quinta-feira, março 26, 2020

Fachinação 24 - Eu gosto é do Verão



É mesmo ele. É Yasser Arafat- Não ressuscitado, entenda-se, nem mumificado. Múmias em Pequim, só Mao (tão poderosas no imaginários que passando defronte do seu mausoléu, vi algumas pessoas em vénias dedicadas). Está num retrato na parede de um corredor que conduz à saída do Quanjude, um dos mais antigos restaurantes de Pequim. Assume-se como o local onde foi criado o famoso Pato à Pequim, mas sendo eu da zona onde dois concelhos lutam até à morte pela autoria da chanfana, não levo demasiado a sério. Ao lado de Yasser Arafat, estão, entre outros, George Bush pai, Pélé e Fidel Castro. Um conjunto ecléctico de personagens. Fundado em 1864, o Quanjude tem uma certa reputação de classe entre os Chineses. O nome aliás demonstra isso, pois significa perfeição, união e benevolência. Beneficiou da protecção do primeiro líder do governo da China comunista, Zhou Enlai, que o frequentava amiúde e aí organizava banquetes para membros do Partido e para os dignatários estrangeiros que visitavam o país. Quando o Quanjude começou, em 1864, foi um ardil. O seu dono pagou principescamente a um dos cozinheiros do Palácio Imperial pela receita de um pato assado que era muito do agrado da Corte. Foi o primeiro restaurante a servir esta iguaria às massas e é hoje um dos franchises de comida mais conhecidos na nação. Apesar dos problemas que teve durante a Revolução Cultural, pela sua ligação a um período de História chinesa que estava fora da esfera comunista, é um local muito frequentado pelas elites políticas, como provam estas fotos de tanta gente famosa. Vim a saber mais tarde que existe um Quanjude em Portugal, caso queiram experimentar. Este tem todo o ar de espaço muito frequentado. Quando entrámos, estava praticamente cheio e tinha dois andares, várias salas de azafama gastronómica, o pato como vedeta central desta hora. Eu nem gosto de pato, mas comi carne de porco. Também estava boa. Os apreciadores da aves confirmaram, pelo menos que estava bem boa; e olhando aquela parece, vimos logo que estávamos em boa companhia. Da mesma maneira que aqui em Portugal aproveitamos todas as partes de um porco, desde as orelhas até aos cascos - porque poucas coisas revelam a penúria crónica de um povo como a sua habilidade criativa de recorrer como alimento ao que ninguém deseja levar à boca - nenhum pedacinho do pato é desperdiçado. Os seus pés tratados como iguarias de entradas, as entranhas propostas como deliciosos pratos no menu, a sua carne em mil e trezentas formas de preparar dentro de um forno a lenha. Como entrada, uma das especialidade são pezinhos de pato com mostarda. Pela cara dos meus colegas, não era de deitar fora. Fígados e corações també estavam disponíveis para aventureiros do palato. Pele tostada, sopa de língua de pato... O bicho morre, mas não é desaproveitado. Quando voltamos à rua, alguns sentem que caíram que nem uns patinhos neste almoço. Faz sentido. O meu espanto maior é que ninguém saio do restaurante a grasnar.


O plano para a tarde é visitar o Palácio de Verão, que fica fora da cidade. Uma hora, mais ou menos. A maneira mais rápida de lá chegar é através do Metro. Entramos na estação de Jiangdoman e já no subsolo, a primeira preocupação é a compra dos bilhetes. Não há bilheteiras, só máquinas. Que, claro, não têm instruções em inglês claro. Nem maneira de explicar como funciona o sistema de redes do metropolitano de Pequim. É enorme. Conseguimos ver que existem vinte e três linhas e com a maior parte dos nomes em Mandarim, sem qualquer pista que dê a entender a proximidade de algum local conhecido. Em redor, ninguém para ajudar. Um senhor idoso que carre o chão notou a nossa perplexidade e confusão, um grupo de ocidentais a carregar de várias intensidades e maneiras num ecrã. Inglês simples não resulta, gestos também: não consegue entender-nos. Alguns transeuntes, simpáticos, juntam-se, até um jovem que fala a língua de Shakespeare finalmente nos orienta. A compra exige uma série de escolhas que vão bem para lá da quantidade e do destino. Com paciência, talvez oriental, educa-nos nos modos chineses e lá seguimos. À nossa espera, um detector de metais e uma máquina raio X. É um procedimento comum. Ah, como tinha saudades... Depois de olharmos para um mapa, conseguimos entender mais ou menos o caminho a fazer. Por cinco vezes mudaremos de linha, até chegarmos à vermelha - aquela que passa perto do Palácio. Através de um sistema de cores semelhante, mas mais complexo porque mais numeroso, aos dos metropolitanos portugueses, encontramos a nossa plataforma. Estendendo-se por setecentos quilómetros - sendo por isso o mais longo do mundo - , o Metro de Pequim inclui duas ligações directas ao aeroporto, um maglev e uma ligação de comboio urbano, precisamente aquela que apanharemos para chegar por fim ao nosso destino. Estende-se por 405 estações e detém o recorde do maior número de passageiros transportados num único dia, uns esquálidos treze milhões e meio de pessoas. Liga o centro da cidade aos seus subúrbios, alguns deles quase a cem quilómetros de distância, e faz funcionar a grande metrópole. O que mais me espanta enquanto percorro esta estação é que está absolutamente limpa, sem qualquer vestígio de lixo. Apesar da quantidade de gente que aqui deve passar todos os dias e da evolução brutal que este sistema passou desde 1969, quando tinha apenas duas linhas, até hoje. Como se fosse o reflexo concreto do crescimento e estado da sociedade chinesa. Cada plataforma é estreita e encontra-se entre duas linhas. Conforme a direcção que se deseje, tomamos uma ou outra. Para protecção dos passageiros, a passagem para o comboio só ocorre quando se abre uma porta de vidro que é controlado pelos sensores da plataforma e da carruagem. Inteligentes. À hora marcada, chega o transporte. Uma eficácia incrível que se repetirá nas estações seguintes. Esqueçam a pontualidade britânica. Não há lugares sentados para todos, muita gente decidiu apanhar esta linha, uma das mais movimentadas da cidade, à hora depois de almoço. O interior é dominado por pessoas e cartazes de recrutamento para a Polícia que pelo ar intimidador dos modelos escolhidos, devem querer captar gente pelo simples medo de serem presos caso não aceitem o apelo. A publicidade mais capitalista está guardada para certos espaços nos túneis onde ecrãs espalham a boa nova de restaurantes luxuosos, roupa desportiva da NBA, concertos espantosos de bandas chinesas, um sem fim de joalharia e mulheres jovens de olhos rasgados fazendo beicinho enquanto brilham com pedras nos dedos. É a primeira vez que vejo marketing feito desta maneira e tenho de admitir, é espantoso.


O Palácio de Verão revela outro tipo de espanto. Ocupando três quilómetros quadrados, é um complexo vastíssimo de lagos, palácios, jardins e bosques. Três quartos da sua área é água, o que lhe confere a função de reflectir aqui na terra a beleza da esfera celeste. No entanto, praticamente nada é natural dele. O lago Kunming domina a sua paisagem, dois quilómetros de margem a margem e descansa em plácida horizontalidade entre duas colinas. Uma nomeada de Longevidade. Nenhuma das estruturas é natural. Aliás, a colina foi construída a partir da terra removida para a criação do lago; e ambos estão desde então associados e ligados na maneira como desenham a paisagem. A verdade é que só nos apercebemos disto muito depois de entrar no Palácio. Porque a percorrê-lo, existem vários caminhos cuja quantidade quase nos confunde. O dia está limpíssimo, tépido, o sol explora os nossos sentidos, a brisa sopra na direcção perfeita, na velocidade ideal. É uma mão dada de momentos que são impossíveis de estragar e não sei se por essa ilusão sensorial, se pelo meu corpo se sentir menos corpo e mais transcendência, é a primeira vez que tenho a sensação de estar a ver algo verdadeiramente chinês. Sem artifícios, sem armadilhas, sem qualquer tipo de reescrita histórica e recauchutagem épica. A essência dessa sabedoria oriental que verte das palavras de Confúcio quando as lemos. Surge-me uma vontade indefinível na força que em senta e me segreda que o importante é estar e não correr. Seguro a máquina fotográfica, claro, mas depois desta viagem longuíssima de duas semanas, de ter corrido milhares de quilómetros e encaixado o corpo numa rotina maquinal bruta, os meus músculos, em reunião com o esqueleto que me move, decidem que a hora não é do sobressalto, mas da pacificação. Depois de uma pequena caminhada por entre árvores, o enorme lago Kunming asurge por entre as folhagens e sou puxado, por uma corda que sinto à cintura mas não vejo nem palpo, para a sua margem. É um dos pontos de vista mais emblemáticos destes espaço, o espelho aquático sem fim à vista, confrontado por uma colina bem inclinado, muito verde, de onde brotam pavilhões e pagodes coloridos , um quadro pintado pela mão do homem, mas cujo impacto no meu olhar está bem para lá disso. É-me sempre estanho explicar as viagens que faço. Porque não posso, porque as frases saem-me sempre como papel esmagado que não se aguenta ao mínimo escrutínio. Porque este momento que descrevo, por exemplo, é tão mais do que paisagem ou de que é água e árvores e pedra. É mais complexo do que estar sentado parando o tempo na mão, mais do que a foto que tiro ou a piada que atiro a quem está ao meu lado, mais do que aquele silêncio que reclina as costas e descansa o cabelo desgrenhado. Não se explica porque é um daqueles momentos em que me sinto vivo, mesmo, sinto aquela pulsação carnuda e carnal que me ressuscita da morte a que me entrego na rotina, no quotidiano. As sensações pelas quais viajo são estas. Encontro-as em montanhas, em vales longos ou em espaços onde tudo se conjuga, o que se vê e aperta mas também o que se sente e levita, onde um Palácio cria Verão e Primavera e um Outono suave nos meus sentidos. Quase consigo perceber o encanto enlevado que os Chineses têm por si mesmo, o país, a cultura, a visão de um mundo cheio de energias que se cruzam, ordens que devem ser respeitadas. Aqui não penso na opressão ou na vigilância, no roubo da identidade cultural, não tenho discursos políticos. Estou apenas, e não é nada pouco. É muito. Estar é o mais difícil no mundo, simplesmente ser e permanecer durante uns segundos sem pesos do passado ou ânsias do futuro. É o que sinto aqui sentado. A leveza da vida. São segundos. Mas a intensidade é eterna, é pulsante.


