quinta-feira, dezembro 28, 2017

Aquilo em que uma pessoa se mete em 2017


Que estranho ano foi este; e familiar também, ritmos e melodias conhecidas, sins e nãos óbvios, o reconhecimento dos padrões que têm marcado toda a minha vida. Nem sei bem como descrever um 2017 que tantas vezes foi inerte, nem bom nem mau, apenas estava ali, dias para passar até fechar uma cancela e abrir outra. Várias vezes abri os olhos de manhã para mecanicamente me levantar, cumprir uma função e regressar a casa sem grande chama, sem grande apetite. Estar, apenas, e nem sempre confortável ou de poltrona. Se os últimos anos foram uma montanha-russa incrível de píncaros ao nível de Cassiopeia e abismos um bocadinho abaixo do Hades, vivi este ciclo solar na indiferença. Assumi, primeiro sem consciência e depois numa escolha assumida, a morte da Esperança. Ou melhor dizendo, a morte da Expectativa, da possibilidade que qualquer um dos meus desejos fortes se venha a concretizar. A vida é uma lotaria aleatória e planos ou vontades são inúteis. Acho que é isto, a incapacidade de ter o que e quem quero por mais que me desdobre ou que planeie ou que tente. A vida, no fundo: reconhecer em primeiro que nada há e depois gerir o que se tem e vai aparecendo. 2017 foi um passo importante para calar o expectante que existe em mim, que me move os saltos de grande calibre, os gestos tremendos, os sonhos. A ideia é que no final do ano se cale de vez e me deixe viver em paz e sossego.

Um ano de quase pleno trabalho: algo que não acontecia há algum tempo. Deambulações por escolas do Alentejo, do Litoral ao Interior, aulas dadas a garotos maiores e menores, vontades de corrê-los todos a napalm ocasionalmente ou de dar palmadinhas nas costas e dizer "É por aí, agora é seguir" e contentamento por ainda conseguir prender uma sala de iludidos às palavras que saem da minha boca. Ter dinheiro para comprar mimos e planear viagens e poder pegar no carro e esquecer o mundo mau para abraçar o mundo bom. Sentir uma solidão tremenda e aprender que a vida também é isso, nascer só e existir só e um dia morre-se sozinho e lidar com isso é obrigatório. Aprender a diferença entre ser solitário e estar-se sozinho, entender que numa disfrutamos de uma companhia tolerável e na outra intolera-se a falta de companhia. Mergulhos no Verão, caminhadas em estradas de terra, assistir a ocasos solares, vegetar em sofás. A vida pode ser tão banal, tão corriqueira, tão séries e livros e filmes e olhar para o tecto, e isso pode ser bom ou mau, depende da disposição, mas é sempre a morte de algo quando acaba por ser só isso, quando não existe com quem partilhar aquilo que se é. É estranho isto de conviverem em mim quem não está equipado para lidar com pessoas e no entanto precisa de algumas para se sentir realizado nalguns dos seus objectivos.

Voltar ao estrangeiro. Paisagens verdinhas e marítimas, estar invernal durante um pedaço de Verão, conhecer gente e sobreviver incólume, ver auroras boreais pela primeira, e segunda, vezes, cores no céu brilhantes e a sensação de algo único, segundos de plena euforia numa alma morta e mortiça que quer sumir. Uma barragem de fotografias todo o ano, também nessas ilhas do Norte, as Faroe, e na Dinamarca. Tomar uma das mais dolorosas decisões da minha vida e abdicar de quem prefiro, saber que é a atitude correcta, imperativa e ainda assim sentir-me um misto de lama e soda cáustica. Voltar a gostar de alguém em geniais tons de alegria e entender que como sempre, como na história da minha vida, o desfecho só pode ser um e um apenas. Aceitar-me com tremendos defeitos e ver os olhos de outras pessoas que me aceitam com imensas qualidades. Estar neste momento com uma vida de emigrante no meu próprio país.

Não sei o que me guarda 2018. Desconfio e já anotei num papel e se tiver acertado, daqui a um ano cá estou para vos dizer. Como sempre, o ano também vos teve aqui, a sentir comigo, a viajar comigo, a partilhar o vosso tempo com um tolo que escrever baboseiras. Agradeço-vos. Apesar de apagado, não significa que não me iluminem de quando em vez com a vossa simpatia e cuidado. Vemo-nos no outro lado.

sexta-feira, dezembro 22, 2017

As ilhas Far Away 8: As luzes do Norte


Morava aqui em frente, a Aurora, é a primeira Aurora de que me lembro. Gostava dela, enchia a rua de simpatia, sorria para mim e tinha até motivos para nem sorrir muito às vezes, principalmente depois de o filho ter morrido de leucemia, era só uns anos mais velho do que eu, o suficiente para parecermos irmãos de quando em vez. Eu ainda existia pequeno e já associava pessoas a coisas que lia, expressões ou fenómenos, o que o mundo lá fora em vastidão me intrigava na curiosidade sobrenatural que me assolava. No quarto fechado, lia aos montes e é também por isso que hoje passo por experiências sociais desconfortáveis e tenho poucas aptidões a lidar com gente, Num livro, acho que um pequenino guia astronómico, os meus olhos encantaram-se com imagens de luzes fluorescentes brilhando no céu. A foto era tirada na Lapónia, uma Aurora Boreal. Que nome delicioso, Boreal queria dizer norte, mas nem sabia na altura, nem isso nem a lenda dos Hiperbóreos, gigantes nórdicos que supostamente calcaram a Terra algures no tempo. Mas Boreal estalava na minha boca, e a Aurora era a minha vizinha do outro lado da estrada, aquela mulher cujo sorriso também fazia brilhar o pavimento. Sempre que a via, na minha cabeça, as duas ideias ficaram associadas. Anos mais tarde, a Aurora sucumbia a um cancro, ia vê-la às vezes e ainda antes do meu pai, foi a primeira pessoa próxima que vi a esfumar a vida num tumor, talvez de forma ainda mais evidente pois ela estava mesmo careca, um lenço azul de volta da cabeça, mas continuava a sorrir quando lá ia vê-la e sem saber como confortar e tratava-me pelo nome, já na altura eu era precedido pela minha reputação do rapaz esperto e vivaz que lia muito e sabia muito e ela gostava disso, não sei se lhe lembrava o filho, talvez, mas não sei e ela brilhava ainda assim, deitada naquela cama nunca deixou de brilhar.

"Acho que é hoje", olhava o Paulo pela janela. Já sabíamos que estávamos debaixo de uma tempestade solar e que poderia acontecer mesmo o que todos ansiávamos. a Aurora Boreal. No andar de baixo éramos cinco. Sempre que chegava a noite e nos recolhíamos, ficávamos ainda na sala trocando piadas, conversando, partilhando o vício da Internet. Na sala, os assuntos dançavam, viagens passadas, projectos futuros, e sempre que as Faroe se descreviam em desejos, luzes no céu incandesciam todos em terra. Mas elas aparecem lá mais para o Inverno e ainda é Setembro.  "Quando há tempestades solares pode acontecer...", era ínfima a probabilidade, mas o Paulo, cofiando a barba, sorria e era possível pois, eu acreditava e vocês sabem que sou muito pouco de acreditar. "Acho que é hoje" e alapado no sofá, de um salto fui verificar. Um irritante poste eléctrico ofuscava a vista celeste. Já no exterior, continuei a olhar: via-se sobre a falésia mais à frente, um pequeno aglomerado luminoso, de um leite baço, quase aborrecido, espelho de poeira estelar. Não era bem o que imaginara. O Paulo juntou-se-me. "Olha que é capaz de...." e num relance de vista, pensámos o mesmo. "Pessoal, alguém com sono?" Ninguém. "Vamos dar uma volta, é capaz de ser hoje". Rápidos agasalhos e fomos chatear o andar de cima, os nossos restantes colegas de viagem. Já toda a gente de molho, caminha confortável. Ou então, não acreditaram. Há alturas na vida em que ou vamos de passo alargado ou só colocamos a ponta do pé e perdemos o trilho.

A viagem durou um quarto de hora, escolhemos um ponto de observação longe da aldeia. A escuridão total era um saco-cama. Ainda na carrinha, fomos espreitando e a mesma nuvem agora espraiava-se, era menos pálida, alterava-se. À saída do veiculo, o vento era forte, mas suportável. De luvas postas, gorro bem enterrado na cabeça, já me contentava por poder ver aquele céu polvilhado que só se captura no meio natural intocado. São lanternas longínquas, mais do que as minhas batidas de coração num dia só, e todas palpitam também de alguma maneira. Ocasionalmente, estrelas cadentes traçavam impressionantes impressionismos na cúpula cósmica. Os meus colegas centravam-se na expectativa aurórea, mas eu guardava para mim aquele tesouro brilhante e multiplicado. A passagem dos minutos alterou também a minha atenção e no teatro nocturno um novo espectáculo entrava em cena. Começou muito subtilmente, uma ou outra cor diferente, quase ilusão. Pensei ao início que me estava a sugerir, que não via, mas era apenas uma via para me enganar e pensar que era uma olhada falsa. Estava a contar a mim próprio como real aquilo em que acreditava, e tantas vezes o faço. Mas os meus colegas também o viram: estava lá, tornava-se. Depois, pontos formaram linhas, passando de um lado para  outro e violetas tornam-se vermelhos, depois um pouco verdes, depois voltam a violetas e linhas direitas ondulam e desaparecendo, formam-se noutro ponto e assim tudo decorre como se o universo jogasse aos dados.

É difícil descrever uma Aurora Boreal, até porque o que vemos com os olhos é diferente das fotos. As pupilas humanas apenas captam uma fracção do espctro luminoso, enquanto as lentes fotográficas capturam o restante, que é aquilo que abre a boca a todos quando vídeos ou imagens do boreal deslumbre se cruzam com o seu apetite. A realidade não é bem aquela, aliás o que se vê é tremendo e único, mas a fotografia cria uma ilusão e isso torna a minha experiência ainda mais especial, pois estive lá e sei o que é, como é. Quem nunca viu, fica com uma fraude falsificada e plastificada, como um evento que sofreu uma operação de cosmética. Viajar é bom por isto, porque se existe enquanto decorre o que é verdadeiro, está-se lá no local, vive-se a sério com o frio a apertar, o blusão bem cerrado, os dedos encolhidos dentro das luvas, os dentes doendo, o mar que se escuta e o tremendo silêncio nas folgas do vento. Por cima de nós, a verdadeira Aurora que se engelha e depois some como um lençol que se sacode. Às vezes, escuta-se um som metálico, vibrante, muito ténue e que o ar remexido embala em difusão. O mais belo está na cara de quem assiste e reparei nisso, não é tanto admiração mas espanto engarrafado, querer rebentar de alegria mas não poder. Sorríamos uns para os outros, uma ou outra piada, mas o silêncio de quem assiste à Natureza em improviso. Os ciclos naturais repetem-se, no entanto o espectáculo é sempre diferente e aqui, nestas ilhas perto do Círculo Polar Árctico, a produção é artesanal e excelente.

