quarta-feira, junho 03, 2020

As andorinhas do meu beiral

Andorinhas e os espinhos de Cristo, conheça a lenda - Meus Animais





A identidade da casa onde cresci tem muito pouco a ver com o número que a burocracia lhe atribuiu e mais com aquilo que os anos lhe foram colando. Nem falo de sujidade, ou de uma fuga de cor que obrigado a uma pintura renovada a cada dez anos - e mudando sempre a tonalidade: nasci numa habitação meio castanha e hoje, quando a refiro a amigos e conhecidos como ponto de orientação, tenho sempre tratá-la pelo amarelo. Aquela cor que se afligiria caso todos gostássemos do mesmo, ao que parece. Mas a memória mais frequente, e hábito reciclável, que mais me recordo de associar a este paralelepípedo com memórias lá dentro coladas é o espectáculo das andorinhas em Primavera. Para aqueles que não sabem do que se trata, importa esclarecer que não falo de caminhando na rua, olhar para o azul do céu e observar, em cruzamentos rápidos de negrume com asas, aves que parecendo perdidas, encontram-se sempre no último segundo da curva da vertigem. Desde que sou eu que as andorinhas regressam, todos os anos, aos seus ninhos de barro germinados nas bordas do meu telhado. Na sua ausência, os ninhos decaem e estragam com a passagem do tempo, as transformações do Inverno. Mas nunca os tirámos. Ficam lá, como referência, e elas voltam todos os anos. Não sei por onde andam no resto do tempo. Os ornitólogos falam em migrações para locais mais quentes, portanto costumo encarar sempre o desaparecimento das andorinhas como uma sabática em África. Renovam o bronze, recarregam baterias, são outras durante seis meses; mas todos os inícios da Primavera, as correntes de ar empurram-nas de regresso a Ceira e processo recomeça. Tapam os buracos com terra e ramos, na azáfama do tempo marcado e contado, da biologia perpétua do ciclo da Terra. Existem ninhos de ambos os lados da moradia e portanto circulam a toda a volta neste trabalho. Ouço-as chilrear, a irrequietude de todo um impulso numa voz que nem sequer canta; e nas manhãs, ou madrugadas que se prolongam quando não consigo dormir, é esse trinado que me indica a chegada da manhã. Dentro dos seus ninhos, já com pequeninas crias que de quando em vez metem a cabecinha de fora dependendo dos pais, anunciam que acordam para o mundo e continuam a sua demanda.

O ciclo das andorinhas sempre fez parte da nossa vida. Não são nossos animais de estimações, mas tratamo-las como tal, porque de maneira a que nos fascinem, existe todo o trabalho sujo por trás. Nem tudo é bonito ou admirável. Manter os ninhos implica deixar o telhado sujo e mesmo na ausência dos pássaros, permanecem ali como lembrança. Nem sequer são objectos bonitos, apenas montes de terra castanha clara que à distância e para um olhar menos treinado, quase parecem colmeias. Quando voltam a ganhar vida, os problemas duplicam. Em minha casa, as andorinhas moram por cima da escada que conduz à porta principal e também numa varanda adjacente à cozinha. São, portanto, locais que frequentamos. A presença constante dos visitantes deixa também outros restos da sua passagem, mais escatológicos, que se amontoam no chão. O trabalho de lavar sobrava sempre para a minha mãe, mangueira em punho, pelo menos uma hora de labuta, porque incluía também a varanda principal da casa, defronte da sala de estar do primeiro andar. Dava trabalho, ela chegava sempre cansa e no tempo de calor, pior ainda, a temperatura tremente juntava-se ao trabalho já de si cansativo. Mas por cima dela, o chilrear daquelas balas com asas não a deixava sozinha. Aqueles pássaros sempre foram para mim coisas diferentes. Nos filmes norte-americanos, há sempre a imagem dos traços na ombreira da porta que permitem visualizar a evolução do crescimento dos garotos. As andorinhas são isso para mim. A minha inocência infantil via nelas apenas animais fofos que animavam a minha vida no seu voo, na sua presença, no seu som. Quando comecei a conhecer mais o mundo e a ciência, percebi porque regressavam todos os anos, o que é uma migração, a diferença entre o Verão e o Inverno. Na minha adolescência, onde o calendário escolar se confunde com o civil, elas eram sempre sinal de fim de aulas próximo e férias de Verão. Na tarde quase noite do meu tempo adolescente, sempre que as observava, perguntava-lhes porque se a vida melhora de facto, se o drama acaba, se algum dia uma rapariga vai olhar para mim da mesma maneira que eu olhava para a Scully. Na minha vida adulta e suas migrações, identificava-me com elas e voltar a casa na Primavera encontrando-as sossegava-me o coração e pregava-me os pés bem no solo, como se de facto regressasse a casa. Aprendi também a suspirar quando via famílias constituídas em ninhos e eu procurando incessantemente alguém com quem partilhar a aventura da minha vida. Elas voltam sempre, mas apenas para me lembrar de que andar em duas pernas é mais complexo do que voar em duas asas. Passaram de simples visitas e reflexos da minha mente. O que também quer dizer muito da minha personalidade e onde ela foi parar.

Quando vejo meio metro de gente chamado Beatriz a apontar indiscriminadamente para o céu britando "Piu piu, piu piu", é um pouco como se recomeçasse o processo. Tal como as andorinhas regressam, aqui em casa o encanto por elas vai migrando e regressando também de cada vez que algum de nós ainda consegue olhá-las com o encanto infantil do fascínio. O seu dedinho aponta, as mãos batem palmas, no meu colo ela ri e diz "piu piu, piu piu", olha em redor e acompanha o seu movimento errático. É feliz. Penso em como nada disto se sucederia se nos tivéssemos dobrado à preguiça. se a minha mãe não suportasse todos os anos o trabalho de limpeza, de manutenção, se todos os anos não se dispusesse a aceitar de novo as andorinhas, não haveria Primavera. Quer dizer, havia, mas com menos flores. Para as coisas boas, é inevitável, o esforço está presente. Sem querer suportar a merda e o esforço de limpá-la, não surge depois a reciclagem do sorriso. A felicidade está tantas vezes ligada ao quanto querermos trabalhar para que aconteça e não simplesmente encantos e ténues acasos do destino que interpretamos como sinais ou inevitabilidades. Ser feliz dá trabalho. Que o digam as andorinhas que todos os anos reconstroem os ninhos sem piar nem queixume. Talvez seja de estar a chegar aos quarenta anos, mas é nisso que agora penso quando as vejo. Há quem tente curar a crise da meia idade com carros novos e cortes de cabelo arriscados. Eu interpreto pássaros e escrevo sobre isso. Podia dar-me para pior.