Não que a história deste Palácio seja desinteressante, muito pelo contrário. A sua origem coincide com a primeira mudança da capital chinesa para a actual Pequim - na altura chamada Yanjing - em 1161. Wanyan Liang ordenou a construção de um palácio para as suas férias nesta zona, à altura chamada de Colinas Fragrantes, pela quantidade de árvores e flores que aqui existiam. A expansão e construção do palácio demorou mais de sete séculos, com cada dinastia acrescentando o seu pedaço. Alguns edifícios, como um templo enorme do século XV, desapareceram; mas ainda se preservam as memórias dos passeios sobre o lago que levavam os membros da Corte ao mesmo, em fins de tarde como este em que passeio agora. Com o século XVIII e a dinastia Qing vieram a maior parte dos jradins e bosques que hoje podemos percorrer. Em consequência, o consumo de água aumentou drasticamente, o que obrigou ao aumento do lago Kunming e a criação de outros mais pequenos. No entanto, isto afectou o abastecimento de água da própria Pequim, visto que tanto o Palácio como a cidade eram alimentados pela mesma fonte, localizada a poucos quilómetros daqui. Então, o imperador Qianlong, por sugestão da esposa, criou dois novos lagos alimentados pelo Kunming, que se destinavam ao consumo dos pequineses. O desenho final deste complexo bebe de várias lendas da mitologia chinesa e dos seus locais: cada um dos lagos representa uma montanha mágica presente nas lendas da China Oriental. Este encanto desaba, no entanto, em 1860, quando o exército britânico, na altura envolvido nas Guerras do Ópio contra a China, invade o Palácio e queima uma boa parte do seu conjunto. Um evento que ainda hoje é traumático para os Chineses. O que sobrou inteiro foi pilhado pelos Ingleses e pelos Franceses e as décadas seguintes trouxeram várias reconstruções por causa de conflitos locais e recuperação do que foi destruído pelos Ocidentais. Quando o último imperador chinês abdica em 1912, pondo assim fim à era imperial chinesa, o Palácio foi aberto ao público e entregue à municipalidade de Pequim, que o transformou num parque aberto a todos. Desde 1998 que é Património da Humanidade e isso deve-se não só à sua História e importância no imaginário chinês, como à quantidade absurdas de ponto de interesse que podemos encontrar e que não posso explicar minimamente nesta crónica. Acho que precisaria de umas três e só aqui passei uma tarde e vi tudo muito a correr, porque preferi estar em vez de andar. Mas destaco a Torre do Incenso Budista sobranceira ao lago; o Barco de Mármore, uma escultura naval em pedra com vitrais que jogam connosco no fim de tarde; a ponte dos Arcos que une dois pavilhões; o Jardim dos Prazeres Harmoniosos; e ao longe, vista a partir desta margem, a Torre de Jade, como um farol sem luz cravada numa ilha.


Mas o que posso partilhar convosco é o momento pelo qual todos os visitantes esperam. O Sol vai descendo gradualmente do lado esquerdo do horizonte e nessa viagem de eterno retorno, com lentidão diminui a força da sua luz. As sombras no solo tornam-se cada vez mais inclinadas, esticadas até um ponto de quebra. As árvores escurecem, os objectos transformam-se, mudam a sua forma por momentos como se fosse o Sol a sustê-los. Uma longa promenade contorna uma das margens do lado, estende-se num pequeno deleite acompanhando essa saída sorrateira que o soalheiro astro faz. A ladeá-la, muros com formas esculpidas, onde casais e pessoas sós namoram em simultâneo com o ocaso e o fim de tarde. Alguns pagodes mais pequenos estendem-se por este passeio. Olhando, há quem se estenda em encosto apreciando as águas do lago fundindo com este espectáculo. Nas suas caras, a reflexão, e fico com a ideia de que este é um hábito muito comum, de perguntar às águas sobre as cascatas da vida. Um Património Mundial onde se pode passar o tempo sem contar minutos e regressar num outro dia. Vou documentando a progressão do Sol com fotos, cada uma tirada em luminosidade diferente, oferecendo claro-escuros mais evidentes. Cada vez mais perto, junto a um templo, junta-se gente num varandim com vista privilegiada. Quando lá chego, consigo contemplar tudo, desde as várias colinas até à Torre de Jade, o Barco de Mármore, a Torre do Incenso. Por trás, o Sol em descanso e em contra-luz. Num golpe de óptica, arranja maneira de ir sumindo mesmo ao lado da Torre do Incenso, acentuando-lhe os contornos, esmagado a minha vista, escapando cada vez mais da minha lente. A água do lago torna-se negra, depois prata, depois ouro e não regressa aos tons de tarde. Talvez amanhã. Em meu redor, dezenas de pessoas e de câmaras, alguns totalmente preparados com tripés super cósmicos e máquinas super galácticas, preparas com minúcia e minutos para este preciso momento. Então termina e a noite cai. Ou então ainda existe, prolongando-se durante meses, aparecendo na minha memória, terminando esta crónica


sábado, março 21, 2020

A Quarentena: "Síndromes - os problemas que os problemas têm"


O cérebro esconde os segredos que nos dão a racionalidade. Separa-nos dos restantes animais, concede-nos capacidades incríveis de memória e inteligência; e continua a ser, ainda assim, um lugar extremamente inquietante onde moram os processos que criam essa entidade nebulosa e misteriosa que é a nossa consciência. Nos seus confins e sem fins, surgem inúmeros distúrbios neurais e neurológicos que levam alguns de nós a agir de maneira bizarra e sem sentido. Esses distúrbios desenvolvem-se normalmente em síndrome mentais que condicionam o nosso comportamento podem, nalguns casos, alterar por completo a visão que temos do mundo e a maneira como vivemos nele. O de Anton-Babinski, por exemplo, afecta pessoas que são cegas, mas se recusam a acreditar nisso. Os afectados podem pelo menos confortar-se no facto de lhes ser impossível sofrer de síndrome de Alice no Pais das Maravilhas – também conhecido como síndrome de Todd – que provoca danos na nossa percepção: qual Alice sob o efeito do chá do Chapeleiro Maluco, começam a ver tudo de maneira distorcida. Objectos longínquos tornam-se próximos e vice-versa. Embora possa ocorrer muitas vezes na fase de vigília do sono, é também muito comum em estados conscientes como sintoma de outras doenças como a mononucleose ou enxaquecas. A percepção é uma área onde o nosso cérebro adora pregar-nos partidas. Nem sempre no mundo físico. O engano de Capgras é uma condição médica onde o indivíduo caminha com a permanente sensação de que todas as pessoas próximas de si foram, na verdade, substituídas por impostores. Quem ordenou tudo isto? Não sabe. Talvez “Eles”. Quem são “Eles”? Ora, são… “Eles”. Em casos extremos, este engano pode até dar a entender de que o próprio tempo foi alterado, acelerado ou abrandado. É habitualmente associado a casos de esquizofrenia e estatisticamente, afecta mais mulheres do que homens, naquilo que é a Ciência a contribuir para as guerras de género que imperam hoje em dia. Não confundir, no entanto, com a Ilusão de Fregoli, onde surge a ideia persistente de que aqueles que nos rodeiam são, na verdade, a mesma pessoa que se vai disfarçando uma e outra vez para nos enganar. Nenhuma destas doenças, no entanto, afectaram alguém com Prosopognosia, que torna alguém incapaz de reconhecer qualquer rosto que lhe deveria ser familiar. De todas as condições que falo hoje, esta é a única hereditária e suspeita-se que uma em cada cinquenta pessoas sofre dela em algum grau.

Por vezes, o cérebro faz-nos crer que morremos ainda que sintamos o nosso coração a bater. O Engano de Cotard leva alguém a crer, com todas as forças e ilusões, de que na verdade é um cadáver, um zombie, e a sua carne apodrece a cada segundo que corre, que perdeu o seu sangue e os seus órgãos. Isto pode dar para ambos os lados: ou o paciente acredita que acabou a sua jornada neste mundo ou então que se tornou imortal. Deve estar relacionado com o ego de cada um.  Para compensar, o síndrome de Kluver-Bucy injecta vida nesta velha carcaça e leva a comportamentos de verdadeiro devorador. Habitualmente provocado por um trauma físico, provoca uma vontade descontrolada de comer tudo o que seja material, desde comida até gelo ou terra ou madeira ou rochas, uma tendência para analisar tudo com a boca – levando a fixação oral a todo um outro patamar – a incapacidade de reconhecer pessoas e objectos familiares e até uma hiperssexualidade que se pode tornar bastante incómoda para familiares, amigos, esposos, animais de estimação e aspiradores. Alguém com esta voracidade poderá ter um encontro bem interessante com quem sofre de síndrome de Diógenes, habitualmente conhecido como “acumulador”. Há poucas doenças com nomes mais irónicos: Diógenes era um filósofo ateniense conhecido por ser despojado e lendariamente habitar no interior de uma jarra. Saía dela para ensinar os jovens atenienses e procurar companhia para os seus passeios na ágora da cidade-estado grega. O doente deste síndroma, pelo contrário recolhe tudo o que encontra e guarda em casa. Tranca e porta e evita qualquer contacto humano. Lentamente, perde as inibições, a auto-preservação e casos houve onde após anos de isolamento, a Polícia forçou entrada e casa e encontrou o inquilino que sofria desta condição cadavérico de várias semanas, sem que ninguém tivesse notado de outra forma que não pelo cheiro incómodo.

Por vezes, torna-se difícil decidir o que deitar fora. Principalmente para quem sofre de Aboulomania, que torna uma impossibilidade patológica o acto de escolher. Uma pessoa dá por si congelada, incapaz de tomar qualquer decisão, mesmo a mais simples. Muitos de nos são indecisos, em parte porque as informações que levam a qualquer escolha estão espalhadas pelo cérebro, que as reúne da maneira julgar ser mais útil para nós. Mas que sofre desta condição simplesmente não toma decisões. O que pode ser uma boa desculpa para a próxima vez em que quiserem descalçar uma bota bicuda, como quando vos perguntarem opinião sobre o projecto pessoal de alguém ou uma peça de roupa acabadinha de comprar na loja. A incapacidade social afecta também os pacientes de Taizin Kyofusha, muito comum no Japão por exemplo, que provoca um medo tremendo de relações interpessoais. Leva a que nos sintamos embaraçados connosco, com medo de desagradar a outras pessoas e num caso extremo, convence alguém a não embaraçar os outros com a sua simples presença, pelo aspecto, cheiro ou mesmo tom de voz. Na mesma zona geográfica, é temido o Koro, um síndrome que leva um homem a acreditar que os seus genitais estão a encurtar de tal forma que inevitavelmente provocarão a sua morte. O primo indiano desta condição é o Dhat, um temor irracional de que se está a perder o esperma através da urina e do suor durante a noite, enquanto um macho está distraído e mais vulnerável. Em pessoas vindas dos Oriente é também muito comum o síndrome de Paris, que conduz os seus sofredores à chocante conclusão de que a Paris que visitam não é aquela que lhes foi apresentada na publicidade. Perdem parte da sua personalidade, passeiam por Paris com o medo de serem perseguidos e ostracizados (embora conhecendo os Franceses, esta é a parte da doença que me custa menos a aceitar) e levar a sintomas físicos como tonturas, suor excessivo, alteração do ritmo cardíaco e vómito. No entanto, Paris não é a única cidade a provocar fortes reacções mentais em quem visita. Em Jerusalem, talvez inspirados pelo facto de estarem no feudo de três religiões monoteístas, alguns turistas sentem-se invadidos por uma fé religiosa absoluta, convertendo-se sem hesitar à adoração de Deus, seja qual for a sua designação. Apesar de não ser reconhecida oficialmente como condição psiquiátrica, já foi verificada nalguns indivíduos que se tornam psicticamente zelotas, tentando converter outros à força e afirmando viver experiência sobrenaturais e assistindo a milagres. O cura, aparentemente, é remover esses chatos da cidade israelita. A coisa parece ir ao sítio. Fosse tão fácil assim resolver os problemas daquela região.