Enquanto as cores dançam no céu em mazurka fogo, espasmos das estrelas ou simplesmente um céu que sem poder tossir, vibra e exulta o poder do que nos é superior em tamanho e cabimento, afasto-me um pouco de quem me acompanha e estendo-me no chão relvado que nos sustenta. Não está molhado e portanto, mãos debaixo da cabeça, banqueteio-me. Não esmaga, aquilo que vejo, mas sinto-me assoberbado. Não pensei que estaria a ver esta raridade, algo que todos sempre me disseram ansiar, "Adorava ver Auroras Boreais", e tenho uma amiga na Noruega e nunca as viu, e um casal meu amigo foi à Islândia e nem lhes pôs a vista e eu aqui, nas Faroe, fora dos cálculos normais de magnetismo luminoso, tenho esse prazer. Sortudo que sou, repetirei a experiência uns dias depois. Passo o tempo todo a amaldiçoar-me e à minha existência, mas há ocasiões em que o meu fardo se esquece que deve pesar e sou abençoado com beijinhos de ventura. Ali na horizontal, enquanto me capto naqueles mantos irreais de cores várias, um quadro de Chagall tornado real, lembro-me da Aurora, a minha vizinha. Saio de mim e da razão e procuro um fantasma, não como espírito de mortos, mas como algo imaterial que só pode existir se acreditar mesmo muito e imagino, melhor sinto, vejo mesmo, a Aurora nas Auroras. As luzes só podem ser o seu sorriso, o som metálico é a aprovação da minha pequena felicidade, cada agitação a Aurora cheia de saúde de um lado para o outro enchendo novamente a rua do que é bom e daquilo que só as pessoas de boa vontade têm. Ela deve estar ali, não existe Deus, mas as pessoas vivem de alguma maneira, certo? Enquanto pensarmos nelas e acreditarmos e existir em nós a simples capacidade de abrir a boca de espanto, atónitos de genuinidade.

Quando daqui desaparecemos, tornamo-nos em algo mais. Talvez seja composto orgânico, talvez pó, talvez alma. A Aurora virou Aurora, o que calha bem: era a melhor pessoa que conhecia a ser Aurora e não imagino melhor prémio na vida do que nunca deixarmos de ser aquilo para o qual nascemos.

quinta-feira, dezembro 14, 2017

As Ilhas Far Away 7 : Visita a Tórshavn


Então, algures no século IX, uns Vikings altos e brutamontes chegaram a uma península, a de Tinganes, e pensaram "Vamos montar aqui um entreposto de cenas". Barracos ao alto e na altura de baptizar, recorreram a alguém que estariam longe de pensar que alguma vez pudesse exprimir-se com sotaque australiano: Thor. Ali descansava uma baía, bem boa para atracar o drakkar, e tudo junto, ficou Tórshavn: a baia de Thor. Muitos séculos e transformações históricas depois, ainda lá paira. Treze mil habitantes, a capital do arquipélago (e quando pedes que te falem sobre as ilhas, os faroeses dizem sempre "Oh, my country...", como se não pertencessem à Dinamarca e fossem mesmo independentes... Fazem dos madeirenses uns meninos do separatismo) e basicamente um porto de mar com umas casas agarradas. Podes chegar aqui de barco, camioneta e até helicóptero, e se viveres num ponto isolado destas ilhas, Tórshavn significa entretenimento, com os seus cafés e restaurantes que cabem bem em duas mãos de dedos. Quando visitamos a cidade, é para saber o que significa movimento faroês e que paradoxo evidente: as pessoas não surgem, apenas um ou outro transeunte passeando o cão. O clima põe-se frio, mas aguenta-se, e o mar sustenta barcos que tombam de cá para lá, um berço de coloridas embarcações e também das brancas monocromáticas. O chilrear das gaivotas soa menos irritante quando o sol se põe e o reflexo das águas é brilhante.


Um passeio junto ao porto traz-me um cheiro esperado, o de óleo de motor misturado com peixe. As casas são coloridas, despojadas, geometricamente desenhadas com triângulos sobre rectângulos, janelas múltiplas, um destaque para os olhos. Na água, medusas roxas passeiam-se em todos os cantos, atraídas talvez por restos de comida. Há vários edifícios do século XIX e esta é claramente a zona histórica da cidade, e alguns pormenores são uma delícia adocicada, como uma caixa de multibanco dentro de uma pequena casinha de madeira rústica e pitoresca, torneada de azul e amarelo. Caminhamos junto ao mar e mais habitantes surgem: um par de garotas circulam em bicicleta e estacam juntos a umas rochas, desafiam-se, saltam e não caem à água. O cabelo é mais louro do que uma seara, mas sem vento, a seara permanece parada.  Quando entramos nas ruelas, os séculos vão recuando e ao passarmos por uma zona onde todas as casas são encarnadas, um letreiro anuncia que estamos precisamente no ponto de origem de Tórshavn, o bairro de Tinganes. Há aqui casas com mais de 500 anos, com tectos de relva. Num deles, encontro uma ovelha que pasta alegremente. Isto no meio de uma capital europeia. É impossível não sorrir. A cidade velha é labirítinca e escura, agora que o sol se pôs e a noite nos invade. Os andares mais elevados permitem passagens e aberturas que por vezes nos deixam espreitar a baía, mas apesar das ruas largas, o chão de pedra e as moradas próximas fecham-se sobre mim e se ao início me sinto apertado e capturado, lentamente acho catita esta pequenina aldeia mesmo no interior da anã cidade, como se fosse um pequeno coração que guarda um tesouro de sangue faroês. A madeira das paredes é encarnada cobre, forte, o bairro vai-se transformando nas paredes de um coração e passo de um ventrículo para outro. Os passos acumulam-se e cruzo-me em ocasião com alguns colegas de viagem, que fotografam como eu. Cada rua é o seu passado, em semelhança e os momentos são uma repetição em ciclo É estranho, como se Tinganes fosse um loop e em simultâneo, uma imitação da Terra Média, cada casa uma morada em Hobbiton.


E assim de repente, é hora de jantar. Os restaurantes em Tórshavn são pequenos e caros e estão cheios, uma tripla combinação inimiga da fome. Depois de alguma voltas, paramos no Sirkus, uma espécie de buffet internacional. Ainda rondámos uns restaurantes locais de bom aspecto e comida a puxar à modernice, mas os preços, por agora, assustam-nos. Opta-se então por algo acessível e com uma ementa alargada o suficiente para que agrade a todos. O interior é algo despojado, mas convidativo, largas janelas deixam ver a baía e a música ambiente é tão inofensiva quanto um cruzamento de André Almeida. São bem jovens as moças que aqui são empregadas de mesa, não sei se alguma delas terá 18 anos. É o pesadelo da Autoridade para o Trabalho, mas em qualquer estabelecimento do género onde paramos nos dias seguintes, parece ser prática comum. O esparguete à bolonhesa é a minha escolha, mas há comida latina, asiática e até mais faroesa para quem se quiser atrever. Nunca aqui estive, mas tudo me é familiar. Não sei o que raio fazem os nórdicos com a arquitectura, mas resulta, como é que um povo com fama de frio consegue criar espaços interiores que nos fazem sempre sentir acolhidos. Nem me apercebo que terminei a minha refeição e todos se preparam para regressar à base de operações. Pagamos e deixamos gorjeta. A rapariga que recolhe sorri, agradece. Mais tarde, está à saída para nos dizer adeus e subtilmente faz um aceno e pisca-me o olho, deve ter uns 15 anos, talvez 16 e sinto-me imediatamente criminoso. Encolho e penso em como sou professor às vezes e isto é errado, mas que fazer? Agradecer, sorrir e seguir. O charme dos cabelos brancos, afinal não é mito, mas estes são também sinal de maturidade. Dizem. Nunca a senti.

Estrada fora rumo a Eidi, penso nisto e na minha ideia, chegar a casa e alongar-me na cama é o melhor dos tónicos. Claro que nesta altura não fazia a mínima ideia que nessa mesma noite estaria estendido sim, mas sobre a erva, com as estrelas por cima de mim e bem instalado a ver a primeira aurora boreal da minha vida.


quarta-feira, dezembro 06, 2017

As Ilhas Far Away 6: Pausa em Gjogv



Mesmo no meio das turras que tenho em permanência com a Vida (assim, em maiúsculo, como se fosse alguém), há um ou outro solavanco que me faz saltar um pouco e gostar, assim como quem finge birra, do que se passa. O meu preferido é talvez a pausa antes do beijo que algures no corpo apaga aquela luz ténue para acender uma galáxia; a seguir, mas muito próximas em estima, estão as pausas, aqueles momentos em que nada parece acontecer, mas no fundo tudo se dá e só reparamos ao fim do dia, estendidos na cama, se tivermos o trabalho de rebobinar os pormenores por maior que seja o sono. Sente-se sempre a pausa, o planeta abranda um pouco, as cores como que se ouvem até, sinestesia total e um silêncio em plena respiração, olhos que finalmente bebem a terra e a água, a sensação total de inexistência por opção de fazer parte do Grande Todo. Em Gjogv, discorri um desses transes, no interior da "Gjaargardur", uma guest house e café bem agradável do qual se pode observar verde e cinzento. Ao longe, abstraindo-me o suficiente, consigo escutar o mar, o irmão mais velho das Faroe. Gjogv é essencialmente uma vila piscatória quase deserta, não devendo ter mais do que 200 habitantes. Deve o nome a uma garganta em falésia que serve de impecável porto de abrigo. O momento alto deste local aconteceu em 2005, quando os príncipes herdeiros da Coroa dinamarquesa, certamente fartos de bicicletas e cafés da moda, agraciaram estas colecções de salitre em duas pernas com a sua Real presença. Dois velhotes fizeram um favor à princesa e instalaram um banquinho num ponto perfeito para se ficar sem fôlego da vista, mesmo quando são os pulmões a funcionar. As ondas, quando fustigam a rocha, falam connosco e o banco ficou com o nome da princesa, Mary, pois esta foi a primeira pessoa a sentar-se. Se pensarmos bem, é uma honra ao mesmo tempo irrisória e épica, pois quantos de nós se podem gabar de ter tornado algo histórico com o simples acto de alapar as nádegas?


