos num caos silencioso e desordenado. Não sei se morrerei um bocadinho de cada vez que vivo esta cidade, digo-te, e talvez isso faça parte de me refazer, até porque és tijolos. Sobes para cima do meu muro, e sem teres intenção disso, desapareces felina, o sorriso o último vestígio de que estiveste não estando. Tranquilo, anoto algumas palavras. Farei delas isto que se lê, e algo mais que guardo em mim, um pequeno gira-discos onde o teu riso passa em stereo quando fecho os olhos e quero ser mais um a crescer em mim. Sem dor, sem mágoa, sem mais nada que não uma centena de peta-zetas na memória, cada uma um brilho na tua cara. Em Lisboa, lembro-te menina, lembro-te moça, e o melhor de tudo, lembro-me menino a teu lado, sem querer crescer à força.

Não me esqueço, mas paro de me lembrar. A melancolia tem o seu momento, e outros, aos seus ombros, se tornarão também um exercício de faz de conta; e quando me levanto, regressaste ao carro, a Sete Rios, e aos meus braços. Estás bem, estás comigo, embora eu também esteja noutro lado. Posso ser muitos, posso ser uma versão melhor do que sou, e uma pior, e esta que sou agora é talvez a mais conseguida da possíveis. Mas no carro, abraçados, ficas com a versão que me melhor te encaixa: a que ajudaste a fazer nascer; e aí, podemos mesmo voltar onde fomos felizes, e ficar assim para sempre.