Alturas há em que as pessoas não querem ser pessoas, mas sim animais. A Lincatropia, ou seja a ilusão em alguém de que na verdade é um lobo, é conhecida do público em geral pela sua associação com o mito do lobisomem. Menos conhecida, no entanto, é a Boantropia, a convicção férrea que inspira num ser humano comportamentos de vaca – literais, atenção – porque este crê ser uma. No livro de Daniel, dos Antigo Testamento, o rei babilónio Nebuchadnezzar II sofria desta condição, tendo sido expulso do seu palácio e conduzido a um prado onde ficou a comer erva. Um outro governante persa chamado Majd Al-Dawla foi curado por Avicena, famoso médico muçulmano, de uma ilusão semelhante que o levava a mugir no trono e a perguntar a outros se não queriam matá-lo e preparar uns bifes a partir do seu lombo. Algumas doenças do género levam homens a agir como animais, mas não pelo comportamento: o síndrome de Wendigo desperta uma vontade incontrolável de absorver carne humana, mesmo quando há outras comidas disponíveis. O seu nome vem de uma criatura do folclore de algumas tribos nativas canadianas. Mas não se assustem com tudo isto. São condições raras e que, em princípio, não vos afectarão. Não ajam como se sofressem de Kufungigisa, que é o problema de quem pensa demasiado e que está registada no Zimbabwe onde um paciente se queixava de que o seu coração doía muito pois ele não conseguia parar de pensar; só vos desejo, perante este texto, um ataque agudo de síndrome de Stendhal, que deve o nome ao famoso escritor e provoca um arraso incrível quando confrontado com uma obra de arte inegável. Disso, espero que sofram um ataque súbito e inapelável.

quarta-feira, março 18, 2020

Fachinação 23 - Figuras de Pequim



Talvez por ter sido criado numa dieta farta de rock ocidental, o encanto da música oriental perde-se em mim; e refiro-me quer à mais pop ou à mais tradicional. No caso da segunda, os instrumentos de cordas quase furando o tímpano com a acutilância de um arame forjado nas ferrarias do Inferno são o que chega para pedir a ressurreição de Genghis Khan para uma nova tournée de chacina e ordem no Império do Meio; no caso da primeira, há uma tolerância muito reduzida na minha disposição e humor para sintetizadores imitando flautas e vozes lancinantes que desenham a dor por entre nenúfares em lagos que rodeiam pagodes. Não só é chato, como parolo e falso. Os Chineses adoram estas coisas. Caramba, é acompanhar o Instagram de Jackie Chan e constatarem, com horror, que um dos mais dementes e corajosos artistas de artes marciais da História do Cinema só se contenta quando derrete pelo microfone de karoake a sacarina de românticas baladas em mandarim, falando provavelmente de rebentos de soja, ventos do Oeste, o dragão que voa abençoando a pátria e provavelmente telemóveis ou o catano. Em mim, a música chinesa provoca apenas um gesto reflexo de fuga que apenas travo porque não quero insultar esta cultura. Não por ser milenar, mas por prescindir daquilo que conhecemos como respeito pelos direitos humanos; e eu prezo muito os meus direitos e esquerdos, centros e laterais. Trouxe-os para aqui, quero levá-los de volta a Portugal. É por isso que espero que valorizem o facto de estar há uns cinco minutos a assistir ao que posso descrever em termos largos como uma desgarrada à sombra de um pagode num parque em Pequim. Encostados a uma parede, três instrumentistas praguejam a vida através de uma cítara, um violino e um tambor. Em ritmo de morrinha, deslizam cordas, adormecem batuques enquanto à sua frente se revezam em sessões de cinco minutos dois homens domingueiros. Não há formalismos ou formalidades. Vestem t-shirts, calções e sapatilhas, um deles enverga até óculos escuros na cabeça. Olhando de fora, parece-me um grupo de aficcionados da canção que em certas manhãs se levanta da cama e pensa "Não, hoje não é dia de deixar as pessoas em paz", e em procissão melómana, cada um certamente com o seu período musical favorito, vêm ao parque passar o tempo. Aqui em Portugal, conversa-se, joga-se dominó, batem-se umas cartas. Mas na capital chinesa não. Aqui, flui cultura. Um homem acaba o seu turno, cabelo negro acachapado na cabeça e uma certa barriga de quem quer expandir território para Taiwan. Entendo zero do que cantou, mas por várias vezes apontou para nós, para se queixar de um amor perdido ou de que faltou queijo ao pequeno-almoço. É uma de ambas. O seu parceiro toma o lugar. Deve ter mais uns quinze anos e o longo cabelo branco é apanhado a meio das costas. Sofre também pois claro. É provável que de reumatismo ou do sol que hoje está a dar demasiado forte na testa ou de que aqueles rebentos de soja com molho agridoce lhe caíram mesmo mal e o que ele tem é cólicas e na verdade, devia estar deitado no sofá. Venho de Portugal e mesmo depois de duas semanas neste país, o meu chinês limita-se a "Obrigado" e "Olá". Quero fechar os olhos e deixar-me levar pela música, mas é impossível. Como disse, não encontro fascínio naquelas notas do Oriente que tanto encantaram os meus antepassados no tempo da Expansão. A questão é que o dia até tinha começado com grande classe.


Localizado exactamente no centro do eixo Norte-Sul de Pequim, o parque de Jingshan fica mesmo ao lado do nosso hotel. Tem um espaço enorme e o principal atractivo para o turista é que o seu lado Sul permite a visão da Cidade Proibida, o local mais visitado da capital da China, É a principal razão que nos leva a visitar este espaço, embora a sua importância histórica ultrapasse a simples função de miradouro. Desde o século XIII que serviu de jardim imperial, local habitual de passeio dos membros das cortes Yuan, Ming e Qing. Foi durante esta última que se plantaram múltiplas árvores de fruto e se construíram os vários pavilhões de típica arquitectura chinesa que ainda hoje podemos encontrar espalhados pelo parque (e debaixo de um dos quais nos encantavam os dois tenores de que falava há pouco). Numa altura em que este espaço ficava fora da malha urbana, a Corte praticava caça nestas colinas, principalmente veados e javalis. Isso ainda hoje é recordado com algumas estatuetas coloridas em plástico dos ditos animais. Com o fim da monarquia na China, foi aberto ao público e é hoje um local de destaque para o turista. Ainda assim, há muito pouca a sensação de espaço para passeio e fotografia exclusiva, pois vemos a normalidade expressa no comportamento das pessoas. idosos praticando várias modalidades de Tai Chi e Yoga, pessoas sentadas em bancos lendo, mulheres deitadas apanhando sol, cidadãos que de livre vontade vêm cuidar das plantas e regar os relvados. Paga-se para entrar, mas pouco e vale a pena: é um espaço limpo, muito verde e repleto de flores espalhadas por canteiros, adequado a esta manhã de Sol com que a cidade nos recebeu. Sem procurarmos de imediato o rumo para o ponto elevado, damos umas voltas observando as pessoas, os espaços. Existem vários pavilhões espalhados, cinco deles praticamente iguais. Embora hoje estejam ausentes, até ao início do século XX encontravam-se estátuas de Buda no interior de cada um, simbolizando os vários sabores do nosso paladar. A disposição de todas as construções e manchas verdes neste parque não é aleatória: corresponde às indicações do feng shui, uma filosofia chinesa que acredita nas energias invisíveis da Terra e que estas podem ser canalizadas mediante arquitectura e paisagismo. O ponto central da planta do parque é a colina que o domina, em função da qual todos os outros aspectos foram planeados. Subimo-la então; é curta, mas proporciona uma excelente vista não só sobre o ex-libris de Pequim, mas também todas a cidade e os seus pontos principais. Tudo o que separa o parque da Cidade Proibida é um fosso coberto de água, como os que rodeavam os nossos castelos medievais. Neste ponto alto, localiza-se o maior pavilhão, com três andares, em cores de azul e vermelho e amarelo. Brilham bastante com o sol de hoje e são quase tão bonitas quanto a ideia de que estamos a ver outros daqueles locais míticos da História mundial. Nâo iremos visitá-lo, no entanto, e a razão é visível daqui: longas filas que nos obrigariam a perder tempo necessário para explorar melhor esta enorme urbe oriental. Não sinto pena ou uma necessidade obrigatória. Há outros cantos que me interessam mais, daquilo que li sobre eles. Quando descemos, passou por uma grande placa dourada, colocada defronte de uma velha árvore que conseguiu crescer num solo rochoso. A placa conta a história do imperador Chongzhen. Um homem cruel, enfrentou uma enorme revolta popular, recusando-se a abdicar do trono. Com a cidade dominada pelos insurgentes, o imperador tentou chamar os seus conselheiros para discutir medidas, mas nenhum apareceu. Sozinho no seu momento de maior apuro, Chongzhen foi drástico e cruel: obrigou a imperatriz a suicidar-se; matou com as suas próprias mãos filhas e concubinas; e fugiu com um único servo, um eunuco chamado Wang Shen, para este local que hoje fica no parque. Aqui, escrevu uma carta de despedida usando o único material disponível: a sua roupa e o seu sangue, arrancando a ponta de um dedo à dentada. Depois, enforcou-se e evitou assim a fúria dos populares. Feng shui.


Já em direcção à praça de Tiannamen, num passeio a pé pela cidade, o raio das cítaras e das guitarras ainda soavam nos meus tímpanos. Inevitavelmente, contornamos o perímetro da Cidade Proibida e o seu fosso de água é sempre uma companhia. Pequim é uma daquelas cidades fervilhantes, mas limpas. Acho bizarro que este mastodonte populacional tenha tão pouco lixo no chão, mas depois lembro-me de que estamos num estado autocrático. O trânsito é permanente, mas aqui nota-se menos, porque é um espaço quase entregue a peões. A zona histórica. Onde a cada momento está sempre a acontecer qualquer coisa completamente fora da nossa esfera de normalidade, desde pessoas que montaram bandas de venda de bebidas e gelados em casa, na janela, até crianças que são levadas por uma coleira como cães. O inglês nas placas de informação turística é atroz como sempre; e neste dia de amena temperatura e céu limpo, vários casais aproveitaram para fazer as suas sessões de fotos em plena tua. Uma, muito simples, envolve alguns amigos e os noivos. Usam telemóveis e embora a noite use vestido, é muito simples e o seu companheiro, embora vista casaco de fato, enverga sapatilhas e calças de ganga. Reflectem uma China menos tradicional, o exacto oposto do que encontramos alguns metros mais à frente, numa produção matrimonial com tudo a que temos direito. Há damas de honor e moços de companhia. Elas vestem vermelho; eles fato de um roxo sóbrio, mas notório. Houve planeamento, houve noção - ou falta - de estilo. Cada um dos casais tem de fazer variadas poses, em conjunto e separado. Enquanto me sento num muro espreitando a cena, dois cabeleireiros estão por perto, ajeitando maquilhagem e retoques capilares antes de cada nova ronda. Vestem-se de forma muito simples, mas sempre em preto. Apenas o fotógrafo principal destoa, envergando uma máquina fotográfica do tamanho do meu crânio. Há malas e malas de material espalhadas pela margem do fosso, os torreões da Cidade Proibida servem de cenário a esta sessão meticulosa. Não há margem para erros. A certa altura, de uma das malas, sai um longo pano de tule, encarnado, esvoaçante com as leves brisas do dia. As damas de honor esticam-no e seguram-no.Como se fosse um casamento saído de "O trono de sangue", de Kurosawa. É só aquilo de que me recordo. A noiva, uma moça gordinha que não tem mais do que vinte e cinco anos, observa tudo, zelosa mas apreensivamente triste. O noivo convive com os amigos, fazem algumas brincadeiras e palhaçadas. Recordo-me dos casamentos ocidentais a que assisti, onde este tipo de coisas normalmente ocorrem já depois de eu ter chegado, estas sessões que depois ficam bem em portfólios e álbuns para os noivos. Aqui, acontecem em pleno coração da moderna Pequim, num espaço rodeado de centenas de pessoas, onde o amor só tem lugar em frinchas dentro de cada um.