À minha frente, na janela, uma bandeira faroesa esvoaça e os vidros dançam rumba nos seus caixilhos. O vento abusa da velocidade e os meus companheiros de viagem também se instalaram no aconchego deste café. Bebo um chocolate quente, uma tradição local a que ganharei gosto nos dias seguintes. Quando me perguntam porque gosto de locais estranhos e onde ninguém vai, é por isto Nunca percebi quem se encafua num carro e alegremente se entrega à tirania da multidão em estradas e praias, quem se mete no avião e no pico alto das viagens é prisioneiro de grandes capitais, de destinos turísticos batidos, onde não existe qualquer oportunidade para se desfrutar da prazenteira arte do silêncio e de cair no ardil da paz. Só vejo montes e não me apetece saber se sou do seu tamanho, do meu ou do que a vista alcança. Sei que me sinto aqui, sinto-me mesmo, sinto-me parte de algo, sinto-me parte de mim; e quando na correria nos deixamos para trás, perdemo-nos aos poucos, migalhas e poeira, o quotidiano como um espanador. Aqui estou bem e o único som em mim é o do chocolate quente escorregando pela garganta. Verei ainda até ao fim do dia paisagens incríveis, cascatas e aldeias escondidas, atalhos pela rocha, lagos temporários, mas é isto que guardo e sobre o qual me apetece escrever nesta crónica. Sobre mim, mas nem tanto o que sou ou o que sofro, mas como estou apenas e só comigo, sem nada mais a preocupar. Eu e o calor de uma bebida, desconhecidos que me rodeiam mas sem fazer ruído, a pouca importância dada a quem partilha o espaço não porque sejam insignificantes, mas porque este momento não é seu: o egoísmo não tem de ser errado.


Quando o chocolate quente acaba, existe Gjogv apenas e percorro-a nos caprichos da ventania. Observo, agora mais abrigado, o local onde introduzi os meus companheiros de viagem ao meu bom velho amigo, o atum, que me proporcionou aquele almoço habitual de quem não se quer perder em labirintos gastronómicos que podem ser fatais. Consigo observar a pequena igreja e o outro café da aldeia, um barraco que não é muito mais do que uma cabine telefónica, mas onde, ainda assim, o convívio tem espaço. Um pouco mais abaixo, uma mercearia, que funciona como Posto dos Correios cinco dias por semana, mas apenas meia hora de manhã. Na rua, ninguém, só mesmos os elementos naturais. Até a chuva, quando cai, parece fazê-lo simplesmente por tédio. Não me aborreço, conheci Gjogv em menos de meia hora, encontrarei locais bem mais bonitos e cativantes em todas as Faroe e esperam-me arrebatamentos pulsantes de luz, mas enquanto me esforço para escrever sobre tudo isso, sobre a excitação e a alegria, é àquele momento de paz que regresso uma e outra vez, principalmente quando em ocasiões que são ladras, me afundo naquilo que me me consome o pensamento sem devolver o que seja, só dor, só rugas, só turbilhão. Mas naquele café, nada disso existe, só o que é bom. Nesta aldeia cujo nome não sei pronunciar, há uma paz que não se sabe encontrar e cuja explicação se torna impossível de armar com letras.


Tentei. Estou em paz com isso; e tudo o mais, guardo num bigode de natas refastelado na minha cara, como quem acabou uma gulodice e se transporta para a vida que decorre enquanto parei. Espera-me Elduvik e depois Thorshavn, a capital. A mudança soa grande, mas na escala Faroesa, muito é sempre pouco e o burburinho ouve-se apenas nos interstícios da calma.

quarta-feira, novembro 29, 2017

As Ilhas Far Away 5: Funningur


É uma serpente, a estrada. O mar acompanha-a, em cada curva e silvo, pouco azul e demasiado cinzento, um espelho que reflecte o céu. As Ilhas Faroé, à luz do dia, revelam uma pintura de duas cores, verde molhado e fresco, forte e inebriante, sempre presente em domínio do olhar; e um cinza alado, tapando o sol e tudo o mais, policiando o nosso olhar que pode bem procurar o bom tempo, mas nunca o encontra. Em Portugal, deixámos sol e calor. Neste arquipélago quase polar, fomos recebidos por vento forte, chuva ocasional, temperaturas que apertam os casacos. Começou cedo, o dia. Há que aproveitar as horas e o plano hoje passa por percorrer a ilha de Estremoy de uma ponta à outra. No banco de trás, a paisagem afaga-me e o interior do carro, onde somos cinco, é preenchido por conversa ocasional e acima de tudo, a rádio local, pródiga num estranho tipo de country nórdico cujo idioma não identifico. Parece norueguês, mas não garanto. As escolhas musicais faroesas dividem-se entre esta melíflua e pungente cantilena e também tudo o que é canção anterior ao ano 2000. Tipo M80, mas sem ter de aturar promoção a concerto dos Scorpions com a "marca M80". O Paulo vai contando das suas viagens por aqui, o roteiro que elaborou e os pontos de fotografia potenciais. Chover atrapalha, mas não estraga.


Apesar das esplêndidas cascatas onde paramos pelo passeio, da erva que como um cabelo achatado cobre os montes e as falésias, o primeiro ponto que me impressiona é Funningur. É uma aldeia entalada num fiorde, um braço de mar que se acotovela em terra buscando de gente. De um ponto alto, conseguimos ver casinhas mesmo pequenas na boca aberta da estrada serpente em balanços e retorcidas curvaturas, uma estrada que não é de tijolos amarelos, mas sim alcatrão prateado da água. Quando chegamos, há um silêncio que é assustador de início. Procuramos e ninguém se apresenta na rua. Estas são estreitas, encaminham-se para o mar e cada casa de madeira é um mistério de solidão. À volta, as sempre presentes ovelhas garantem um qualquer tipo de vida, mas nada em duas patas nos saúda. No pequeno porto de abrigo, fotografo o mar e pela lente, observo um pequeno cemitério que rodeia uma humilde e muito austera igreja. Feita de pinheiro e branca, não apresenta nenhuma outra decoração que não uma cruz solitária que no topo, vigia mais a aldeia do que a protege. Uma porta aberta convida-me e o vento e a chuva somem num qualquer local dos meus ouvidos, um silêncio gabardine empurra-me para o interior. A promoção religiosa é mínima, um sinal convida a deixamros o barulho onde ele merece estar, fora de nós, e tons sépia banham a nave central. Que pequena é, para servir a aldeia não precisa de mais. Tudo é em madeira, bancos e altar, decorações esculpidas, móveis utilitários. Reparo então num velhote que em silêncio, quase fundido com uma das paredes, vai envernizando um do banco corrido. Meio abananado, pergunto se posso estar. Sem sorrir, mas com o ar bonacheirão que apenas se pode encontrar nos que se focam num qualquer ponto em si para fugir da azáfama do mundo, anui, sem falar uma palavra de inglês. Ao mostrar-lhe a máquina, convida-me a estar como em casa, com um gesto de mão e braço.



A minha relação com Deus é... queria dizer nula, mas não sou materialista. A versão católica é um pouco como um personagem mal escrito em dois argumentos diferentes, mas com o tempo aprendi a aceitar que cada um crê no que quer, se for feliz com isso. Nestas ilhas, é-se luterano em maioria, gente muito rígida. Não é à toa que o cinema nórdico se pervade de uma moral forte e rigorosa, de pessoas cuja consciência ressoa badaladas de um sino de pecado. Este templo despojado, a relação entre pescadores duros, rudes homens de simples hábitos, e uma natureza que convida ao desespero existencial e à clemência perante o Cosmos, puxa-me a sentar e faço-o, sem medo nem preconceito. Não sou o único. Alguns dos meus companheiros de viagens também o fazem. A luz escasseia e pequenas lamparinas atificiais oferecem pontos de referência para os olhos, mas não vemos nada. Se alguém pediu a divinas entidades respostas ou saudações, não chegaram. Só o velhote lá continua o seu trabalho, de vez em quando mirando os visitantes inesperados. Limpa as mãos ao avental, que protege uma camisola de lã azul, e talvez se interrogue o que nos leva a visitar igrejas. Nada, se calhar, ou então a monotonia de Elduvik destacou ainda mais o edifício. Não me fascino. Quando saio, percorro as campas que rodeiam a igreja, quase todas recentes. O mar bate nas rochas e chega a encharcar uma, dominada por uma cruz de ferro ferrugenta e salificada. Bela vista para um morto, penso enquanto fotografo. A aldeia não está morta, mas é como se estivesse Como se o mar, única testemunha, fosse a outra casa, como se os faroeses fossem um povo de tritões que durante o dia regressa ao seu elemento e à noite volta a terra para cuidar das ovelhas, guardas do seu cioso património de simplicidade. Quero imaginar isso, que estou aqui junto ao mar e algum vai sair e saudar-me, mesmo que rudemente, que reentra em casa e lá dentro uma panela ao lume puxa num caldo de peixe a oportunidade de sentar e numa conversa ficar maravilhado com as descrições do fundo do mar.


Aldeias sem gente perturbam o cérebro, convidam-no a preencher espaços em branco, histórias que não existem mas que forçosamente devem aparecer, como se não tolerássemos, neste mundo agitado, a ausência só e pura. De fora do meu corpo, vejo-me como um ponto na imensidão marinha, rodeado verde, um boné enorme de cinzento que chega até onde os meus olhos perdem a meada do fio do horizonte. Não se está mal e a solidão é apenas uma maneira de garantir a companhia do que mais conta e do que mais preenche. Começo a perceber o velhote que se embeiçou por vernizes e madeiras sem prestar contas a ninguém.

terça-feira, novembro 21, 2017

Ilhas Far Away 4: O urso chega ao Círculo Polar


A onze mil pés de altitude, o mundo é uma cama. A tentação é dormir, mesmo não estar deitado, mas se não sou pássaro, se as únicas asas que ganhei são metafóricas e roubadas a um beijo, fechar os olhos é pecado por negligência. A altitude é um ponto de vantagem privilegiado, tudo se vê e tudo se alcança. O sol escorrega lentamente, como se o horizonte vestisse cola com prazo de validade limitado, e a tarde chega ao fim em tons de folha seca. Entre a Dinamarca e as Ilhas Faroé, o mar é a realidade, ocupando a cama, alagando-a, apenas permitindo que ocasionais rochedos ilhéus quebrem a sua consistência. Serve de espelho, mas mais do que isso, serve de olho do mundo, um olhar que brilha um pouco como o meu na antecipação de mais um território desconhecido. Viajar de avião nunca me deixou confortável, talvez por demasiado tempo a ser primata de pés no chão, mas esta paisagem arrebata-me, é um golpe de mão mágico, este de me colocar no céu para assistir ao seu processo. Nos ouvidos, num completo acaso, escuto "No surprises", tema dos Radiohead que sempre associarei a uma surpresa cujo nome brilhou em mim como este sol, e a memória mistura-se com o movimento solar, com o ocaso deste dia no acaso da canção. Thom Yorke vinca que a pequena banalidade é romântica e que as convulsões do mundo não interessam quando abrimos a gabardine mostrando que as surpresas só existem nos interstícios das esquinas dos dias. Mas aqui, no céu, não há esquinas, nem curvas, nem esguelhas. Existe o sol que se põe, as ondas disfarçadas por baixo e um avião que, segundo o ecrã de informação, se aproxima rapidamente do arquipélago que procuro. Este surge por fim na minha linha de olhar: primeiro uma ilha, depois as restantes. Umas são bem grandes, outras meras amostras residuais de rocha. Vejo lagos e pequenos montes, estradas rasgando o verde, falésias a pique onde a espuma marinha rebenta e grita ordens. É o meu primeiro contacto com este rebanho que se perdeu entre a Islândia e a Escócia e à medida que a escuridão toma conta das horas e o avião inverte por completo a rota para abordar a aterragem, sinto aquele formigueiro estranho de infância, quando saí ao intervalo da Primária para comprar peta-zetas na mercearia do Ti Júlio nas Vendas: o raio dos doces crepitavam, mas mas não tanto quanto a antecipação.

