sábado, agosto 31, 2013

Contar o que se tem


Navega-se para a angústia ao engano. O amor é o carrossel de que todos falam, mas é na angústia que encontramos os carrinhos de choque menos parolos da nossa existência: a música é cacofónica e nem sempre dá para apanhar o ritmo, embora a orquestra continue a tocar impiedosamente até perdermos a completa noção do que se ouve, do que se vê mesmo de quem toca. Descompassadamente, angustiamo-nos e a única certeza é que de que há sempre mais uma voltinha e mais uma viagem. Recomeça-se a queda depois de nos levantarmos, e há sempre outro começo para o fim elo qual acabamos de estar. O desespero raramente se faz esperar, e com ele vem a dúvida do que somos, e a certeza definitiva de que aquilo que não somos, temos de construir. É tão simples quanto isso, e já nos complica demasiado.

Tenho sabido o que é isso. Esta semana, espreitei pelo caleidoscópio da angústia e via cristalizado o bom que tenho e que não o sei, e que espreitado por entre vidros, nunca me parece o suficiente para achar que faço o que devo ou posso, que estou à altura. Não há espaço em mim para sentir orgulho, para me sentir bem. A angústia não só reduz o mais capaz homem que conheço, como também aumenta a minha incapacidad ede me achar capaz e à altura do tamanho da dor que me rodeia e dos fiapos de sombra projectados nos passos inchados de quem precisa de ajuda. O amor faz de alguém o mais forte e o mais fraco, mas só a angústia consegue modular as nossas forças como se fosse um sintetizador clássico, teclando o tema de "The exorcist" em variações diabólicas, mas sempre agourentas. 

Felizmente, há quem dê outra música. Aí, pouso o caleidoscópio e vejo-me por outros, olhando para o que tenho e o que dou. Encontro a minha cura

Embora me escape sempre aquela que mais desejo. 

terça-feira, agosto 27, 2013

Purgatório das Almas: vão para o Inferno...


Indivíduos que estacionam mal e porcamente parque nos HUC 

A única razão pela qual desejo que os vossos amigos e parentes melhorem é para ver os vossos carros fora dali. Afunilam o trânsito, deixam em segunda e terceira fila sem ninguém lá dentro e cortam muitas vezes o caminho a quem quer entrar filas de lugares vazios que ficam inacessíveis pela falta de educação (que ultrapassa a falta de civismo) com que enchem os HUC. Para isso, já me bastam alguns auxiliares, enfermeiros e médicos que por lá andam. O problema maior é que a vossa doença não se cura no hospital, e suspeito que seja já crónica e ireversível. Desejo-vos um camião TIR a varrer os vossos carros até ficarem o mais parecidos possível com uma tortilla.

Incendiários e negligentes vários

Esta época de incêndios está um acontecimento normal: uma catástorfe acontece de vez em quando, e o queimódromo deste ano é apenas o reflexo de anos anteriores. Bem sei que o Sporting saiu de moda no ano passado, mas isso não é razão para deixar que o verde desapareça do nosso país, para mais quando a lagartagem regressa em força nesta época. A culpa tem caído em incendiários (que, pelos vistos, são gente mal resolvida e frustrada, com vidas patéticas... Nunca teria pensado nisso se não fosse a Psicologia a dizer-mo), e com razão desejo que a moldura penal que os enquadra se aproxime dos 25 anos máximos que a nosa Lei permite, mas é impossível ignorar a repetição de tudo isto, e a falta de planeamento e prevenção que anualmente permite estes incêndios: desde pequenos donos de terreno até latifundiários, passando por Câmaras Municipais e Governo, que tiram apoios aos bombeiros, mantêm os mesmos planos de emergências e impedem a formação contínua dos Bombeiros, algo que é indispensável para mudar este estado de coisas que só pode ser comparada a uma guerra civil que travamos com o páis que já existia antes de caminharmos a duas pernas feitos macacos.

Guerrilheiros das condolências

A mentalidade do linchamento em grupo é tão habitual no ser humano que já não admira, mas o uso da morte de bombeiros como arma de arremesso política tem uma tão grande falta de tacto que se torna necessário definir os limites do mau gosto. Se concordo com o desejo de condolências oficial à família de António Borges? Claro que não: se é um caso de amizades pessoais, envia-se um pedido pessoal e pronto. Qualquer megafone oficial deve ser usado em nome do Presidente da República, e não do cida~doa de Boliqueime. Agora, encher a página de Facebook da presidência da República de desejos de condolências a uma bombeira morta é não só desvalorizar a morte dessa mesma bombeira, como usar aquilo que é um momento de dor para colegas e família como instrumento de descarga de frustrações. Mas afinal, é isso o Facebook. Curioso que entre tanta guerra de condolências, interessa mais a estes manifestantes enviá-las para o senhor Cavaco do que para quem de facto vai sentir a falta daquela que era jovem antes de ser bombeira. Se a um faltou o sentido de Estado (embora, soube-se depois, ele tivesse de facto expresso o luto pela morte dos vários bombeiros nesta época de fogos), a outros faltou o sentido de decoro, ocupado por uma vontade de serem cruzados numa guerra santa contra a infidelidade à Pátria. 