O nome significa "Porta da Paz Celeste", mas na memória dos ocidentais fica por razões que pouco têm de pacífico. Em 1989, um enorme grupo de estudantes fez de Tiannamen o seu local simbólico de reunião durante protestos diários que duraram semanas e colocaram o regime chinês nas notícias fora do país. Foi apenas o centro de várias manifestações que ocorreram numa boa parte do país, exigindo mais direitos civis e liberdade de expressão para os chineses. Meses de indecisão na maneira de lidar com esta insatisfação culminaram com uma acção drástica a quatro de Junho: o exército avançou em força, com tanques e soldados, sobre os estudantes que em permanência se mantinham na praça - ninguém sabe bem quantos. Oficialmente, não houve mortos, apenas presos; mas por esta altura, sabemos melhor do que confiar naquilo que o Governo Chinês diz. A coisa podia ter acabado por aqui, se no dia seguinte não tivesse aparecido, ninguém sabe bem de onde, um dos meus heróis pessoais. Num auge de soberba e marcação de território, o Exército da República Popular da China decidiu fazer uma parada ciclópica pela grande avenida junto à praça. Infantaria, Aviação, Blindados, grandes colunas para mostrar à população quem de facto manda, quem de facto põe e dispõe. No meio de tudo isto, de todo este poderio, um homem de camisa branca e calças pretas atravessa-se defronte uma coluna de tanques, segurando um saco de plástico branco. Parece algo saído de uma comédia sem sentido. Estaca frente a um dos veículos. No seu interior, o condutor deve ter sentido a confusão dos cegos a quem é devolvida a vista e dão por si num caleidoscópio. Parando o primeiro, param os restantes; e o homem mantém-se irredutível, resistente. Neste impasse, decide tomar a iniciativa: sobe ao tanque mais próximo, abre a portinhola e começa a gritar com os soldados no interior. Nisto, outros dezassete tanques não avançam. De vários pontos da praça, escutam-se disparos, mas talvez o indivíduo não se consiga mexer pelo peso dos seus tomates de aço inoxidável. Durante três minutos, a parada não se mexeu. Dizem que um homem apenas não pode parar um exército; mas neste dia, isso foi mentira. Ele desceu do tanque então, mas continuou na sua irredutibilidade. Um louco, talvez, um homem de princípios; ou alguém que simplesmente se fartou. Tudo acabou quando alguns transeuntes, temendo outra carga militar que deixasse um banho de sangue, foram ter com ele e arrastaram-no para longe. Perdido na multidão, tornou-se anónimo. Não sabemos nome nem destino, se ainda vive ou se morreu. Mas a sua imagem de uma banalidade que num gesto de desafio se transforma numa lenda ficou comigo desde que vi as imagens na televisão quando era criança. Quando decidi vir à China, era impossível não lhe fazer homenagem. Por muitos problemas que me pudesse criar.


Neste dia, as medidas de controlo para entrar na Paraça são a dobrar. Faltam poucos dias para que se comemorem os setenta anos da Revolução Maoísta e há um grande programa de festas que tem como palco este espaço. Tiannamen é tão importante para o Partido Comunista Chinês que um desenho desta está na bandeira símbolo do PCC. Para visitarmos, existem dois piquetes de segurança. Num apresentamos os nossos documentos e somos revistados manualmente; no outro, regressamos à rotina das máquinas de raio-x e detectores de metais. Damos uma voltinha por entre um maralhal de gente e paramos defronte da entrada que de Tiannamen conduz à Cidade Proibida. É a mais conhecida, com o seu retrato icónico do Presidente Mao-Tse Tung com o mesmo sorriso do gato de Cheshire com quem a Alice de Lewis Carroll conversa nos livros. Há bastante polícia e alguns militares guardando o espaço, preferido por muitos para entrar no antigo Palácio Imperial. Outros turistas, também em grande número, percorrem apenas a Praça. Entre nós, tiram-se umas fotos, sérias ou fazendo pouco do peso político deste local. Vejo ao vivo a mesma varanda que por muitas vezes apareceu nos manuais de escola que estudei. Dali, várias caras mudam, mas a presença opressiva do Governo Chinês é a mesma. As bandeiras vermelhas com estrelas amarelas tremem ao vento, mas seguras. É o epicentro da China moderna. O meu plano de homenagear o homem de Tiannamen é o objectivo. Quero fotografar-me na praça. Trouxe vestida a única t-shirt branca que veio comigo, de propósito para este momento. Traz estampada a face de Darth Vader, numa pequena piadola pessoal. É impossível ensaiar esta fotografia no mesmo local onde esse corajoso enfrentou os tanques. A Avenida é frequentada por carros e se ele teve coragem para travar o trânsito, eu pessoalmente não tenho a mesma intenção de desaparecer no anonimato. Sou rebelde, mas dentro dos meus limites. Do outro lado da avenida, estou mais próximo do famoso lugar do protesto. Atravesso por uma passagem subterrânea e subindo uma escada, estou a uns vinte metros. É aqui. Perto de mim, estão três polícias  que me olham quando o Zé Luís me aponta a máquina e eu, direito, segurando um saco de plástico branco, imito um dos meus heróis. Não dizem nada, nem sei sequer se identificam bem aquilo que me move a fazer isto. Talvez não, já passaram trinta anos. Entre mim e aquele lugar de resistência, estão quatro barreiras douradas. Manifestações físicas de outras barreiras que esse desconhecido saltou de outras maneiras. Quando acabo este ritual, a vida continua. Na praça de Tiannamen concretamente, há fotografias e risos e gritos e gente que passa o tempo. Há uma China de hoje que vai passando pela habilidade de resistir com uma diplomacia de inegável inteligência Uma China que exerce o seu poder não pela força abusiva, mas pelo conforto da amnésia. Hoje, em Tiannamen, eu fui o único homem de branco. Sem tanques. Mas com esse espírito de resistência habitando algures em mim, de forma tímida e simbólica, mas viva. Afinal, talvez alguma coisa me ligue hoje à cultura oriental que não consigo que me entre pelos ouvidos.



terça-feira, março 17, 2020

A quarentena, episódio 2: O mecanismo de Antikythera



No Verão de 1901, ao largo da ilha grega de Symis, o capitão Dimitrios Kontos, da Marinha Real Grega, liderava um grupo de mergulhadores não profissionais numa expedição arqueológica. Eram apanhadores de esponja normalmente, mas durante aquele Verão haviam sido contratados para retirarem artefactos antigos do fundo do mar. Fora descoberta uma antiga galé romana e no esforço de expandir o conhecimento sobre aquela civilização e o espaço grego na Antiguidade, o Governo patrocinou uma investigação. Já se retirara variados objectos, desde ânforas a estátuas, jóias, moedas, ourivesaria, pedaços belíssimos de um passado que no futuro estaria exposto no Museu Nacional de Atenas. Nesse dia, um dos mergulhadores subiu ao barco tremendo. Tendo já perdido dois homens para um estranho mal desconhecido que afectava regularmente todos os mergulhadores de profundidade – e que hoje sabemos ser a descompressão, quando demasiado nitrogénio se acumula no sangue – o capitão acorreu para ajudá-lo, temendo novo problema. Mas era apenas fraqueza. Vindo das águas cristalinas do Egeu, o homem trazia aquilo que à primeira vista parecia uma pedra com alguns pedaços de ferro encrustados. Cobertos de verdete, destacavam-se apenas por terem uma clara autoria humana. Sem prestar muita atenção, Kontos juntou-o ao espólio que acumulara. Durante um ano, essa pedra permaneceria esquecida na capital grega, sendo a atenção toda devotada aos belos objectos artísticos encontrados nas profundezas dessa caixa de tesouros helénica que é o oceano. Mas em Maio de 1902, o arqueólogo Valerios Stais parou alguns segundos, mais do que qualquer outro antes de si, diante daquele bloco calcário. Para lá dos potes e do bronze, arrancou-o do monte de achados retirados do barco romano, no sótão do museu, e depois de algum tempo a analisá-lo, a excitação tremeu-lhe o corpo. Aquelas peças de metal não eram aleatórias. Entrincheiradas na rocha estavam peças de engrenagem. Aquilo era… uma máquina. Quando comentou a sua descoberta com colegas, foi ridicularizado. Era impossível. Segundo cálculos, aquele navio era algures do primeiro século anterior a Cristo. Nem os Gregos, nem qualquer outra civilização era sofisticada o suficiente para construir algo do género. Stais estava louco para lá de Plutão.

Derek de Solla Price era, em 1951, professor de Matemática Aplicada em Cambridge. Decidira por esta altura tirar um segundo doutoramento em História da Ciência e numa viagem de pesquisa, visitou o Museu de Atenas, procurando informações sobre a civilização grega, que ele considerava como fundamental no desenvolvimento do pensamento científico. Como britânico, pôde manusear o património que não estava em exibição. A sua atenção prendeu-se no mesmo bloco de rocha que espicaçara a centelha de Stais décadas antes. Como Stais, reconheceu de imediato a bizarria do que tinha em mãos; mas ao contrário do grego, Price tinha nome e crédito. Nos anos seguintes, dedicou parte do seu esforço a tentar descobrir o que raio era aquilo. Análises de raios X e raios gamma, efectuadas com um colega físico nuclear, Charalampos Karakalos, deram ao mundo o inacreditável: dentro da matéria densa estavam espalhados vários fragmentos metálicos, 82 ao todo, entre eles rodas dentadas que Price e Karakalos não conseguiram contabilizar. Mas era um aparelho mecânico, não havia dúvida. Na sua pesquisa, o britânico não conseguiu, no entanto, divisar a sua função ou propósito. Percebeu que havia instruções inscritas nalgumas peças e chegou a construir um modelo daquilo que seria aquela estranha máquina antes de desaparecer no oceano. Mas morreu sem descobrir afinal o mais importante. Apenas em 2008, uma equipa da Universidade de Cardiff, usando tecnologia ainda mais avançada, pôde por fim reconstituir digitalmente aquela contrapção.  Por esta altura, era já conhecida pelo nome da ilha grega mais próximas dos destroços do navio romano onde se encontrara aquela anomalia: o Mecanismo de Antikythera. Apenas então o verdadeiro assombro do mistério se tornou real: estávamos perante o primeiro computador jamais construído, uma complexa máquina analógica que através de variáveis inseridas, realizava cálculos. Para isso, era apenas necessário girar uma alavanca lateral e a volta das engrenagens… adivinhava o futuro.
O Mecanismo de Antikythera seria uma espécie de relógio de metal guardado numa caixa de madeira de 34 centímetros por 18, com pelo menos 37 rodas dentadas que combinavam para fazer funcionar um complicado sistema de cálculos astronómicos. A maior tem 14 centímetros e atrás desta, estava montada outra mais pequena. Na maior engrenagem, a principal, diferentes ponteiros indicavam informações respectivas. Para que servia todo este aparato? Ora, o Mecanismo permitia descobrir onde se localizaria a posição do Sol e da Lua vários dias e semanas e meses e anos no futuro, e também dos cinco planetas conhecidos pelos gregos – Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. O seu movimento acompanhava e projectava as fases da lua durante o mês escolhido, através de uma bola prateada no topo de um ponteiro, que girava acompanhando esse movimento lunar. Havia também um calendário solar, já numa escala de 365 dias por ano, seguindo o Sol através das sua posição nas constelações do Zodíaco, o que mostra alguns conhecimentos de um fenómeno conhecido como Precessão, que faz com que a nossa Estrela atravesse toda a nossa cúpula terrestre num ciclo de dezenas de milhares de anos. As inscrições, aliás, revelam algumas instruções para utilização da máquina, nomeadamente contagens de tempo, escalas astronómicas e operações matemáticas. Numa delas, encontramos o nome dos doze meses como fases do Zodíaco como os conhecemos hoje – mas usando as designações egípcias. Outro ponteiro previa eclipses solares e lunares, incluindo as possíveis cores e densidades. Era algo a que os Gregos prestavam atenção por serem brutalmente supersticiosos. A máquina dava também informações ao utilizador acerca dos futuros solstícios e equinócios, dado em torno da qual girava a grande visão do Universo de praticamente todas as culturas antigas, até mesmo as do Neolítico. Dado curioso e bem divertido: este Mecanismo trazia embutidas também as datas de 42 grandes festivais religiosos gregos, incluindo os Jogos Olímpicos. O utilizador da máquina, girando a alavanca principal, conseguia saber quantos dias faltavam para a realização de cada um. Era um calendário solar e astronómico; uma agenda,um contador astrológico, um observatório dos astros e dentro do conhecimento limitado da época, conseguia ter em conta os movimentos irregulares da nossa Lua através de pequenas variações nas engrenagens que lhe estavam atribuídas dentro da máquina.