A altitude diminui drasticamente entre gargantas de rocha, o avião atravessa-as certeiro abandonando as nuvens (que são bem baixas por aqui) e o breu é completo, insofismável. Lá ao longe, as luzes do aeroporto asseguram-me que não atravessei dimensões e ainda me encontro por este planeta. As hospedeiras, talvez das mais antipáticas que encontrei num voo comercial, riem e conversam e tudo é normal, são faroesas, sabem bem que nenhum troll ou demónio marinho impedirá este avião de nos entregar ao solo com todo o conforto que elas tanto se esforçaram por não nos proporcionar; e quando saio do avião, sinto frio, sinto vento, sinto-me terrestre. A escuridão é ainda mais intensa respirada no solo. Entre a pista e a saída do aeroporto, não são 150 metros. Pequeno é favor e a realidade que conhecerei na próxima semana, uma comunidade onde a noção de tamanho é proporcional ao que dele se necessita. Práticos, estes nórdicos. Formalidades tratadas, malas resgatadas e o grupo divide-se por dois carros alugados para rumarmos a um qualquer sítio onde se possa dormir. Toma-se conhecimento pela primeira vez das serpentes de alcatrão das Faroé, estradas que contornam os fiordes e espreitam um mar que não se vê à noite. Olho o céu, consigo ver tanta poeira de estrelas que tenho a ilusão de ter ficado turvo da vista. Não consigo parar na minha mente, quero começar a absorver e sou incapaz, porque procuro tudo de uma vez sem saborear o que aos poucos me aparece. É assim que funciono, é por isso que nunca ocnsigo ser mesmo feliz também. A preocupação do amanhã desassossega-me mais o corpo do que a convulsão banho-maria de um sorriso hoje; e aqui, onde tudo parece mais lento, onde tudo é, de facto, um relógio a quem proibiram de respeitar o tempo contínuo, noto-o ainda mais.

O carro mete então por uma... rua, vá lá. Há um punhado de casas, alguns barracões, um tosco e artesanal porto de cimento. Quando paramos, ouve-se com clareza o vento a esbofetear o carro. Mandamos piadas sobre o calor e o Paulo sai, em busca da dona da habitação onde nos instalaremos. Enquanto isso, saio e mesmo à noite, distingo contornos de um monte e uma ilha mesmo em frente, ao meu lado o mar dividindo-nos. Uma luz solitária de um poste luminoso dá a tudo um ar de "O exorcista" e sinto-me também possuído mas não por demónios, antes tomado numa experiência fora de corpo que me conduz o volante sempre que viajo. As Faroé não são tão alienígenas quanto o Quirguistão, consigo entrever os meus dias além também aqui, mas não é, de facto, o meu sítio. Sou tão preso a tudo que às vezes irrita e nem quando o prazer do deslocamento é total e demolidor consigo deixar de ser tão eu. Tem dias que me frustra, Hoje, aqui à beira do mar, os elementos totalmente mudados e o céu em trezentas bóias luzentes, só penso. O regresso do Paulo faz-me voltar a tudo e a ser parvo e humorístico, no que se pode considerar humor. Estamos todos cansados, vamo-nos conhecendo e rapidamente nos dividimos por dois andares da casa. O meu corpo acompanha tudo isto, a minha mente permanece à sombra daquela luz, molhando os pés no mar, procurando-se no que não conhece. Nunca chega a encontrar nada, mas pelo menos entretém-se.

quinta-feira, novembro 02, 2017

As ilhas Far Far Away 3: Copenhaga


Um sótão em Copenhaga é um local talvez demasiado trendy para se acordar de manhã, mas foi assim que começou o dia. Por uma janela colocada no tecto, a luz espreita-me os olhos e as manhãs em Copenhaga são assim, um sol tímido entre as nuvens, o refastelo na cama e na brancura do quarto, do espaço, a ideia de visitar uma cidade sobre a qual só li uns bitaites. Encaixam-se ali quase oitocentos mil habitantes, o que num país que tem pouco mais de 5 milhões de almas é apreciável. Desde o século XV que é capital da Dinamarca, fundada quinhentos anos antes, mas uma grande parte da sua arquitectura é posterior ao século XIX, quando foi reconstruída após um pequeno desaguisado com os britânicos; e quando me meto num táxi para reencontrar os meus colegas de viagem, a cidade observa-se como um pequeno filme documental, as influências neo-clássicas visíveis no uso abusado de um tijolo escuro, pouco vermelho, com um desenho de linhas direitas, mas usando o ferro como referência. Copenhaga é um misto temporal de séculos, a era industrial encontra as transparências e reflexos da arquitecura contemporânea, utilitária, simples, prática, mas sem nunca desrespeitar o espaço. Agrada-me isto na capital dinamarquesa, esta noção de cronologia da alma urbana, a ideia de avançar mas sem rasgar com o que a constrói e faz, a certeza de que um espaço sem memória ou alma está morto, mas que um conjunto de edifícios pode mostrar a sua vida. Volta e meia, o taxista (indiano, como todos os que encontrarei por aqui) vai perguntando direcções, como se soubéssemos nós o melhor caminho para o destino. O Paulo fala, mas volta e meia olha para mim como intérprete de inglês.

Lá chegamos. No grupo de despertos turistas portuguesas, recebo um abraço do António e da Teresa Gil, companheiros de outras expedições à Ásia Central. Enquanto rimos, a recordação do Quirguistão está presente, damos por nós gracejando com a nossa opção urbana desta vez, de como aquele local dentro e fora deste mundo em simultâneo é tão diferente, mas nunca no sai do berço da língua. Ambos chegaram no dia anterior e já cirandaram pela urbe. O prazer da visita é óbvio e conseguem fazer até um roteiro de locais usados nas séries dinamarquesas transmitidas pela RTP2 . O edifício usado como esquadra de polícia de uma delas é mesmo à porta do hotel e passamos por ela antes de começarmos o roteiro. Caminha-se com gosto pela cidade, os passeios são largos e um pormenor destaca-se logo: vias para bicicletas bem definidas, com as suas regras e sinais de trânsito, semáforos incluídos. Ibéricos que somos, é fácil esquecermo-nos que existem e nalgumas alturas, quando tento tirar fotos, um conjunto de urros assertivos arranca-me da concentração do olhar e é um ciclista, que me vê um pouco como os lisboetas vêem os turistas, enquanto obstruo a via. Copenhaga pertence tanto aos carros como aos velocípedes, os peões arranjam o seu nicho nas praças e nas pequenas ruelas onde nem um nem outro se cruzam. Passo pelo Ny Carlsberg, um museu de escultura criado pelo filho do fundador da destilaria Carlsberg (cujo museu é aqui perto também), onde pontifica também alguma pintura impressionista francesa e dinamarquesa; antes de atravessar a estrada, descubro os Jardins Tivoli, que são o segundo parque de diversões mais antigo do mundo e o mais visitado actualmente em toda a Escandinávia. O entretenimento pinta-se em cores garridas e motivos estilizados, por trás de grandes e sebes entrevêem-se montanhas-russas e rodas gigantes., para além do Dragão, da Aquila  e do Dyrekarussellen, uma atracção que está aberta desde 1920! O nome é facilmente reconhecível e inspirou o baptismo de outras salas de espectáculos e hotéis em Portugal. 


Um dos principais pontos de interesse é a Rundetarn, um antigo observatório astronómico que possui a distinção de ser o mais alto edifício do mundo sem escadas (bem, tecnicamente). Sobe-se quase tudo numa longa rampa que vai dando a volta à torre. Cola-se a uma igreja e do interior, podemos observar a sua nave central, e também uma biblioteca que serve de museu. O principal, no entanto, está no seu topo, onde uma dominadora vista pelas cabeças de tijolo e betão de Copenhaga é bem agradável. Destaca-se no imediato, ao longe na fusão com o azul do céu, uma longa ponte, a Oresund, que inspirou a série "Bronn". São oito quilómetros de faixa viária e caminho de ferro que nem a capital dinamarquesa a Malmo, passando por debaixo do mar a certo ponto. Mas o colorido das casas, os pináculos neo-clássicos das igrejas e a oportunidade de apreciar a capital de cima são ponte para outros prazeres. Depois de descermos, rumamos de imediato a Nyhavn, a famosa rua portuária de Copenhaga, com o seu arco-íris de casas, um canal quase totalmente obstruído por barcos turísticos, outros com uma falsa autenticidade e um cheiro a óleo permanente. A rua estende-se até à praça do Teatro Real e é um local ainda assim estranho, onde se cruzam imitações do século XVII e uma antiga fábrica que virou instalação artística dedicada aos emigrantes que morrem no Mediterrâneo: cada janela, e são dezenas, vomita coletes salva-vidas cor-de-laranja, como se o espírito das vítimas se abrigasse ali, onde lhes dão um asilo sentido. 