quinta-feira, agosto 22, 2013

Lapso


O tempo é o que nos impele, e o nosso maior adversário. Medi-lo já foi uma obsessão, e as unidades em que tentámos encaixá-lo para fingirmos a compreensão nos escapa como ele próprio são apenas tentativas de desespero na sua fuga. O filósofo Antífono dizia que o tempo não é uma realidade, mas sim um conceito, ou até uma medida. É uma ilusão, e já o poeta Auden alertava que não se pode conquistar o Tempo, pois este é uma ilusão. Há uma marca sobre nós, a que chamamos tempo, mas nada mais é do que o compasso da decadência. A melhor maneira de enfrentar isso a que chamamos Tempo não é a fuga, ou o movimento: é sim a pausa. O momento em que decidimos parar e enfrentar o Tempo com a única coisa que ele não pode fazer, que é tomar conta de si mesmo.

Decidi sentar-me e com os meus olhos, orbitar duplamente. Agarrei em dois lençóis de tempo, assentei o meu eterno rabo neles e contemplei a cerúlea cúpula sobre mim, espaçada aqui e ali por farrapos de algodão em forma de gás, e lançando-me, nos ouvidos, numa auto-estrada em direcção ao prazer sob a forma de Ludovico Einaudi. Para muito, caches são plásticos. Para outros, aventura. Para mim, uma cache boa fica no cimo da montanha e se as condições estiverem mesmo perfeitas, são a oportunidade para me libertar desta frágil e patética carcaça em direcção a um mundo que existe sobre mim e em que a minha vida é muito melhor, pois sou eu que a invento sem amarras. Segundo a máxima hermética, tanto em cima, como em baixo; mas aqui, o que está em cima vale tanto, tanto que é tontice pensar que o de baixo se pode comparar.

No topo da montanha, existo eu e a música. Há também ecos de um mundo melhor, mas não existe Tempo: só um lapso onde me encontro, com o meu batimento cardíaco e a minha respiração.

domingo, agosto 18, 2013

Jorro curto


Corro na rua e travas-me pelo simples acto de me aparecer na cabeça como te vi nesta manhã. A luz da janela bate no teu rosto e o meu corpo é um quarto escuro onde jogámos à macaca com os umbigos de onde surgimos, escondidos e depois à mostra de toda a gente. Para lá voltamos apenas para repetir o nosso nascimento para quem nos dá vida uma segunda vez. Porque páro quando me manténs em movimento? É que a felicidade é tão ténue que tenho medo que essa luz onde tomas banho, deitada nos lençóis, te dissolva e eu encontre o teu espectro quando tomar para mim a tua pele, que cobre o teu corpo numa atracção a que as minhas mãos só resistem se forem cortadas. Não podem parar, e não vão enquanto a tua pele for terreno partilhado pelo meu desejo e pela tua vontade.

A vida é o meu exterior; então, porque é que só quando te encontro dentro de mim consigo sentir-me vivo?


sábado, agosto 17, 2013

Alapar



O lugar na História pode ser uma poltrona, mas também um arbusto espinhoso; largo como a galáxia de Andrómeda, ou pequenino como a cabeça de alfinete; ou se mora numa enciclopédia, ou simplesmente num papelucho perdido num caderno. No entanto, tenho a certeza de que é a única coisa na minha área de conhecimento que toda a gente quer: sentar-se no cronológico friso com a certeza de que o seu nome ressoa até haver ouvidos com capacidade para escutar. O assento está adequado à medida do nalguedo e amibições de cada um.

No meu caso, ganhei ontem esse lugar à custa de ua relíquia história de que falei aqui há uns tempos: o Ford Escort Boston, o meu bólide intergaláctico na onda de estrelas universal que é a minha vida. Louvei a sua classe e presença, resistência, robustez e fidelidade, mas alertei que, por muito que me custasse, o seu tempo estava a chegar ao fim. Embora se batesse como um resistente contra esse nazi malévolo que é a decadência, a força de vontade (e da mecânica) tem os seus limites. Consciente disso, não me nego a levá-lo para voltinhas, principalmente quando essas voltinhas são aventuras enormes e pedem um veiculo à altura. ou seja, algo que possa levar uns toques sem ninguém se importar. Aí, ele asusme o papel principal, e entrega-se à sua missão. No entanto, também claudica, e foi isso que aconteceu em Cerdeira, concelho de Arganil: numa marcha a ré inclinada, a sua embraiagem demonstrou que a terceira idade automóvel também inclui falta de potência, e sem Viagra que me valesse, bem tentei, mas não havia maneira, entre mão no travão e pé na tábua, de tirar dali o Boston celta. Maus estacionamentos originados por anos de emigração em França não me ajudavam; foi então que se escutou "Eu já fui taxista em Lisboa e vou tirá-lo daí". Ser taxista em Lisboa não é uma garantia de segurança quando toca a manobras, precisamente o contrário. É como sofrer de apendicite e ouvir "Eu aprendi umas coisas com o Jack, o estripador: sossegue!" Surgindo um obstáculo na forma de uma mulher de andarilho, o expedito indivíduo soltou um agradável "Sai da frente, ó coxa", e rapidamente se dispôs a servir de meu ponto de referência. Devia prescindir do espelho e concentrar a minha atenção nas suas mãos. Este Luís de Matos da calçada de paralelo contorcia-se e girava nas suas instruções, como se o meu Ford fosse um leão, e estive para alertá-lo que o meu carro não era um Peugeot.