Talvez a explicação científica não ajude a entender o quão fora da norma é este objecto. Mas vou tentar fazer perceber. As primeiras calculadoras com alguma sofisticação surgidas na Europa aparecem apenas no século XVI; derivam de outras mais arcaicas do século XIV. Ora, estas têm raízes nalgumas maquinetas utilizadas por matemáticos e astrónomos muçulmanos, que provavelmente as foram buscar a Bizâncio, actual Istambul. Na melhor das hipóteses, há entre mil e mil e quinhentos anos de tempo perdido entre o Mecanismo de Antikythera e algo que lhe seja semelhante em complexidade, sem que o ultrapasse na variedade de funções ou precisão de engenharia. Um imenso vazio de conhecimento que ninguém consegue muito bem explica. Para lá das duas perguntas imediatas: quem o fez? Como foi feito? A primeira não tem resposta. Foram sugeridos vários conhecidos sábios da Antiguidade como autores, desde Arquimedes (o Da Vinci do mundo clássico) a Hiparco, astrónomo que para além da descoberta do cálculo trigonométrico, foi também quem notou pela primeira vez, pelo menos reconhecidamente, o fenómeno da precessão dos planetas no Zodíaco – embora se desconfie que os Egípcios, por exemplo, também estavam ao corrente desse estranho evento. Qualquer um deles é válido. A astronomia de Hiparco misturava a geometria grega com cálculos astronómicos babilónicos, que parecem ter um papel importante no Mecanismo; e Arquimedes é o autor de uma das grandes obras científicas da História, um livro chamado “Do fabrico das esferas”, que segundo o escritor romano Cícero conteria os planos para um engenho muito semelhante ao encontrado em Antikythera. Mas o facto de terem sido identificadas duas caligrafias diferentes nas peças encontradas indica vários construtores materiais, ainda que o sábio a ser consultado possa ter sido apenas um. Seja quem for que tenha tido a arte e habilidade para construir algo tão íncompreensível na sua execução. Os arqueólogos acham estranho que algo tão importante, e de evidente origem grega, tenha sido encontrado num barco romano. Mas talvez isso se justifique pelo saque que várias cidades-estado do mundo helénico foram sujeitas durante o período de expansão do Império Romano, que se efectuou mais ou menos no período em que se aceita que esta intrincada maquineta foi construída.

A complexidade do Mecanismo de Antikythera supõe objectos antepassados que não se encontram. As suas previsões do céu não são completamente precisas: diferem, por exemplo no casos dos planetas, em um grau em relação ao que sabemos hoje ser a sua posição real. Ainda assim, para o conhecimento do período, é extraordinário. Reconhecidos cientistas como Richard Feynman e Jacques Costeau viveram fascinados com a máquina – o francês chegou até a mergulhar em busca de outras peças que pudessem ajudá-lo a esclarecer o mistério. No entanto, a mera existência deste artefacto é em si um tremendo enigma que nos faz repensar a maneira como avaliamos a sapiência
e Ciência daquele que nos precederam. É provável que este fosse um conhecimento muito restrito e secreto, um aparelho a ser usado em aulas e para quem quisesse tornar-se astrónomo. Na sua intrincada engenharia, reflecte também a maneira como os Gregos viam o Cosmos. Não como uma imensa algazarra sem sentido ou lógica, mas como fruto de cálculos e ciclos, de ordem matemática. Como se fosse uma máquina complexa, cujas engrenagens, beleza e segredos só vemos se prestarmos realmente atenção. Se nos entregarmos ao tempo de contemplar, se aceitarmos o mistério como parte do ciclo maior da vida. Como parte do seu próprio mecanismo.

segunda-feira, março 16, 2020

A quarentena, episódio 1 - "A ilha dos mortos de Veneza"




Veneza sempre foi uma cidade à espera de morrer. No momento em que foi tomada a decisão de construí-la sob palanques de madeira numa lagoa pantanosa, nas 117 ilhas que, como sardas, se espalham nos estuários dos rios Pó e Piave, um relógio começou a contar tempo. Cada segundo caindo, cada gota de água trepando as paredes dos seus canais, vigiando, ameaçando. Em dias de chuva e névoa, esse agouro pesa mais; e mesmo por entre a fumaça ténue da humidade, que brota do mar e não deixa ver mais do que a ponta dos dedos defronte da cara, alguns dos ilhéus pequenos da lagoa surgem. Nos que hoje contam com gente, as luzes asseguram que ainda não sumiram. Mas outros foram abandonados, deixados como náufragos que nunca chegam à cidade. Por entre essa névoa, se concentrarmos o foco e a vista, surgirá em ocasião uma torre alta, sineira, miragem. Mas existe. Encima a igreja de Santo Vitale e marca da presença amaldiçoada da ilha de Poveglia. Ou como é conhecida em Veneza, a Ilha dos Mortos.


Poveglia tornou-se sinónimo de muitas coisas. Quase todas, sussurradas com medo de que se tornem realidade na presença de quem as fala. Um último recurso desde a sua ocupação. Pairavam no ar quando em 421 um grupo de cidadãos romanos, na fase de caos completo que envolveu a queda do Império Romano do Ocidente, atravessou a lagoa veneziana para se refugiar na ilha. O seu isolamento tornava mais fácil a tarefa de fugir aos povos bárbaros que ajudaram a derrubar o Império. Sabiam que a ilha era usada pelas autoridades romanas como despejo de doentes, párias pelo simples facto de esgotarem a saúde própria e alheia. Dificuldades iniciais deram lugar ao desenvolvimento de um povoado que se aguentou até ao século XIV quando em 1379, o governo da cidade-estado de Veneza, à altura uma das grandes potências económicas e militares da Europa pelo seu papel no comércio mediterrânico, forçou os habitantes a sair da ilha. O objectivo era a construção de uma fortaleza octogonal que faria parte de uma rede de quatro, na ideia de proteger a cidade. No entanto, as mesmas ligações comerciais que tornaram a cidade opulenta e rica trouxeram também uma doença de propagação rápidas, contágio fulminante e sintomas bem visíveis no destaque de bubões negros que se espalhavam pelo corpo. Vinda da Ásia Central, a Peste Negra entra na Europa. Veneza é um dos seus primeiros portos; e o mesmo isolamento que atracou em Poveglia os seus primeiros habitantes dá-lhe um novo papel: o último refúgio dos enfermos. As autoridades venezianas designam-na como uma das ilhas para onde os pestilentos doentes devem ser evacuados, na tentativa de conter a epidemia. De início, na paciência das horas escorrendo até à morte, deixando que cada um tome o seu tempo; mas alguns meses depois, o processo passa a ser mais confuso. Aleatório. Se antes a certeza da doença era o critério de quem era desterrado, o pânico e a histeria, os festivais constantes de penitentes chicoteando-se na rua como punição e pedido de perdão a Deus, a fuga generalizada de pessoas que deixam a fervilhante Veneza, a cosmopolita Veneza, em algo saído de um filme apocalíptico, levam a uma escolha menos escolhida. Qualquer cidadão mostrando o mínimo sinal de doença, seja ela qual for, é enviado para a ilha. Muitos, saudáveis, morrerão lá contaminados pelos verdadeiros doentes. Alguns serão atirados para poços, cheios de cadáveres, e queimados vivos. Os gritos ouviam-se do outro lado do mar. As cinzas dos falecidos entraram no solo e misturaram-se com o terreno. 160 mil pessoas terão aqui gasto os seus últimos depósitos de vida. Depois, aqui ficaram depositados, mas em morte. Mas não todos: nas décadas seguintes, os venezianos que passeavam na costa deram muitas vezes com lixo que se depositava também nas praias. Eram ossos. Queimados.


O fim da vaga de Peste Negra retorna a função militar a Poveglia. Mas não se livra do antanho de morte e perdição que ganhou no entretanto. Tanto mais que a Peste, na  verdade, nunca sumiu completamente. A seguir à Negra, veio a lepra e Poveglia virou também lazaretto daqueles que chegando nos barcos estivessem doentes. Por decreto do doge de Veneza, governador máximo da cidade, os que mostrassem sintomas deveriam permanecer quarenta dias em Poveglia e duas ilhas próximas. Caso não mostrassem evolução da doença, entrariam em Veneza. Quarenta dias. Ou como conhecemos hoje, uma Quarentena. Mais vidas perdidas em batalhas, mais vidas perdidas nos marinheiros que acabam por morrer em Poveglia. A reputação do ilhéu cresceu com os séculos, mas não demoveu o governo italiano de aproveitar a calma e serenidade do espaço para instalar, em 1922, uma casa de retiro. Pelo menos, era essa a versão oficial. O complexo aí construído recebeu pessoas com distúrbios mentais numa altura em que esse conceito era pouco definido. Em Poveglia, estiveram internados doentes de facto e doentes de invenção, pessoas cujo comportamento estranho lhes colava rótulos de imediato. Em primeiro com a Peste, depois com a incapacidade de entender os labirintos torcidos da mente humana: Poveglia é um monumento erguido à capacidade de o medo ser uma doença que tudo amplifica, que tudo confunde, separa e isola. O medo é o mar que nos rodeia como ilhas e que nunca atravessamos. O medo dobra a realidade e cria histórias, como aquela de que um médico desta casa de retiro fazia horríveis experiência com os pacientes. Guardava as piores, desde electrochoques até lobotomias sem anestesia, para uma sala que mandara construir na torre de Santo Vitale. Numa noite de tempestade, caiu da torre e morreu. Ninguém sabe bem como, mas uma enfermeira conta em linhas de medo que o médico terá sido atirado por espectrais figuras, caras contorcidas de dor, exigindo que a ilha deixasse de ser um espaço de dor. Na queda, o homem sobrevive, mas rapidamente o envolve uma névoa branca que o arrasta para ninguém sabe onde, nem a enfermeira, nem os rumores nos seus lábios. É uma história de pânico, outra mais. É um boato que cria forma de bola maciça.