O caminho vai alargando e um passeio marítimo vasto oferece uma vista imensa sobre o mar aberto, uma paz quebrada apenas por uma fábrica de reciclagem soprando um fumo branco que contamina a paisagem. Combinamos entre todos que é obrigatório ver ao vivo a famosa estátua da Pequena Sereia, mas antes fazemos um desvio pelo Palácio Real de Analienborg, onde está para acontecer o render da guarda. Soldadinhos com fato azul escuro parecem perguntar uns aos outros autorização para beber um café, sem pompa e na circunstância sinto que é melhor admirar antes a praça de traço Renascentista onde tudo isto decorre. Devo admitir que me impressiona mais do que a famosa estátua a que aludi atrás, um anão de bronze que não deve medir metro e meio. O seu principal encanto é talvez a localização e originar um divertido jogo onde fazemos apostas sobre se afoitos turistas que se aproximem demasia para tirar uma selfie, e para isso têm de saltitar de calhau molhado em calhau molhado, tombam na água para assim sim, nos darem algum contentamento. Não acontece, mas por duas vezes torcemos com malícia pela desgraça alheia. Um costume da cidade, aparentemente, é mutilar a estátua regularmente, uma catarse para os habitantes de Copenhaga que não entendem por certo o afã dos visitantes em relação a algo tão banal e mundano. Ali ao lado, observando uma ilha artificial em forma de estrela, a fonte de Gefion enrijece os seus músculos perante a Igreja Anglicana de St. Alban, a água jorrando com violência, garantindo a manutenção da virilidade escandinava no nosso imaginário. 


Apesar de capital, Copenhaga até é pequena, acolhedora e regressamos ao ponto inicial. Antes, desenrascamos um almoço. No meu caso, é numa feira de rua, um mercadinho onde várias bancas vendem comida do mundo: frutos secos italianos, fish n'chips britânicos, um toque de caril indiano e eu opto, na minha pouca apetência por aventura gastronómica, por um singelo esparguete à bolonhesa. Sai-me a 15 euros do bolso e sim, é carote, mas já com coroas dinamarquesa na carteira (e o cálculo de conversão para euros bem sabido), admiro em redor a qualidade de vida, o tom informal da pessoas, gente que veste fato e vai de bicicleta para o trabalho, onde se vê pouco lixo no chão e um sentido de humor corrosivo nos cartazes de espectáculos, onde Mads Mikkelsen não surge, mas é possível ver uma genuína vontade em desenhar e mudar, onde se observam ninhos de artistas em qualquer local, onde a cidade se vira para as pessoas e estas vivem de facto, recebem um recreio e em troca enchem-no de vida. Sinto a cidade, e isso não se consegue com aeroportos fantasma ou com Agências Europeias do raio que o parta. As autárquicas são daqui a uns dias e quando assisto a tão pouco folclore nestas terras nórdicas, só me apetece perguntar se posso inserir o meu próprio candidato no boletim de voto. Não sei como se chama, mas o nome acaba em -iksen ou em-son. 

terça-feira, outubro 24, 2017

Ihas Far Away: A chegada a Copenhaga


Nunca voei numa low-cost. Até agora, quero dizer, porque ir do Porto até Copenhaga foi com a Ryan Air e há uma certa diferença no ambiente quando se entra num avião desta companhia irlandesa. Não é bem o tamanho e embora as condições de longitude e latitude sejam mais curtas no interior, também não se trata disso. Ao meu olhar, os rebites aparecem mais evidentes, invento rachas nos vidros e cada tremelique penso no imediato que o bólide aéreo se vai desfazer. Por aqui se vê que tenho pouca pinta de viajante, nunca poderia ser um Joel Neto desta vida. Os voos da Ryan Air são um pouco como aquele canal de televendas que vos adormece pela noite fora, com a diferença de que tudo é em directo e dormir é a última coisa que o pessoal de bordo vos permite: ofertas em catadupa de perfumes e quinquilharia, sob promessas de transformar o avião num paraíso fiscal mesmo à medida de José Sócrates... se ele não fosse, como é, um perseguido pela Justiça portuguesa. Até lotarias e sorteios nos tentam impingir, como se brincar à estatística já não fosse a raison d'être dos negócio da aviação. Recolho-me à minha própria companhia que é aérea só no sentido que ando sempre com a cabeça no ar. Na viagem até Copenhaga, fazem-me companhia "The devil's dictionary", divertidíssimo compêndio de recalcitrantes definições por Ambrose Bierce, parente perdido de Mark Twain; e "Os sete loucos", do argentino Roberto Arlt, livro que me foi oferecido pela P. e é demente na mesma proporção que não considera a demência louca o suficiente para se alhear deste mundo. Quando olho fundo para a traseira das caveiras de uma das hospedeiras de bordo, juro encontrar um pouco desta demência; mas afinal não, apenas vamos estar sujeitos a turbulência e ela apenas me pede que desligue aparelhos electrónicos e recolha a biblioteca pessoal

À minha frente, um garoto de olhos oblíquos denuncia-se como oriental. Tento perceber de onde é e quando os pais, enfim, comunicam entre si, descubro que é chinês, ou pelo menos taiwanês. Dois anos de japonês não serviram de muito, mas sempre aprendi a distinguir dialectos asiáticos. É um rapazola com uns quatro, cinco anos e a sua cabecinha navega por cima e por baixo das ondas da cabeceira do lugar. Vai sorrindo e fixando-me e eu entro na brincadeira com caretas e línguas de fora. Ele sorri e ri, não desarma e também ensaia na sua cara luzidia números de comédia infantil improvisados e destinados à inocência. Dura uns minutos e quando termina, uma moça ao meu lado, talvez da minha idade, liberta por fim uma comichão entalada desde o início do vôo, quer falar com alguém e calhou apanhar-me. Chama-se Teresa e é alentejana, ó coincidência, algures de perto de Évora. Não está de viagem, como eu, e é uma das milhares que respondeu ao apelo visionário do nosso amado líder Passos Coelho na procura de felicidade em locais onde a felicidade não se parece com o caule de uma roseira por uma garganta descendo. É psicóloga e adora o que faz, já trabalha com miúdos problemáticos de vários tipos e de momento nem engraça com Portugal e diz, à boa maneira dos emigrantes querosianos, que tudo é uma choldra. O Governo abandonou o Alentejo, nisso tem razão, e decidiu procurar vida num local mais civilizado. A Dinamarca encaixa-se bem naquilo que ela espera da vida profissional: os horários são certinhos, a descontracção presente e as cidades são recreios de vida, não amontoados de obrigações burocráticas, selvas de betão com lianas onde se dependura o nosso stress. Tão cedo não volta e reconhece de imediato o Alentejo que lhe descrevo da minha passagem por Colos, gaba-me a disponibilidade para ter aceite a aventura e quando lhe conto que o meu destino são as Faroe, nunca lá pôs os pés ainda que habite em Copenhaga há seis anos. Neste momento está desempregada, mas não se importa, na Dinamarca tratam muito bem quem não tem emprego e até encorajam que se limpe a cabeça de vez em quando, como que aceitando que trabalhar sem parança não é o nosso estado natural. Sábios, estes nórdicos.

A aterragem é péssima, mas sobrevivemos. A Teresa e eu trocamos e-mails, prometo que lhe enviarei fotos das Faroe, ela quer sentir o pulso da ilha, está muito curiosa por visitá-las. Despedimo-nos à portuguesa, com dois beijos, e ela ri-se, há muito tempo que não fazia estas coisas à portuguesa. Parto em busca do meu grupo de viagem e acabo por encontrá-los na cinta das malas. Dizemos olá, nomes rápidos que nem fixo e quando recolho a minha mochila, o desconforto de sentir a humidez. Abro-a e descubro que o meu champô rebentou e não o tinha fechado num saco. É fácil ser-se estúpido quando se habita a minha cabeça. Quando estamos para sair do aeroporto, sinto um toque no ombro e sou interpelado pela língua inglesa, sotaque australiano. Um homem com os seus quarenta e muitos anos aponta-me para a t-shirt. "Have you been there, sir?" e eu não sou qualquer sir, tenho 34 anos e estou desempregado e ando aqui a viajar e nem sei bem que vida tenho e "sirs" são pessoa bem orientadas. O que visto exibe, contra um fundo vermelho, o brasão solar da bandeira do Quirguistão. "Yes, I have, it is a very beautiful country", e ele concorda, é de Melbourne e vive algures na Alemanha onde conheceu a esposa, que nasceu nessa terra longínqua da Ásia Central. É um momento globalização de grande coincidência e que fica comigo pela simples razão que por muito que tente ser várias versões de mim, as anteriores acabam sempre por apanhar-me em inesperados relances.

À entrada do aeroporto, somos um grupo de onze pessoas que nem sabe muito bem como se orientar. Um funcionário observa a nossa perplexidade e de imediato pergunta o que queremos, arranja um táxi-carrinha e em dois minutos estamos a sair dali. Se fosse em Lisboa, estávamos neste momento a ir pela A1 em direcção a Alverca. à noite, Copenhaga é um ninho de ocasionais pirilampos. Fora do centro, predominam as transparências dos vidros e a solidez do metal que suporta edifícios de arte contemporânea, as suas luzes artificiais misturando-se na natureza aquática do mar que rodeia a ilha de Zealand, onde se fixa a capital dinamarquesa. Por entre estações de serviço e outros pontos habituais numa grande cidade, fica-me o contraste entre esta área e o centro de Copenhaga, carregado de arquitectura neo-clássica e industrial. Quando chego ao meu hotel, principescamente chamado "Christian IV", já me sinto alienado. Ficarei aqui a dormir com o guia da viagem, o Paulo, um indivíduo cuja face não destoaria de um quadro de Rembrandt. O check-in é feito por um tipo que tem menos uns dez anos do que eu e fala um inglês fluente. Informa-nos que o nosso quarto tem uma cama apenas, larga, e quando olho para o Paulo, o funcionário quer avançar com uma piada mais gay, mas morde a língua a tempo. Informa-nos que na sala de jantar há café, chá e biscoitos à borla toda a noite, se quisermos. Rica vida.

O elevador sobe e apertadinho. Chegamos ao último andar e a nossa dormida instala-se num sótão, umas águas furtadas bastante acolhedoras. Os corredores preenchem-se com estantes livrescas, companhia para os mais solitários em noites da Dinamarca. O nosso quarto é o 57 e a cama única são afinal duas coladas. Há espaço para declararmos fronteira entre nós, mal nos conhecemos, mas brincamos já com a situação. Depois de um banho merecido, e de limpar o meu estojo de higiene que jamais deixará escapar o odor a Linic mentol, decidimos descer até à tal sala de jantar. O estômago sente-se reconfortado e entre leite e café, o Paulo confessa-me a sua atracção pelo Norte da Europa e um amor imortal, qual Duncan Macleod, pela Escócia. Muitas vezes a visitou e jurou retornar sempre que possível e até já por lá passeou de kilt e tomou para si um nome escocês. Está bem mais à vontade com o mundo do que eu, e isso não é nada complicado. Mando umas piadas e partilho histórias e algumas fotos do Quirguistão e devo passar por um tipo que sabe muito da vida e de passeios, mas apenas fui até à Ásia Central no ano passado. No entant,o a viagem não é uma coisa que se possa quantificar, na verdade, interessa mais a marca bruta de pegada que nos deixa, o quanto nos abrimos a essa experiência alienígena de estar noutro lugar, noutro meio, noutro fim. Se calhar até sou um tipo bem vivido, mas na minha cabeça e naquele lugar onde conta de facto, onde remexe connosco o conhecimento e a curiosidade, a exploração do que desconhecemos, onde moram as expectativas e também as pessoas que se tornam habitat em nós, e onde penso em alguém que não devia e em alguém que devia, mas não sei bem ainda porquê. É no momento em que o Paulo acaba de descrever o seu pedido de casamento à Sara e damos pelas horas na etrada da madrugada, em Copenhaga estamos adiantados uma horinha e o melhor é ir para cama.