Ora, enquanto o drama se espalha, assomam cabeças à janela, como pássaros que, estando escondidos numa árvore, vêem milho no chão. Na rua, há plateia; de becos saltam jovens que correm e vêm assistir a este combate hercúleo entre um automóvel e as leis da Física newtoniana. Idosos e novos, todos querem ver, e comentar. O suposto taxista recebe apoio moral da mulher, que garante aos restantes que o marido é motorista da Carreira, muito bom. Eu só espero que ele não conduza da maneira como me dá indicações. Não duvidando do talento do senhor, e lutando para defraudar quem assistia ao show de roda, deitei uma olhada ao meu espelho e calculando A + B menos C (de choque) lá manobrei o carro de forma a virar o bico ao prego. Então o Escort encheu as válvulas com a centelha que ainda lhe restava e salvou uma situação embaraçosa. Agradeci ao controlador de tráfego rural e escutei palmas. Tomei a consciência de que eu era o evento mais excitante que aquela aldeia assistia nos últimos tempos, e seria tema de conversas durante dias, marcando assim, com um cheiro estonteante a embraiagem, o meu lugar no panteão da Cerdeira. Netos ouvirão um dia a história do patego que não conseguiu tirar um carro em marcha atrás. Serei descrito como uma sombra dentro do carro e um poço de suor com pernas, e o meu carro será descrito como um chaço inútil. Mas terei dado, dentro da minha limitação como indivíduo, vida à História, que dizem estar pela hora da morte. Uma história é parte da História, e sentado no banco de condutor, tomei o meu lugar na da Cerdeira.

Resta dizer que depois me fui, passear. O carro deu boa conta de si, e quando voltei a passar pela Cerdeira, um outro andarilho atravessou-se-me à frente sem aviso. Quase lhe chamei coxa, mas depois lembrei-me de que o meu passado como taxista em Lisboa era nulo.


quinta-feira, agosto 08, 2013

Uma expiração


Os Árabes fundaram um dia Aljezur, e por que razão o fizeram não sabemos. Talvez se tenham enamorado do mar, tão diferentes de outros mares de areia a que estavam habituados. Quanto a mim, apenas desejava rumar ao sul e pisar o distrito de Faro pela primeira vez, o único em todo o território continental que as solas do meu calçado não tinham alapado a borracha. Sendo eu português há uns 30 anos, parecia mal que o Algarve nunca tivesse possuído os meus olhos. 2013, o ano da incerteza, acabou por me conduzir a esse território desconhecido. Já aqui desenvolvi a minha falta de gosto pela praia, em contraste com a calma e puro prazer de mergulho com que o mar me arrasta por si dentro, sem respeito qualquer pelo meu auto-controlo. O Algarve é definido por este mesmo elemento, que num lençol refulgente se espraia até um limite fictício nos nossos olhos, e pela terra em partículas finas onde os turistas estendem a toalha. Algarve é praia, e quem o visita tem só apenas esse objectivo na ideia. Na sua paisagem, não se pode deixar de pensar que o território algarvio acaba por ser um prolongamento do Alentejo, e da sua estranha mistura entre um verde ordenado exótico com a secura que o sol traz à terra, e dá tons pálidos e dourados ao que a nosa vista cobre e procura. Foi assim que vi o Algarve, e nunca consegui deixar de pensar na paisagem alentejana enquanto o visitava, permanentemente confundindo as províncias em erros inconscientes. Faz parte da maldição desta terra, que tem tanto que ver, e é reduzida a um mero local turístico de veraneio marinho, algo que é alimentado por quem lá vive. No fundo, é também um sintoma da falta de imaginação com que este país é rumado ao ram ram do já batido.

Outras ideias me cruzaram a cabeça esta semana, mas não quero falar aqui sobre a maior parte delas. Mas quero dizer que entrei novamente numa casa que já não visitava há muito, e apenas entrevia em telefonemas. Soube bem, como se de facto o tempo não fosse linear, e pudéssemos realmente esticar o espaço em quilómetros éter dentro de nós, sem scuts ou portagens, porque a amizade é gratuita entre quem se gosta, e quem sabe que meias palavras são enciclopédias de conhecimento entre amigos.