Em 1968, o espaço encerra e Poveglia fica deserta. Até hoje. O Governo italiano proíbe visitas, me tem tentado vender aquele rochedo, sem sucesso. Várias interessados fazem ofertas, mas uma noite passada ali rapidamente lhes muda a ideia. Realidade ou não, a Ilha dos Mortos vive da sua reputação. Em redor, outros ilhéus albergam hotéis de luxo, resorts com vista privilegiada para a cidade dos Doges. Poveglia não. Hoje, apenas alguns agricultores a usam, com autorização da cidade. Aproveitam o solo verdejante da ilha para cultivarem aí as suas vinhas. As cinzas das vítimas de peste tornaram-se integrais à terra, adubaram-na, fertilizaram-na. Quando se remexe, ocasionalmente surgem ossos que o fogo não consumiu. Mas eles não se importam. O que conta é que produz. Os vinhos feitos com a morte de Poveglia bebem-se com a mesma alegria dos outros se não soubermos o segredo. Não consta que tenham havido histórias de copos assombrados. Hoje, se quiserem visitar à revelia, é pagarem a um pescador e ele leva-vos a Poveglia. Todos os anos, um auto de danados procura a reputação amaldiçoada daquele lugar. Recentemente, em 2016, cinco estudantes norte-americanos foram ali presos pela Polícia Italiana, depois de ligarem aos bombeiros por necessidade de evacuação. Falaram em vozes e gritos, em sombras nas ruínas. O medo é contagioso. Passa tempo e espaço, fica nas paredes e nas árvores. À espera de fazer efeito. De empestar. De nos tornar em ilhas.

segunda-feira, março 09, 2020

Fachinação 22: Chegada a Pequim



Não quero acreditar e no entanto ali está. Um dos logotipos mais reconhecíveis em todo o mundo, resistindo a desaparecer no barulho e bulício da estação de comboio de Lanzhou. Passei a viagem quase toda, esta semana em meia em território chinês, fazendo piadas com aquilo e nesta cidade que marca praticamente a fronteira entre as duas Chinas - uma a Oeste, desertificada, onde temos passado os nossos dias; outra a Leste, urbana, dinâmica, onde a ponta final da travessia se desenrolará - surge por fim um McDonalds. Depois de jornadas a contornar os perigosos rochedos da comida chinesa, do orientalismo gastronómico que tem sido uma experiência e desnivelada para o meu estômago, a promessa de familiaridade. Há tempo para almoçar. Apesar de alguns atrasos com a camioneta, que encontrou alguns problemas mecânicos à saída de Xiahe, a viagem correu tranquila. Pelo meio, as temperaturas frias do Tibete, com o céu carregado e de fronha zangada, deram lugar a um calor abafado, a um sol que nos recebeu no terminal de camionagem de Lanzhou. Onde, diga-se, ainda nos perdemos um bocadinho com o sistema chinês de conduzir os passageiros até à saída. Chinesices. Mas precisando todos de almoço, o movimento comum é rumo aqueles dois arcos dourados armados em estrada de tijolos amarelos rumo a Oz. Sim, nós sabemos que as corporações são más. Sim, a McDonalds tem um historial muito questionável no tratamento de animais. Sim, estamos num páis cuja reputação de higiene na zona de restauração é ruinosa. Mas depois de chop suey, zhajiang mian, pidan dofu ou gao dian, entre outras dezenas de pratos igualmente impronunciáveis, sinto-me pronto para não ser surpreendido. A não ser que os Big Mac aqui na China sejam estufados e com carne de cabra. É possível. Afinal, outra especialidade do país é pegar numa patente industrial, retransformá-la com ligeiras alterações e apresentá-la como um produto novo. Isto até pode nem ser um McDonalds, de facto, mas um MingDonalds, uma versão chinesa da franchise estaduninense. De malas a reboque, entramos no restaurante como turistas. Está cheio e vamos esperando para que lugares vaguem de maneira a podermos sentar-nos. Alguns vão já pedindo. Os funcionários percebem zero de inglês e encaminham-nos para um menu geral com imagens, embora todas as legendes se apresentem em mandarim. Quando me toca a vez, tenho de recorrer à memória visual. As minhas idas a esta cadeia de fast food são raras e inserem-se sempre numa lógica prática de comer algo para enganar a fome quando estou em território desconhecido ou pior, num centro comercial. Invariavelmente, opto pelo pelo Big Mac, porque assim como assim aquilo sabe (ou não sabe de todo) ao mesmo. Espera-ns uma viagem de oito horas até Pequim e não quero ri de estômago vazio. Acho que encontro a imagem do que procuro. Peço. Só há Coca-Cola, bebida que não aprecio, e como tal, requisito água. Indicam-me que vai demorar, o não percebo de imediato. Alguns minutos depois, chamam-me. Testo pelo olfacto: o hamburguer chinês tem um cheio muito parecido com que posso encontrar em Portugal. Abro a caixa . o mesmo design, apenas muda a linguagem - e ali está ele, uma cópia de uma cópia. Ao lado, batatas fritas. É a minha primeira tentação e pecado a que cedo. Já não comia isto há algum tempo. Abençoados belgas. O meu estômago deve ter entrado em choque, traumático provavelmente, mas não vacila. Desaparece em poucos minutos e por momentos, saí da China e sinto-me algo revigorado, pronto para aguentar os últimos três dias na capital chinesa, imerso na comida local, disposto a aguentar as últimas refeições agridoces e de molhos fortes, com proteínas que não reconheço e apenas lido com instinto. Senti-me libertado.

Oito horas até Pequim. Parte do meu cérebro acaba de ler o "Easy riders, raging bulls", a outra vai percorrendo a investigação que fiz acerca daquela que é, segundo algumas estatísticas, a cidade mais habitada no planeta: vinte e um milhões e meio de habitantes (vinte e quatro, se contarmos a zona metropolitana). O aumento da influência chinesa no mundo pode verificar-se até pela maneira como o nome da cidade mudou nas referências ocidentais. Os aeroportos costumavam, por exemplo, anunciar a cidade como Peking, que foi uma anglicização do nome em mandarim. A versão portuguesa é aquela que usarei nesta e nas próximas crónicas. No entanto, os Chineses nunca ficaram muito satisfeitos com isso. Mais um sinal de prepotência ocidental. Quando o rumo da economia planetária começou a virar a Oriente, os países ocidentais mudaram o ritmo e seguiram outra pauta. Porque actualmente esta não é apenas uma cidade chinesa, mas planetária. Xangai continua a ser o centro económico da China, mas os turistas estrangeiros dirigem-se a Pequim, procurando a tradição chinesa como ela é filtrada para o exterior. É o ponto fulcral da cultura, da sociedade, da arte, da educação, da ciência. É a única cidade em todo o país que é governada directamente pelo próprio Comité Central. Mas para além de todas estas modernices, e o que é mais importante, Pequim apresenta-se como uma das cidades mais antigas do mundo. nem sempre como capital dos reinos e impérios que antecederam a actual nação comunista. O seu nome significa aliás "capital do Norte" e é um de entre vários pelos quais a conheceram: Jixian, Yanjing, Najing, Zhongdu, Shuntian... Apenas em 1949, numa reunião do Partido Comunista Chinês, a versão actual se tornou orbigatória no uso público dentro do país. É também o ano onde é escolhida como capital única da nação chinesa. A cidade é uma colecção de máscaras, uma projecção de séculos e dos homens que os habitaram; e de todas as Quatro Grande Capitais da China, o quarteto de urbes maiores que a certo foram o foco de toda a vida política da nação nas suas várias versões, é a única que ainda conserva o seus estatuto. As restantes (Xi'an, Luoyang e Nanjing) assumem hoje o seu papel mais secundário na vida do país.A China é Pequim, de certa maneira e o futuro passa por lá. Não é à toa que existem no seu espaço noventa e uma universidades. Tenho-me tentado preparar mentalmente para esta enormidade. A maior cidade onde passei até hoje deve ter sido Lima, cuja população não é metade da de Pequim. Questiono a sua organização - ou falta dela - a circulação, a enxurrada assustadora de pessoas, que é afinal aquilo de que fujo. No entanto, ninguém me obrigou a viajar para a China. Sou aquele paradoxo semi-giro. 


A minha primeira impressão de Pequim, quando saio do comboio de alta velocidade após a chegada, é de um calor opressor. Estava avisado que esta zona é árida, rodeada de montanhas, mas também com um clima desértico. Tenho ideia de suar um lago interior enquanto me encaminho para a praça de táxis, que está à pinha. "À pinha" é, acredito , o lema não oficial da cidade. O comboio estava à pinha, a estação também, os corredores e passagens e cantos igualmente. Estou crente de que se abrisse agora uma tampa de esgoto, brotaria do interior uma multidão de olhos em ecrãs de telemóveis, escolhendo direcções várias, ignorando dificuldades ou sociedades. Pequim é gente, gente que quer entrar em táxis, gente que procura rumo, gente que na sua vidinha quer apenas chegar ao fim do dia. É nesta Pequim que nos enfiamos. O nosso condutor é já idoso e não sabemos bem sequer se entendeu as direcções que lhe demos para o hotel. Assentiu que sim, mas com aquele ar inexpressivo e olhos vítreos que já encontrei com alunos a quem faço perguntas que começam com o verbo "explicar". Mais certo fico desta suposição quando reparo que segue com fidelidade canina um colega que levando outros do nosso grupo lusitano, mostrou lidar muito melhor com o idioma de Shakespeare e principalmente com a aplicação do Google Tradutor. São dez e meia da noite, a humidade faz-se sentir nos corpos pingados e o trânsito é o de uma hora de ponta em Lisboa multiplicada por dez. A Pequim que percorremos é de longas avenidas que não aparentam ter um ponto final, nem de fuga. As luzes dos semáforos perdem-se na neblina do fumo industrial e do rádio brota a suavidade dos estilo pop arcaico chinês, instrumentos de sopro histéricos e voes que parecem lamentar perdas de vida durante os tempos em que o Exército de Terracota era apenas lama no chão. O nosso homem ao volante perdeu um pouco a noção e os nossos olhares cruzam-se na conclusão de que perdeu o colega de mira. Há um momento de reorientação do GPS cerebral, umas palavras ditas em chinês num tom que adivinha asneiredo mandarim e de súbito, uma guinada e aceleração por entre o trânsito. Entre perguntar-nos novamente o destino e uma busca desesperada pelo colega, a segunda opção protege o orgulho de qualquer beliscão. Entre tantos faróis e barulhos e movimento, interiorizo essa lição que aprendi neste gigante país: deixar-me ir porque controlo zero e uma vez chegado onde quer que esta onda me transporta, preocupar-me com as coisas por lá. Não adianta muito stressar. Já basta o que existe palpável de cada vez que abrimos a janela. O silêncio no carro existe porque sinceramente, estamos todos cansados deste esticão de oito mil quilómetros a que nos sujeitámos. Um mundo, quase. Dez Portugais de norte a sul; e nós fizemo-lo semana e meia apenas para deambularmos no trânsito pequinês sem grande noção se vamos parar à Coreia do Norte ou à Talândia quando o táxi parar e a porta abrir.