Enquanto subimos, registo-me em perguntas e inquietações, em como me projecto e em como sou com quem não me conhece e sem dar pelo tempo a passar, já estou deitado, na cama. Olho o tecto, uma janela branca sobre mim deixa passar um rasgo de luz e em Copenhaga não é diferente de Ceira e o que penso aqui, nesta cama, neste pequena metrópole nórdica, é o que me inquieta também como moço de aldeia quando me agarro a uma almofada e faço perguntas que nenhuma voz pega de caras. Também não será hoje. Deixo que o cansaço aterre em mim bem mais suavemente do que o avião e nem sei o que se passou a seguir e portanto não posso contar. 

segunda-feira, outubro 16, 2017

As Ilhas Far Away: a bagagem que se leva



Sou uma pessoa de mochila. Pode haver a hipótese de levar malas em viagens, de o conforto ser maior, de o que é prático se transformar no que é indicado, mas há qualquer coisa nas minhas costas que implora pela sensação de peso quando a viagem se aproxima. São tiques nervosos, acho. Restos mortais que vivem na minha memória de uma vintena de anos como escuteiro. Os meus dedos recuam no tempo, a carícia daquela agressiva fibra plástica apertando os ombros, tentando equilibrar o peso em ambos os lados para não me incomodar a coluna. A mochila, para mim, é o engodo da viagem. Desta vez, estou a umas horas de descolar a partir de Portugal rumo ao Norte da Europa. Nos dias anteriores, partilhei com muito poucos o desígnio. Rumor em surdina foi crescendo e quando partilho que dentro de alguns dias visito as Ilhas Faroé, a surpresa é apenas uma pequena baforada. Há um ano e pouco, estava na Ásia Central, num país cujo nome os meus amigos mal conseguiam pronunciar. Neste momento, pouco pode sobressaltá-los no que à minha pessoa lhes diz respeito. Limitam-se a mostrar curiosidade, perguntam onde é, o que se faz, nem sequer questionam os motivos, e ainda bem porque não saberia responder-lhes. A minha lógica de escolha é habitualmente simples e bruta: procuro e olho. Se gosto e está dentro do que a minha bolsa pode comportar, vou. O único critério, desta vez, foi o de uma região geográfica bem diferente da anterior, para variar cenários, moldura humana. Tudo o resto é acaso e instinto.

Ainda assim, fiz uma pesquisa prévia sobre o meu destino. As Ilhas Faroé situam-se a meio caminho entre a Islândia e a Noruega, mas o país mais perto é o Reino Unido, através de uns ilhéus da Escócia. Ainda assim, o arquipélago de dezoito ilhas pertence à Dinamarca. Habitam-na quarenta mil. faroeses, que ainda assim são menos do que o imenso rebanho de ovelhas que se propagou por todo o lado e deu às ilhas o seu nome ("Faroe" significa "Ovelhas" no idioma local que nem é o dinamarquês, mas sim o Faroês). Os faroeses gerem-se através de um governo autónomo dependente da da monarca sediada em Copenhaga, mas não podem ver dinamarqueses nem pintados. Têm selecções desportivas própria, a sua língua é muito mais parecia com o norueguês e já fizeram um referendo à catalão para se desvincularem do país ao qual pertencem e que basicamente só os mantém por ali porque a zona económica exclusiva marítima dá um jeitão nas negociações com a UE. São donos de uma moeda própria - a coroa faroesa, que é muito parecida com as nossas antigas notas de escudo - e tirando as partes militar e judicial, auto-governam-se da maneira que entendem. O que dá jeito porque, venho a descobrir mais tarde, há zonas desta ilha que se instalaram onde toda a gente se esqueceu que era possível habitar. Ao longo da História, foram terreno predilecto para renegados da sociedade, que procuravam aqui refúgio sempre que um conflito interno os obrigada a fugir dos respectivos reinos, fossem na Grã-Bretanha ou na Noruega, que já aqui mandou. Quando os reinos norueguês e dinamarquês se separaram em 1814, a pátria de Mads Mikkelsen levou no bolso estas dezoito ilhas e ainda hoje as tem. Hoje, lutam pela independência e querem ser deixados em paz. Isto é tão evidente que se recusaram a juntar à União Europeia, quando os dinamarqueses o fizeram. A religião maioritária é a Cristão, esmagadoramente, e no meio das restantes, algumas há em que não se arranja sequer uma equipa de futsal. Há três sikhs, por exemplo, em todas as Faroe.

Algures parei nas buscas e pesquisas. Não me interessava saber mais, a necessidade de partir e desligar-me era premente; mas quis a ironia que o início deste percurso fosse na cidade de Porto, que é com toda a probabilidade p único ponto do mundo onde gostaria de exercer uma prerrogativa divina de destruição. Detesto a cidade do Porto com uma tal energia que Oppenheimmer me teria fechado numa gigante bola de metal. Nunca gostei dela, de uma altivez negra e acabrunhada, um engano urbano, o único local onde já fui ameaçado de morte e a dobrar. Nos últimos anos, ganhei ainda mais motivos para me sentir desconfortável na maior cidade do norte português e passei algum tempo a tentar descodificar isto, se era do meu percurso emocional ou do próprio espírito portuense, de uma aparente simplicidade genuína que é labreguice e chico-espertice. Concluí que a culpa é geográfica, que nunca senti em Lisboa, por exemplo,a mesma opressão e desconforto que tomam conta das minhas linhas físicas quando calcorreio o chão portuense, quando o rio Douro é apenas uma ilusão prateada na retina e as pontes de metal são grades. As ruas do Porto são um labirinto de Minotauro, com os Clérigos como Knossos. Percebo o fascínio de Sophia pela cultura clássica, também o devia saber. Se vives o que é forte e quase do avesso no Porto, o mel emocional fica contigo, mas os favos cheios de abelhas que picam, a dor lancinante, está presa e capturada no escuro do Porto, no seu angustiante e abafado desenho, na arquitectura com te prende uma âncora que te afunda bem longe das águas fluviais ou das ondas da Foz. É nesta cidade que desaguam as dores do coração e estar aqui, por muito que seja tangencial, amarra-me as pernas aos ventrículos.

Mas a viagem foi-me marcada para o Sá Carneiro. Não fui, foi... alguém, um alguém que não me conhece e que apenas vê na proximidade do Porto um auxílio à minha viagem. Tento ignorar a cidade, mas é-me impossível. Passo por ela, nunca incólume, mas tão de fininho como aquele maior da Cantareira. Chegado ao aeroporto, as alças da mochila devolvem-me alguma estabilidade e avanço, é a viagem que me acalma e me dá a certeza de que algures no mundo, há um local onde não penso nesta, onde a D. só existe no nevoeiro e onde mundos em forma de L. podem tomar outras formas, outros contornos de alto coturno. Check-in feito, aeroporto cheio de gente e quando me sento já depois da segurança, a música preenche-me na espera, enquanto leio um livro de Sam Shepard e tento isolar-me, voltar a mim, colocar-me no centro do meu mundo antes de desvendar um recanto daquele que partilho com os outros. Uma viagem não começa noutro local que não em mim, e o seu término sou eu também; e antes de entrar no avião, sinto-me um risco abstracto, não tenho medo nem temor como há um ano atrás, passei pela transformação do Quirguistão e numa poltrona de confortável hábito, sinto-me um passageiro pouco acidental. Sinto que estou onde escolhi e onde desejo. Sinto que estou perto, mas nas Faroé, estarei Far Away. O trocadilho é infantil, mas em mim, sinto-me pronto a referendar a independência do que me incomoda, se preciso for. Quando me sentar no avião, já nem penso na dor e o avião, ao levantar voo, deixa um pouco de mim para trás, a parte que não interessa, a Ryan Air aliás tem uma apertada política de bagagem. O que conta, a multiplicar, sai rumo a Copenhaga e eu sinto-m e um arquipélago perto de se reunificar.

quarta-feira, setembro 20, 2017

Mais uma rodada, mais uma viagem


Quando lerem isto, é provável que já não esteja em solo português. A minha senda, quase desígnio de vida, de visitar locais com nomes esquisitos e desconhecidos da maioria levar-me-á agora perto do Círculo Polar Árctico, até um arquipélago de dezoito ilhas que pertence à Dinamarca. As Ilhas Faroé serão o solo debaixo de mim (e nalgumas alturas, pelo que li, por cima também) nos próximos sete dias. Ora, porque não ir à praia que até está solzinho em Setembro? O Algarve aqui tão perto e Figueira da Foz com os seus belos areais... Ou então simplesmente visitar capitais europeias tão belas e movimentadas? Coisas boas... Mas por outro lado, para quem já foi ao Quirguistão, uma região autónoma dinamarquesa é Londres. Fará frio, que estamos a sair da altura quente do ano, e mesmo com o aquecimento global a chegar fogo ao rabo e à tola do mundo, o ambiente para aqueles lados puxa para o geladinho. Nada que agasalhos não resolvam e assim como assim, andar de gorro em Setembro é uma experiência quase tão fora da realidade portuguesa como visitar cidades com redes de transportes e parques urbanos como deve ser.

Numa confissão mais interna, cada vez mais sinto a minha cabeça como uma panela a fervilhar coberta por uma tampa que só ainda não deixou marca no tecto porque algures em mim, num local que desconheço, surge um controlo que nem consigo explicar e vai mantendo a fervura num controlo muito frágil. Já namorava esta viagem há algum tempo, sem grande convicção, um daqueles namoros em que a atracção existe, mas o compromisso é ténue e arrasado ao mínimo percalço. No entanto, há umas semanas, descobrir uma necessidade prioritária de levantar a tampa da panela para que o vapor explodisse e me aliviasse. A mudança da realidade e do mundo em que damos por nós a respirar costuma ajudar a este alívio, uma estranha ilusão de que somos outros, de que temos outra vida, de que as oportunidades podem surgir de uma forma que nunca surgirão enquanto nos mantivermos nós, aquele que conhecemos desde sempre. É um pouco isso que procuro nesses locais que se escondem nas frinchas do mundo, abrigados da curiosidade turística massiva e ainda com isolamento suficiente para que me possa sentar a olhar o mundo como se fosse a imensa sala de estar da melancolia. Enfim, é o que temos por agora, pelo menos.

