quarta-feira, maio 09, 2018

As Ilhas Far Away 18 - Fora das Faroe


Passei quase trinta anos a dormir. Um dia acordei e decidi que conhecer o mundo era mais importante do que deprimi-lo. Foi assim que contra mim elaborei o plano de viajar uma vez por ano. Se a possibilidade surgisse, um continente diferente à vez. Escrevo isto e de imediato me sinto estrangeiro, não no sentido de Camus, mas mais como quem olha para si mesmo e só se reconhece aos repelões. A tomada de decisão ponderada sai um pouco pela janela e isto de viajar sozinho com companhia, de não conhecer ninguém e ainda assim ir, não sou eu, mas passei a ser. Cada pessoa que conhecemos ao longo da vida não nos conhece, mas vêem que somos nessa altura. Os recém-chegados ligam-me ao cosmopolitismo, porque sabem que viajo e vou a locais de nome estranho, mas na verdade, este é apenas um eu actual. Não fui assim a vida toda, perdi muito por não ser assim a vida toda e só agora que acordei os olhos de outros abrem para mim.


Sento-me em Portalegre. A cidade é tão mortiça na animação quanto as Faroé que deixei em Setembro, mas menos verde, menos sozinha, menos convite. Pensei muito naquelas ilhas dinamarquesas cá em baixo, de como cada ponto do Alentejo é de certa forma uma ilha e de como ter visto o isolamento das aldeias e vilas faroesas me faz encarar a planície e a distância encolhendo ombros e percebendo que estar isolado e só é um conceito. Se no Quirguistão aprendi que posso ser várias pessoas numa, que cada um me vê como quer entender o mundo e as pessoas, nas Faroé escrevi em mim que o mundo podemos ser nós e ninguém tem nada a ver com isso. A vida de quem está longe e mesmo assim tem de existir fascinou-me lá no Norte, naquelas casas de silêncio, mas não de vazio. Gente que respira os dias e expira as noites. Para quem a solidão é apenas o que os dias trazem, ou seja, o momento enorme que intermedeia idas e vindas da cama. É estranho como tão longe e numa paisagem tão diferente esse pensamento acaba por me confortar, que as paredes da minha casa não me limitam, mas são simplesmente a fronteira entre o meu espaço e o o resto, de como encarar-me e só a mim na vida não tem de ser um pesadelo como tantos anos pensei. Pode ser só vento, que vai e vem, que ajuda e empurra, mas nunca se vê exactamente, só o resultado.


Não encontrei a famosa felicidade dinamarquesa, mas sim um pequeno consolo, até, e fotos bem catitas. A viagem de regresso não tem que contar, tirando uma nova passagem por uma cidade onde já fui tanto e reduzido a menos que pouco, mas que se cruza sempre, com a inevitabilidade da rotação da Terra, na minha vida. As viagens que fiz desde então trouxeram-me aqui e o que visito senta-se em mim e está lá para que possa abraçar. É um contente conforto do espírito, quando os dias que se encaminham para a ruína parecem ter conserto de súbito e aqueles que estragados se esbatem são apenas o que ficou ontem. Na minha cabeça, penso na próxima, antecipo e sonho com uma nova escapadela e o maior medo é o regresso. Mas o mais importante desde que comecei a viajar foi ter aprendido a voltar. É uma arte. Implica estar de novo na normalidade sem esquecer que fomos excepcionais durante uns dias, mais do que pensávamos, em locais ainda mais excepcionais do que nós. A convivência com esta realidade só se consegue quando percebemos que os locais não ficaram lá, mas voltam connosco. Ainda na semana passada, e juro que é verdade, visitei Gasadalur num intervalo para almoço. Os olhos fecharam-se e o mar juntou-se à terra numa cascata e tudo o mais do dia sumiu. Estava lá, estarei sempre que quiser e a memória é um chicote em nós, mas também constrói camas, como um carpinteiro atento e atencioso que zela pela nossa sanidade.

Nenhum homem é uma ilha, mas ocasionalmente, quando ninguém espreita, sou um arquipélago. Verde, espesso, silencioso, que parece vácuo, mas é núcleo de estrela. Está lá no Norte e orienta-me quando a vida me faz girar. De vez em quando; mas a vida é isso, muitos de vez em quando em roda de mão dada que só terminam quando a roda se desfaz. Mas até lá, a música toca e tenho de dançar. É melhor do que o pior que sempre pensei.