Mas a porta abre e o que nos espera é a rua. O nosso taxista vem ajudar-nos a tirar as malas, com rapidez e algum despacho; deve estar doidinho por voltar a aturar compatriotas, daqueles que se expressam em mandarim. Procuramos o Jiangshan Garden Hotel, um hotel que pelo mapa fica algures no meio dos labirintos de ruas estreitas que fazem parte da Pequim mais antiga, São os Hutong, os bairros históricos, decadentes, típicos, patuscos e cheios de personalidade de uma metrópole cada vez mais engolida por aquilo que se tem convencionado chamar de progresso. Estradas pouco mais largas do que um carro originam becos apertados onde passamos dois a dois, enfiando por habitações baixas e pequenas, portas que parecem de cofre e muitas vezes me põem a adivinhar acerca do que se esconde do outro lado. Quando abertas, contemplo jardins interiores ou uma divisão apenas de espaços amontoados e habitantes suados, com pouca roupa. A origem deste género de casas e ruas é medieval, do século XIII, dividindo os bairros da cidade de acordo com o estatuto social. Quanto mais perto vivia da cidade proibida, mais importante seria o cidadão; e os Hutong que vejo hoje, palavra mongol que significa "poço de água", começavam a alguns quilómetros da residência do imperador. São minúsculos e de materiais humildes e comuns, o contrário daqueles que pertenciam às altas castas imperiais, normalmente com grandes jardins, telhados coloridos, decoração com materiais caros e raros. A esmagadora maioria foi desenhada de Este para Oeste, pois as suas entradas procuravam a direcção da luz do sol para melhor iluminação. Quando terminou a era imperial, no início do século XX, este sistema social colapsou. A proliferação deste tipo de bairros perdeu personalidade e organização e eles foram aparecendo, sem regras por toda a periferia de Pequim, sem qualquer tipo de distinção entre si. Boa parte foi destruída durante os períodos de guerra civil consecutivos que resultaram na Revolução Comunista de Mao-Tse Tung em 1949. A modernização de Pequim, onde as largas avenidas e os edifícios residenciais com vista a acomodar uma população cada vez mais crescente, ajudaram a que a maior parte dos originais desaparecesse. Mas alguns continuam a existir. Como aqueles em que circulo nesta noite. Luzes tépidas, animais que cosem as sombras, o barulho muito difuso de televisores e transístores, com alguns berros entre cortados de famílias que discutem. Existem um pouco pelo encanto turístico da viagem no tempo. Como se até os próprios burocratas percebessem que no centro de poder, neste símbolo do país que é uma capital milenar, é mais difícil exterminar culturas antigas. Estamos a falar de locais com personalidade própria, cada bairro com uma história particular, figuras, mitos, folclore. Afastados da opulência da Cidade Proibida e do Palácio de Verão, a verdadeira Pequim viveu aqui à sombra de séculos. Onde a cultura é popular e a gastronomia próxima dos gostos mais comuns refinados pelo paladar do tempo.


O hotel localiza-se no hutong de Sanyanjing, perto do centro, mas quase um mundo à parte. Juro que já nem consigo ouvir o bulício do trânsito que me consumiu na viagem até aqui. É como se alguém desligasse o ruído com um simples aperto. O nome significa "Poço das três bocas" e forneceu durante água ao Palácio da Cidade Proibida durante vários séculos. Esta área ainda é nobre nos tempos actuais: de Deng Xiaoping, antigo Presidente chinês, até Rupert Murdoch, actual presidente das fake news, muitos famosos têm casa na zona exterior a Sanyanjing, um bairro conhecido por Jiangshan. É precisamente esse o nome do nosso hotel. Quando chegamos, eu sou o primeiro. Toco a uma campainha do meu lado direito e estaco olhando as portas de madeira que se abrem para dar a conhecer a sorridente cara de uma hora chinesa. Num inglês relativamente ágil, saúda-nos e convida à entrada ajudando com as malas. Uma outra jovem surge para acompanhá-la. O check-in demora alguns minutos. Despachamo-nos e outra porta leva-nos a um pátio interior com mesas, sombrinhas sofás, iluminado por trémula iluminação de velas, espantando para um longe próximo a noite que nos envolve. Sinto.me cansado de te estar sentado a maior parte do dia, da extensão das ligações de viagem, dos transportes. Do lado sujo de viajar, resumindo. Preciso de cama e quarto e do meu espaço interior. De descanso, basicamente. Minutos depois, as minhas coisas estão prostradas no chão e eu esticado na cama, ar condicionado ligado, um planeta a destruir pelos meus impulsos e caprichos egoístas de ocidental acomodado. Antes de tomar banho, informo a minha família de que estou bem e dou graças ao VPN. O Hélder mostra-me então uma nota escrita de forma macarrónica, desejando-nos uma boa estadia, agradecendo a nossa escolha, saudando a presença do Vítor Costa... o dono da empresa com a qual costumo viajar. Nesta noite em Pequim, somos todos Vítor Costa de uma maneira ou de outra, os donos da viagem. Devia ir jantar, mas não me apetece. Como qualquer coisa que tenho na mochila para ir enganando o estômago. Há-de chegar até amanhã de certeza. Quem nunca viajou para fora de resorts eou cidades europeias bonitas ignora o quão penoso para o corpo se torna uma viagem para quem decide calcar fora dos trilhos mais comuns do viajante. É uma escolha assumida, mas que se paga e aqui deitado, na noite quente, começo a entender o preço. Deixo-me ficar mais uns minutos, a tentar perceber se tenho saldo. Amanhã a volta vai ser

domingo, março 01, 2020

Fachinação 21: Daqui para ali



Um tempo houve em que a natureza humana pedia mudança constante. Sem raízes, tribos de primatas que se tornariam humanos vagueavam em busca de recursos e vivendo um dia de cada vez, um lugar a cada dia. Com o advento da civilização, cidades e aldeias foram fundadas pelo desgaste que um estilo de vida nómada causava nos nossos corpos e nas nossas relações um com o outro. Em vez de rivalidades móveis, passámos a implicar de maneira estacionária; e é dessa forma que a casa se tornou um monumento à inércia. A qualquer um que se ofereça um emprego ideal, a maioria terá como condição um local para assentar e passar a vida na rotina do mesmo. Algo que eu entendo muito, sendo por enquanto professor - função que me obriga a ser uma espécie de emigrante dentro do meu próprio país à conta do Ministério da Educação. Apela-me pouco, mesmo sendo de História nem todos os apelos do meu humano primitivo ainda batem fundo, mas tenho um amigo que tem feito dos últimos anos uma imensa tômbola de países e não quer agora outra coisa. Trabalha para viver os dias, para viajar, para comer e se hoje está, por exemplo, na Austrália, amanhã pode aparecer no Vietname e duas semanas depois na Macedónia. Sente-se feliz por vaguear sem vagabundear, por conhecer. Quando me gabam a coragem de embarcar para países longínquos, diferentes, sinto.me sempre um berlinde. Porque coragem tem ele: ele vive de facto, eu apenas estaciono e pago tarifa para ir estando. O nomadismo, apesar do que pensamos, não é assim tão incomum. Deverão existir ainda hoje entre vinte a trinta milhões de nómadas em todo o mundo, a maior parte na Ásia. Vão desde os mongóis que passeiam yurts de um lado para o outro até às tribos removidas da civilização das selvas amazónicas ou indonésias. A palidez da roupa beduína sobressaindo no calor dos desertos africanos; a adoração fiel que os Tingit do Alasca têm pelo mar e seus recursos; os Nukak-Maku, que nas profundezas da Amazónia colombiana ainda vivem como caçadores recolectores de há milénios. Ainda é um grupo numeroso de gente que prescinde de compromisso com um local, e nem sempre porque sejam forçados a isso. Na verdade, o avanço do chamado progresso quer muitas vezes, e à força, retirar estes errantes de algo que herdaram de gerações, e conhecem no seu sangue num depósito cultural de séculos, essa vontade inegável de partir e buscar, de trânsito permanente de sítios. Mas eles resistem; e penso sempre que eles têm aquela vantagem que perdemos com a nossa confiança cega em tecnologias, aquela manha de sobreviver que hoje entregamos a circuitos de silicone e sinais de satélite. Na eventualidade de um cataclismo, serão estes habitantes da realidade que reerguerão o mundo, não a nossa inépcia perante o desastre, procurando com desespero a muleta do telemóvel como solução para todo. O mundo é dos nómadas, e não apenas nos seus caminhos.

Por isso sempre me despertaram curiosidade. Quando visitei o Quirguistão, em 2016, pude observar o seu modo de vida, a maneira como Inverno e Verão não são apenas ocasiões para mudar roupa do armário. Marcam um ciclo, marcam um momento: a altura de mudança. Seguem o ritmo das estações e da Natureza, não sendo menos empáticos ou pais por isso. Têm as mesmas preocupações do que eu ou tu que estás a ler, honestas e preocupadas. Apenas escolhem outro meio de cuidar delas. No planalto tibetano, este estilo de vida ainda está presente, o que acaba por me fazer sentido pois as condições naturais são muito semelhantes: relevo montanhoso, vales de planalto verdejantes, cursos de rio e lagos produto do degelo das neves e dos glaciares. Viver aqui significa perceber como estamos dependentes do planeta. Talvez fizesse bem a alguns decisores umas semaninhas afastados de tudo. Depois de conhecer o lado místico desta região, o dia foi tirado para visitar o Tibete real. Num passeio algo fora de tudo, vamos visitar algumas comunidades nómadas que ainda vivem nas planaltos montanhosos, num estilo de vida muito puro e próximo daquilo que era há dezenas de anos, centenas até. Saímos a meio da manhã e antes de nos aventurarmos para lá as casas e aldeias, paramos junto ao Lago Gahai, uma pequena área pantanosa localiza na reserva natural do mesmo nome. É um local de biosfera muito específica e pode ser observado a partir da estrada. Aproveitamos para umas fotos, com uma vista que fantástica muito verde. Uns passadiços de madeira contornam umas das margens do lago, com pontos de observação espalhados por um percurso que se espalha por meio quilómetro. Conseguimos observar alguma aves pernaltas, nomeadamente a garça de pescoço negro, uma das aves mais raras do continente asiático. Acredito, pela quantidade de água aqui localizada e o número de pequenos rios e riachos que aqui desaguam, que este deve ser um local muito importante para as comunidades locais, agricultores e pastores à cabeça. Mas para mim, que só vejo tudo isto como um festim para os olhos, descanso a vista e até algo mais. Depois da melancolia da tarde anterior, sinto uma necessidade visceral de acalmar; e para mim, o bálsamo maior é a distância do mundo e a essência do mesmo. A paisagem, a minha reunião comigo. No regresso aos carros, más notícias para alguns: avaria. Os condutores dão voltas debaixo do capot mas o problema não se resolve assim. Esperamos uns minutos pela chegada de uma nova viatura. A nossa sorte foi de estarmos ainda a pouca distância de Xiahe, o que não atrasou muito o tempo que temos para passeios e explorações. A estrada recebe.nos novamente e depois de quilómetros de pavimento lisinho e bem tratado, um desvio para a direita leva-nos a um pequeno aldeamento centrado numa escola e num recinto de feira. A partir daqui, a civilização passará a ser gradualmente um rumor. A estrada continua, mas os buracos dão-lhe o aspecto do couro malhado de uma vaca.