Nada temam, que não desapareço de vez. Se a civilização me permitir (e reparem que mesmo no Quirguistão havia Internet, estou optimista em relação ao que é, para todos os efeitos, território dinamarquês!!), darei notícias nestes dias, à maneira de pequenos telegramas e fotos variadas. Mais tarde teremos uma nova série de relatos deste turista menos acidental e mais dado a acidentes, discorrendo sobre a realidade através da sua visão surreal. Já sabem com o que contam. Até lá, não matem nenhuma baleia, sim? Beijinhos e abraços.

quinta-feira, setembro 07, 2017

Sonho


Fez-se luz e quando os meus olhos escancararam o mundo, descobri que eras uma manhã. Umas horas antes, deste por ti como uma noite que me tapa e cobre e envolve e num fumo me preencheu o corpo tornado duplo. "Bom dia", e era uma observação óbvia, calma e, no gesto seguinte, rematada por um beijo. Lençóis azuis envolvem-te o corpo, deito-me ao lado do céu. "Sonhaste ontem?", e sim, sonhei, mas porque perguntas? "Resfolegaste bastante... Resfolegar, adoro esta palavra!", e o teu corpo contorceu-se um pouco nas rugas da cama, como se as tuas pernas dessem início a um rio imenso que rodeia as rochas com a corrente; e tentei lembrar-me do meu sonho, sabia que sim, que sonhara, quando tal acontece sinto-me sempre um pouco mais cansado, um pouco mais desprovido de jeito para lidar com os dias. Sonhos deixam nas margens do rio uma poeira fina, roliça na pele, algum ouro nos olhos. O pesadelo tornava presente aquilo que o roía lá dentro, aquele uivo crespado sem som mas total impacto, o nevoeiro ácido a pôr liquido nos juntas interna do corpo, era mesma uma dor sem forma, um fumo indefinido de gritos carregados como nuvens de chuva num céu de Inverno. Não se apresentava com identificação, apenas o habitava sem renda paga ou aviso. Nem conseguia recordar-se da sua entrada ou se eventualmente nascera com aquela tinta negra dos anos que passam, dos dias que estão, de uma divagação simples nos cantos do quotidiano. Pedras nas margens, um grosso calhau que obriga o rio a desviar o curso, capaz até de resistir à sua milenar e telúrica força. A dor é mais primitiva e original do que a felicidade, que é um dado adquirido da evolução.

O afogamento não se apresentava, mas também não refulgia nos seixos aquele raio de sol que por vezes encontro no sorriso daquela que me inquiria com olhos negros. Ajuda-me a recordar. "E como posso ajudar? Acaso sou filha de Orfeu?" Nunca, ora, Orfeu é o encantador de sonos e tu deixas-me bem acordado. "Talvez isto ajude" Os ombros descaíram um pouco e com um trejeito da tua cabeça, cabelos deslizaram sobre o meu peito, uma cortina onde se entrevê algo que só pode ser visível a quem se abre ao mundo. Ao teu mundo. Estranho ao início, mas que técnica pateta, mas cada fio de cabelo deixa em mim uma semente e o que cresce é a árvore da abstracção, como se da tua cabeça brotasse uma fonte, em tons de negra luminescência que me envolva novamente na minha inconsciência. "Oniris bate à porta. Já consegues abrir?" A carne lateja, um ligeiro formigueiro mergulha-me então num passado próximo e começo a dar corda ao coração, a regressar ao outro eu que se atreve fora do que é real e começo a ver, na luz que quebra os fios de cabelo em estrelas, um ponto de fuga. Escapo-me e o sonho regressa.

Estou num imenso planalto de estepe, onde tenho por única companhia um exército equídeo que pasta verde. Não é erva, é mesmo cor, e os lábios ficam verdes, o corpo também se malha no viço da cor. Perto de mim, um lago de margens defendias, uma fronteira entre o céu e esta terra que piso. A abóbada celeste é de berço e sinto-me tão bébé, como se renascesse nos grandes espaços, no brilho das águas, no tamanho impossível das montanhas nevadas que me rodeiam . Sou dominado pela ideia de já aqui ter aberto os meus olhos, mas fecho-me a essa ideia, nunca podia ter estado, lembrar-me-ia, como se alguma vez me esquecesse do que me faz ter vontade de abrir os olhos. No delírio onírico, caminho até à água e caio, sou submerso mas não me afogo. Um breve apagão e quando volto a mim, saio de um frigorífico, congelado, gelo verde como o viço das vacas, eu desenho-me vermelho do frio e despido despojado, encontro um par de pés. Um olhar não captura ninguém, apenas um contorno que apenas se define na sua incerteza. Bate palmas e na minha mão, um cofre engole-me e prende-me e sem chave, captura-me. Quero sair, bato e esmurro, grito e urro, mas a total liberdade dos grandes espaços encolheu-se sobre si própria. O tempo passa sem que note e aqui estou. Sou um dos que resta, e o cofre estreita-se num aperto e não sei como estou agora fora e na minha nudez a raiva toma conta dos meus músculos e rebento o estuque de uma parede branca com punhos encarcerados na dor e quando não sobra mais estuque há parede e quando não há mais parede, existes tu, a palma da tua mão.

E regresso a mim, no hipnotismo da curvatura que me sustenta e te dá graça, no cabelo que voltou ao sítio, num exército feliz que na tua boca alinha a paz no mundo. "Então, esclarecido?"; e claro que sim, puxo-te para mim, beijo-te a cara e os lábios, a ponta da língua no nariz e no queixo, uma boca que convida o teu peito a gemer por interposta abertura, e o teu sorriso como carta branca para tudo o mais, para me libertar num largo espaço. "Novo sonho nos espera, olhos abertos e consciência ao desafio" e o planalto tem o tamanho de uma cama e quatro pernas para correr até às montanhas e ao lago.

sexta-feira, agosto 25, 2017

Esquecer


Se pudesse agarrar o fumo da memória, de maneiras quem nem eu entendo nem a Física permite e nem a Química gera, as minhas mãos seriam uma caverna. Não sei se alguma vez observaram de perto uma pintura rupestre. Não é exactamente uma pintura: na verdade, é feita tão em braille, com entalhes e depressões, que não é loucura  pensarem que os nossos antepassados eram cegos ou viam com as mãos. Figuras e desenhos são, na verdade, a expressão física de alguém que quer deixar marca, que se recusa a simplesmente vaguear no sopro de vida que lhe foi concedido e não se importa com a inexpressiva e bruta rocha que tem pela frente, ou com o frio medonho e incapacitante dos Invernos glaciares, quando só existe, à entrada da caverna, uma pequena fogueira; ou que de repente um urso entre e o apanhe desprevenido. O importante é o prolongamento de si para o mundo que conhece, para o real que faz parte dos seus dias. Ele vai, mas ao mesmo tempo, há-de ficar.

São assim as recordações. A inevitabilidade do seu sumiço é certa em quase todos os casos, mas enquanto existem são marca do que já não é, e o que não é pode ser um momento fugaz, uma longa história que se estica ao ponto da transparência ou a pessoa que quando esteve era tudo, e mesmo não estando é um bocadinho mais do que devia ser. Os dias são casas de memória. Não sei em qual destas categorias coloque a Olívia, que passou em mim como um pincel pré-histórico. Eu, superfície rugosa; ela uma palha de aço encarniçada. Juntos só podíamos criar faísca e daí ao fogo é uma baforada. Tudo o que me lembro é de ter desaparecido, porque eu caibo aqui e nesse passado fui tanto que a minha existência passou de certeza por um estado da matéria desconhecido, no meio ponto entre acontecer e simplesmente apagar-se, onde quando nos sentamos explodimos em trezentas e setenta mil partículas, cada uma delas um ponto que a Olívia beijou, e por isso não pode ter durado meses, nem sequer o meu tempo de vida. Se cada átomo é um segundo, a Olívia fez de mim em relógio em cada reacção. 

Não me consigo lembrar, sabem, é o maior problema das memórias, é que nunca nos lembramos delas, nem quando as temos presentes. Por natureza, não se pode confiar na memória, nem para consolar. Nunca é bem o que se viveu, mas pode ser até bem mais do que houve. São tudo o que temos, mas são nada ao mesmo tempo. A Olívia simplesmente seguiu o seu trilho de amnésia, ou não, nem sei, nunca lhe perguntei nem posso e fiquei com este saco de memórias que é também um saco de nada, cheio de ar, que virado do avesso deixa cair precisamente o que já existe no chão. Criar este palácio de lembranças dói na destruição, porque até que ponto não ficámos só nós com a fotografia mental da sua construção? Viver com outro acolhe um desejo que não é egoísta nem ecuménico de ser uma recordação em outrém, deseja-se que mesmo ao longe, mesmo quando um regressa ao estado binário, o palácio continue a existir de certa forma, de uma maneira que ambos partilham, que em noites quando sopra o vento e eu me aperto na dúvida de que o meu corpo ainda exista por completo quando sinto tanto a tua falta, desmembrado e espalhado pelos cantos da cama, também a Olívia, também tu te desfaças um pouco e nas fendas refulja um brilho de mim, que ainda me guardas e só na ruína da noite permitas que espreite e saia de ti e também me abraças na mágoa de que não me tens nos teus braços. Revives, como eu, outros enlaces no chão e mãos livres para nos sustermos, mas não nos sustínhamos de todo pois a roupa caía mais rapidamente do que nós na realidade do reencontro. Minutos depois, a queda era uma falha tectónica, e tremo ainda hoje quando o revejo.

No entanto, pode apenas ser memória, ainda que a tua pele tenha existido na realidade das minhas cavernas com dedos; e agora, que relembro, sou os teus olhos. Vejo-me por deles e não sei se é a adoração do passado ou a ignorância do presente. Não sei se esse olhar chega ao futuro, se me vês também lá, e o truque derradeiro da memória é a viagem no tempo, de julgar que o futuro acontecerá exactamente da maneira como o vejo, e que é passado e que a Olívia foi-se e não volta sequer para me dizer que tudo estará como eu penso, que pelo menos me posso recrear novamente nos espaços em aberto de um sorriso genuíno que mentia aos recantos escuros da vida da mesma maneira que a memória me engana nas manhas do que me lembro, ou penso que lembro, pois recordar é o coração aemfantasia e a realidade em negação.

Mas a Olívia é, em totalidade. É tudo isto, é tudo o que nela projecto; e é também o que sempre me deu e tirou. Ela é eu e é ela; e um dia, seremos ambos qualquer coisa, quanto mais não seja uma memória um do outro.

sexta-feira, agosto 18, 2017

Charlottesville



O que me espanta em tudo o que se está a passar de momento nos EUA não é a morte de alguém num confronto directo entre um movimento nacionalista violento - uma das minhas áreas de especialização foi a evolução da Ideologia Nazi, não há grande coisa no modo de acção da alt-right norte-americana que me surpreenda; a reacção de Donald Trump, um bacoco racista e demagogo, egocêntrico e vaidoso, ruídoso suíno e pose altiva e teatral, calando e acusando jornalistas, deve muito mais a Mussolini do que a Hitler. Hitler, pelo menos, escolheu uma equipa competente para lhe armar o caminho, algo que, sabemos, o agente laranja mostra uma clara incapacidade. Não, o que me deixa surpreendido é a velha tradição norte-americana de erguer uma outra tocha, a da Democracia, proclamando perante todos que estas situações são anómalas, pois a velha união federal de estados das Américas mais setentrionais é sinónimo em todo o globo de liberdades e valores humanos, a nação que por isso lutou e que defenderá até à morte. No entanto, etalvez o meu talento não esteja em abordar a filosofia e moralidade da coisa, qual Heidegger de Ceira; mas visto que tenho aprendido uma ou outra coisa de História, permitam-me que deixe aqui uns apontamentos que talvez desmintam este mito fundador da especialidade norte-americana.

Ora, começo já por desmentir que a Guerra Civil Americana, porventura o o verdadeiro evento fundador da identidade actual deste país, não acabou. A divisão dos EUA entre Norte e Sul durou quatro anos, e curiosamente começou e acabou no mesmo estado: a Virginia, esse mesmo onde Charlottesville fica situado. A Virginia é assim uma espécie de fronteira limite entre as duas Américas, uma com capital em Washington e outra em Richmond. Apesar da ideia generalizada de que tudo se sucedeu por conta da escravatura, outros motivos mais práticos e menos morais precipitaram esta guerra fratricida. para além de questões económicas, a ideia sempre presente de que estes Estados Unidos eram um acordo e não um casamento eterno levaram sempre alguns estados do Sul a crerem que, se assim o quisessem, podiam simplesmente separar-se da chamada União e seguir o seu caminho. Um conjunto de eventos e guerra independentistas noutras federações europeias deram mais credo a esta ideia e as diferenças entre um norte industrializado e cosmopolita e um sul feudal e com base em mão de obra manual e esclavagista levava a crer que se assistiam a diferenças incontornáveis. A Independência em 1776 envolvera na sua maioria estados localizados a Norte, que valorizavam essa conquista de uma maneira diferente. Pensando que a Norte ninguém se importaria muitos, sete estados do Sul decidiram declarar uma nova confederação poucos dias depois da eleição do rpesidente Abraham Lincoln, que tinha fama de pragmático e anti-escravatura. Mas o norte estava decidido a não quebrar a ligação entre todos os estados e desse conflito, surgiu a Guerra Civil.

Como se sabe, o Norte venceu teoricamente a guerra; no entanto, e apesar de os termos de rendição não terem sido particularmente humilhantes - Lincoln evitou sempre julgamentos sumários e considerar como traidores aqueles que haviam secedido - a situação posterior a 1865 não foi exactamente a que o Sul tinha na ideia. Ainda que alguns estados fossem periféricos, outros como o Louisiana, o Kansas e a própria Virginia possuíam grande peso populacional e económico e acalentavam a esperança de discutir a rendição como uma conversa entre dois países diferentes, que algo que Lincoln colocou imediatamente de lado. A reentrada na União fez- se a contragosto e o preço a pagar foi quase um século de pobreza permanente na região e uma divisão económica clara dentro dos EUA. Por esta ideia de destino não cumprido, de traição nortenha e dos intelectuais à causa sulista de viver de acordo com os seus valores e preceitos, a guerra nunca terminou realmente. A animosidade entre ambos os lados permaneceu durante décadas e a única coisa em comum era o ódio que tinham uns pelos outros e por outra ideia que tem sempre solo fértil em pós-conflito: o Ouro, o Diferente, o Estrangeiro. Carregando este espírito de desprezo por todo aquele que não é americano ( uma definição que não incluía necessariamente todos os brancos: irlandeses, italianos, polacos e outros emigrantes europeus foram tão mal vistos e mal tratados tanto quando os negros ou os judeus nos finais de século XIX e inícios do século XX), o Klu Klux Klan (KKK) surge no ano em que a Guerra Civil termina, 1865, e com períodos áureos e de ocaso, permanece hoje como uma organização. 

O século XX é charneira em muita coisa nos Estados Unidos, mas com este caldinho todo preparado, acabou por ser, acima de tudo, uma era de nós contra eles, independentemente de quem eram eles. O elemento racial era importante, mas também o religioso e político. O Diferente assustava e a única maneira de tratar dele era através da violência. Um supremacista branco ou um nazi não encaram outra forma de contemplar o problema, porque isso pressupunha que se dispusessem a ver o mundo de outra maneira. Não vêem, não podem: há amigos e inimigos, nada mais, apenas essa categoria. As décadas de 20 e de 30 são de um particular nojo: não só a política a nível nacional abraçava abertamente ideias eugénicas e racistas de uma forma perfeitamente relaxada - afinal, foi nos EUA, e não na América, que estas surgiram e foram aplicadas em larga escala, de maneira oficial, principalmente entre comunidades de negros - como aplicava um desprezo por raças diferentes, mulheres e até termos inocentes (a New Yorker, hoje grande bastião do intelectualismo liberal de Esquerda, não usou a expressão "papel higiénico durante anos, porque vários editores a consideravam nojenta) apanhavam por tabela. Os nossos amigos do Klan viveram uma era de furor, jogando inteligentemente com ódios específicos das regiões onde se queriam instalar e a sua popularidade era de tal forma que chegaram a ter, segundo alguns, oito milhões de membros a nível nacional, não apenas campónios e plebeus, mas também gente em lugares muito importantes, como governadores, senadores ou congressistas. Eram não apenas um grupo de terror, mas uma estrutura social: faziam piqueniques comunitários (chamados Klonklaves...) e na cidade de Detroit organizaram uma tradição natalícia em que um Pai Natal vestido de klansmen destribuía brinquedos aos petizes. A paranóia chegou a tal ponto que no Indiana, estado onde o Klan era particularmente numeroso, acreditava-se com seriedade que o Papa elaborara um plano secreto que mudaria a sua base de operações a partir do Vaticano para o Indiana. Imagine-se. Notícias loucas, notícias exageradas. Por outras palavras, notícias falsas. 

A ideia de uma raça superior como elemento presente no espírito norte-americano vem também deste período. Um grupo de académicos e cientistas, levados a sério, apresentaram uma preocupação: demasiados norte-americanos estavam a nascer defeituosos ou inferiores e sucessivas vagas de emigração obrigavam o país a acolher também a inferioridade estrangeira. Uma chatice. Os genes condenavam praticamente todas as raças e nacionalidades. Se acham que isto foi apenas uma teoria doida que mais tarde viria a encontrar eco na Alemanha, repensem: estas ideias levaram a restrições de deloscação, impedimentos de emigração, deportações massificadas, suspensão de liberdades civis e a esterilização voluntária de milhares de pessoas inocentes. Não surpreende saber que um presidente norte-americano, Herbet Hoover, era abertamente racista e considerava negros e asiáticos como valendo um quarto de produtividiade - ou nem isso - de qualquer homem branco. Não surpreende que os principais adeptos destas teorias fossem, como Hoover, ricos e possuindo um desprezo tremendo por qualquer pessoa em situação de pobreza. As relações entre os EUA e a Alemanha nazi foram por isso, nos primeiros anos, previsivelmente cordiais, ainda que a subida ao poder Franklin Roosevelt tenha colocado um outro tipo de político e de mentalidade na Casa Branca, que fez dissipar lentamente a influência da eugenia, mas não do racismo. A existência de vários partidos de inspiração nazi na América do Norte, dos quais os "Flechas prateadas" são os mais destacados, e vergonha que foram os campos de detenção de asiáticos no período pós-Pearl Habrour, juntamente com a continuação de testes médicos e experiências científicas não autorizadas em negros marcaram os meados do século XX neste país. A partir da década de 50, os Direitos Civis das minorias entram num periodo de enorme crispação do qual ainda não saíram, podemos dizê-lo com grande segurança.

Ora, um país com este historial não ganhou qualquer direito a surpreender-se com os eventos em Charlottesville, nem sequer a etiqueta de bastião da decência, da liberdade, do que quer que seja. A primeira Revolução Americana foi, de facto, uma luta para pagar menos impostos, algo que se vê pouco em livros de História e não tão inspirador quanto os eloquentes discursos de Ben Franklin e Thomas Jefferson. O mundo actual vive um período estranhamente familiar, mas em medidas diferentes. A comparação com o período do fascismo europeu na década de 30 é um logro, assim como a ideia de que estas forças de intolerância não são um reaparecimento do que seja. Sempre lá estiveram, sempre andaram por cá, este desprezo pela normalidade e pelo respeito mútuo é uma constante em vários países ocidentais e tomou proporções bem mais assustadoras em tempos recentes (como é o caso, por exemplo, de toda a Operação Gladio na Europa). A ideia da diferença como problema manifesta-se em todos os regimes ditatoriais ou democráticos e é sempre o ponto de partida de todas as atrocidades e atropelos do normal funcionamento democrático. No entanto, enquanto a deixarmos à margem, será sempre um corpo estranho e rejeitado por todos aqueles que desejam um bem comum. Mas nesta marcha, revelou-se que este período de vergonha e njo acabou: andar às claras já é permitido, assumir um comportamento racista é algo equivalente a qualquer posição conciliadora e tudo não passa de uma questão de liberdade de expressão a aceitação. Um presidente dos EUA recusou-se a condenar de livre vontade um acto de ódio, algo que não me lembro de ver acontecer em qualquer democracia da Europa ou do Norte da América depois da Segunda Guerra Mundial. Isto sim, é grave: não a existência de grupos de ódio, não a quebra da especialidade norte-americana, mas principalmente a normalização do que é, por natureza, anormal e errado em todos os sentidos.

Mais do que com Le Pen e os seus discursos ou o fantasma da extrema-direita europeia, este é um ponto mental importantíssimo na nossa História como espécie e como sociedade. O momento em que se aceita esta comparação é deitar ao lixo a nossa decência, o que esta dela. Os Estados Unidos não são um farol para o mundo, mas inevitavelmente tornaram-se num exemplo que dita regras e faz estender ou encolher os tentáculos da boçalidade violenta. Infelizmente, e para mal dos nossos pecado,s perante o fantasma do racismo viramos os olhos para a América. Como devem calcular pelo historial que enumerei, estes tremores que sinto são tão reais quanto a vossa estupefacção.