Ainda são algumas dezenas de quilómetros nisto. A velocidade diminui em obrigatoriedade, a paisagem não muda, mas acalma. O único toque da mão humana está em cercas de arame e casebres de madeira. Mesmo as habitações se tornam portáteis: é frequente vermos montadas tendas iglo à beira da estrada, abrigos de pastores que saíram para dar um giro com os seus rebanhos. Em ocasião, carrinhas com antenas de televisão, sinais de habitação da maneira mais liberal de usar a palavra. Mas para mim, a principal mudança é a liberdade total de câmaras e microfones. Não se vê um único poste que não seja de electricidade. O Estado chinês demitiu-se das tarefas de vigilância, ainda que a sua presença seja sentida pelos nómadas tibetanos de outras maneiras. Primeiro, numa manobra que percorreu todo o Tibete e até zonas próximas como Sichuan - conhecida como a província dos pandas - tentou forçar todos os nómadas a instalar-se nas cidades. Não resultou, porque, como seria de prever, estamos a falar de uma cultura de milénios que nem o todo poderoso estado chinês pode terminar por decreto. E porque é que não resultou? Porque embora toda a esta gente aproveite o Inverno para usufruir de todas as comodidades oferecidas pela vida urbana, como electricidade e a beleza que é o consumismo, chegado o Verão as suas casas ficam desertas e lá regressam eles aos prados e às montanhas. Na verdade, se perguntarem a alguns, nem gostam de viver em casas. O mundo é a sua casa, e chega e já é muito. Têm uma responsabilidade maior para com os seus animais, levá-los até aos pastos férteis e fartos para que não morram à fome. A partir da estrada que percorremos, algumas manadas são bem visíveis e em ocasião, abrandamos ainda mais para que algum grupo de iaques se abra de par em par como se fosse o Mar Vermelho bovino. Imagino que ser nómada é também não ser egoísta, perceber que se faz parte de algo muito maior e que somos apenas um pecinha que faz tudo funcionar se fizermos o que nos cabe. Há algo de humildade nisto, uma espécie de submissão diferente da religiosa. Na verdade, é abdicar do controlo para tomarmos conta de coisas muito mais importantes do que o ego. Nalguns pontos do Tibete Chinês, o Governo construiu uns parques aventura para que qualquer um possa ver in loco como se vivem estes costumes ancestrais... ainda que, à vista de todos, faço os possíveis por eliminá-los. Mas aqui em Gansu, não encontraremos nada disso. Do lado direito vejo um pequeno ribeiro que atravessa um verde vivo que flui e existe bem. Torna-se também visível um conjunto de yurts, guardados por cães e rodeados de animais. À porta de um, algumas pessoas trabalham, lavam louça. O céu ameaça chuva, carrega de nuvens o ambiente. É o nosso primeiro ponto de paragem.

Somos recebidos por um homem jovial, mas que já deve ter uns quarenta anos. Abre-nos a porta da sua tenda e é como se nem fossemos estranhos. Há uma divisão em duas partes: do lado esquerdo, o espaço de trabalho, principalmente culinário. Existe um fogão a lenha, com uma chaminé que sobe até desaparecer por um buraco no topo da tenda. Do lado direito, tapetes espalhados pelo chão indicam a sala de estar, espaço para receber e onde nos convidam a sentar. Reparo imediatamente, porque se torna impossível de ignorar, num armário mesmo à nossa frente onde se destaca uma fotografia A3 do Dalai Lama, sorrindo, abençoando. Ali mesmo à descarada, sem medo. Um sinal óbvio de que as autoridades chinesas não devem passar aqui muitas vezes; ou então um gesto de coragem e arrojo que marca uma posição bem vincada. De que, afinal a uniformização cultural não tem lugar aqui onde a civilização é só fumo branco. Para nos aquecermos, oferecem uma tigela de leite que passa entre nós. Experienciado por outras aventuras, presumo que é leite fermentado, e é mesmo. Oportunidade de passar a quem está ao meu lado. Uma mulher, enquanto nos aquecemos, vai amassando algo que, descubro depois, é um pão feito com leite de cabra. Pelo menos não é de égua. Apesar do frio que faz lá fora, e de um vento que ruge na violência dos sopros e faz tremer a lona, o espaço e o ambiente é bastante acolhedor. Vamos perguntando acerca de como vivem a vida e o homem que nos recebeu, num inglês fluente, esclarece e responde. É incrível como no fim do mundo se domina melhor uma língua estrangeira que nesses locais onde há escolas e meninos que vivem como deve ser. Questiono-o mesmo acerca disso e explica que aprendeu na tenda, com uma professora que percorre as comunidades nómadas e dá aulas aos meninos e meninas que assim queiram. Diz que hoje em dia já há menos professores, mas que ele próprio vai ensinando os próprios filhos nas coisas básicas e também na cultura e religião dos seus ancestrais. Quando chamado à atenção do descaramento da foto do líder religioso budista, encolhe os ombros. Ninguém nota; e também, quem é que vem aqui? Estamos a quarenta quilómetros da cidade mais próxima e não há aqui nada que interesse. Aqui estamos sossesgados, livres e sem chatear ninguém. E penso que, se calhar e enquanto não chatearem, também podem por ali estar. Noutras regiões tibetanas, têm acontecido demonstrações públicas de descontentamento, nomeadamente episódios de auto-imolação de monges em templos. Mas aqui não. Tudo tem estado relativamente calmo; e por isso mesmo, o pão que a mulher elabora não deve ter rugas de tensão.


Mas enquanto não há pão, cria-se agitação. Como a chuva parou, inventa-se o passeio, só mesmo para sentir este ar puro da montanha e mergulhar os pés no verde da erva. Um pequeno percurso até ao topo de um montículo aguarda-nos e a guia será a filha do casal, uma jovem que desde que cheguei não deixou o telemóvel por um segundo. Uma túnica púrpura envolve-a e por cima dela, um kispo da mesma cor. Pelo menos, faz pendant. Saimos do yurt e ela aponta-nos o topo do monte que será o destino dos nossos passos. A distância não deve passar os seiscentos, setecentos metros e é linear o suficiente: primeira parte plana até a terra inclinar gradualmente. Este é também um parte da zona de pasto, pelo que devemos ter cuidado não apenas com animais, como com cercas. Nem todos se dispõem ao desafio, somos oitos. O frio arrepia e o vento forte continua constante, logo parecemos múmias. No entanto, entre piadas e boa disposição, os elementos são enfrentados e a nossa guia, negligente para com a sua tarefa, continua vidrada no ecrã do telemóvel. A China não chega cá de uma maneira, mas planta-se de outra. Espertos. A altitude sente-se, mas de fininho e como tal, engreno um passo que me permite distanciar do resto do grupo. Olho para trás e alguns meteram conversa com a jovem; esta mostra-lhes qualquer coisa no seu aparelhinho móvel, que mais tarde me contam ser uma foto do namorado e algumas outras imagens dela mesma em cenários bem mais de veraneio do que este e com bem menos roupa. Estranha como a noção de privacidade se mantém por aqui, embora reflectida de outra maneira diferente. Depois de alguns desvios - porque a nossa guia não guia, é apenas esguia - atingimos o objectivo. Alguns deitam os bofes, mas não dão o tempo por mal empregue, pois a paisagem é incrível. Conseguimos observar um verde que se estende por dezenas de quilómetros, sem grandes elevações, mas num vale articulado extenso, onde ocasionalmente se vêem iaques e cabras em rebanhos e manadas pastando. São reticências num mundo que se nos abre sem finais ou parágrafos, apenas exclamações. Fotografo o que parece monotonia, mas é na verdade uma terra que respira, numa liberdade condicionada, mas ainda assim liberdade. Percebo o apelo de não permanecer num só local, a vontade de expandir o horizonte e descobrir o que existe para lá do limite da visão. A paisagem cria apetite, recusar o sedentarismo é uma maneira de matar a fome. Enquanto bato umas chapas. a dama do telemóvel surge à minha frente, de um lado para o outro. Imagino que procura o melhor local para ter rede. Quando pára, cria um contraste de cores incrível, que lhe é alheio porque só existe o que vê num pequeno quadrado com luzes e pixels. Mas fico com ela numa imagem, e com uma terra que é dos seus pais e que será talvez sua, embora me pareça que a sua cabeça é nómada para outro género de vida diferente daquela que a sua família escolheu como sua e os orgulha. No regresso, ninguém cai. Nem mesmo ela. O corpo, mesmo sem ver, já deve ter criado um piloto automático seguro.

O pão estava óptimo. Mas não nos enche o bucho. Continuamos a precisar de algo mais substancial. De um almoço. Despedimo-nos dos hospitaleiros nómadas e seguimos a estrada dos mil buracos. Não tem tijolos amarelos, mas, como descobrimos uns quarenta minutos mais tarde, vai dar a Oz. Uma espécie, pelo menos. Um conjunto de casas a que hesito chamar de aldeia, sem ruas organizadas, mas claramente com uma população, por muito transitória que seja. São habitações do fim do mundo, ou pelo menos do entroncamento que pode levar ao vim do mundo. Quatro caminho chegam aqui e em qualquer um que a vista repouse, não encontra um fim. É como se conduzissem todos aos infinito, embora saiba que isso não é possível, quanto mais não seja porque acabámos de chegar aqui através de um. O condutor do nosso carro aponta-nos para um casebre, paredes de cimento e telhado de madeira com placas de zinco. Um alpendre exterior está coberto e por isso, alguns homens, com vestimentas que para mim são exóticas, beberricam chá e umas cervejas. Ergo o braço em jeito de saudação e os olhares de estranheza dão lugar à curiosidade sobre a minha figura. Instalamo-nos num espaço interior e após sentarmo-nos à mesas, separados conforme os lugares existentes, tenho vagar para estudar este micro-cosmos. Quase toda a gente tapa a cara, seja com máscaras cirúrgicas ou com panos e lenços. Se não soubesse melhor, diria que entrei na série "Naruto". Chapéus de feltro altos, grossas samarras, casacos pretos e dourados. O tecto em padrão xadrez vermelho e branco, paredes cobertas com um papel saído do século XVI: Mas há televisão e é LCD. Aliás, tecnologicamente nem me queixo, uso a rede wifi mais confiável da viagem até agora. Alguém vem à mesa informar sobre as duas únicas hipóteses de refeição e escolho noodles, naquela que será a minha estreia. Sim, nunca comi noodles e vou fazê-lo pela primeira vez na China. Sou mesmo patrão. Todas as mesas têm pauzinhos à disposição, logo não preciso de me preocupar com isso. Então, a sala pára com a entrada de três figuras, das quais se destaca com naturalidade um homem que só posso descrever como um Johnny Depp chinês. Apolíneo na pose, esplendoroso no guarda-roupa, é um rebelde sem causa na estepe. Quando se senta, fixa os olhos nestes ocidentais que ocupam o espaço. Não mostra qualquer tipo de distância, lida connosco como se lhe fôssemos naturais. A comida chega e já ele aceita pedidos de fotografias. Dez minutos depois, senta-se junto ao Mário e olha-o embevecido enquanto este fala e se explica numa língua que ele não entende. Ainda que não peça isso, domina tudo e acho que até me esqueci dos noodles (recordei-me agora, estavam bons) enquanto observo a cena decorrendo. Isto é uma espécie de Cheers tibetano e esta figura, não sendo empregado de balcão, é o Sam Malone do sítio, concentrando atenções, piscando o olho às garotas. Dono deste fim do mundo, representa o exotismo que encontramos quando abandonamos o caminho seguro e trilhado, quando vamos um bocadinho para lá da realidade. Encarna muito do que me faz viajar, mesmo quando me sinto no poço, mesmo quando me sinto estrumeiro. Pela oportunidade de estar onde o inusitado acontece e não apenas vê-lo através de um ecrã ou ouvido numa história contada.


No regresso a Xiahe, o tempo não melhora e a chuva forte fustiga várias pessoas que caminham no nosso sentido. São peregrinos, que ainda têm umas boas dezenas de quilómetros para fazer, sem qualquer abrigo de permeio. Ainda apanhamos alguns ciclistas também, mais equipados. A minha mente regressa à relação entre religião e dor, mas rapidamente se dispersa na beleza da paisagem, na liberdade da mesma. De como mesmo com aquela dor do lado esquerdo que circula também na minha barriga, é a paisagem que me torna nómada, pelo menos nessa difusa noção que é a alma. Preso a mim próprio, e a pesos que há demasiado tempo me contorcem e estacam, talvez seja nesta busca pela próxima visão que encontro algum tipo de solução para o problema. Não considero isso um motivo suficiente para peregrinar ou me converter, mas pelo menos, é algum tipo de epifania. Buda já devia contentar-se com isso.