quinta-feira, setembro 02, 2021

Georgia on my blog: Um banho de História



Não recolhe longe das minhas ideias que atravessei a Europa apenas para passear naquela que foi um dia a capital da Iberia. Tbilisi desabrocha como cidade algures no século V, quando o rei Vakhtang I precisava de uma capital para o seu reino com nome latino. A região de Tbilisi fora habitada desde a Idade do Ferro, devido à sua localização geográfica e segundo a lenda da fundação da cidade, foi esse o principal chamariz para o malogrado rei fundador. Estava o senhor numa caçada a faisões numa floresta quando se aleijou. Algures por entre o arvoredo, encontrou uma fontezinha de água sulfurosa que lhe curou as chagas com assinalável rapidez e o o monarca, fascinado, decidiu logo ali desbastar as árvores para erguer um povoado. Porque nada diz “obrigado” como a destruição completa de uma zona natural que contribuiu para o nosso bem estar. O sucessor de Vakhtang, Dachi I, completou a mudança da capital do reino para esta cidade onde passeio e o seu crescimento nos séculos seguintes deveu-se à proximidade com a Rota da Seda e à benesse de ficar praticamente a meio caminho entre três mundos: o Romano, através de Bizâncio; o Eslavo, através do Cáucaso; e o Persa, numa ligação com as terras longínquas do Oriente Chinês. Portanto, estar em Tbilisi acaba por ter uma certa sonoridade consoante com os meus anteriores roteiros de viagem. Nunca aqui estive, mas as pistas de outros passeios estão no ar. Quando atravesso a ponte Metekhi, sobre o rio Mtkvari – um escorrega de água castanha, sinal de que o degelo está no seu final, que risca em serpentina esta urbe georgiana – estou a sair de um presente que a Geórgia ocidentalizada constrói para si e embrulho-me no passado histórico deste povo. A cidade está dividida e a ponte, no fundo, é um de deLorean com grades. Permite-me viajar no tempo.

                                      

O turismo domina-a e a caça ao turista também. Ainda nem cheguei à outra margem e já fui abordado por umas cinco pessoas a oferecer-me passeios turísticos pelo país. Recuso educadamente e mesmo por entre o calor abafado que já criou um mar Cáspio nas minhas costas, tento fazer sentido do desenho da cidade. Do meu lado direito, noto brotado os exemplares de arquitectura contemporânea do Rike; mas do lado esquerdo, entre igrejas e a afastada muralha da fortaleza de Narikala, a verdadeira Tbilisi, pelo menos a mais próxima da original, assume-se. Partilhando o nome com a ponte, a igreja da Virgem Sagrada de Metekhi assume a sua contra-luz, vigiada por uma estátua do rei fundador. A igreja foi aqui construída, num pequeno monte onde supostamente um mártir ortodoxo chamado Habo foi executado no século VIII. No entanto, pouco resta da igreja original. Várias destruições decorrentes de catástrofes naturais e eventos militares levam a que apenas vejamos uma sombra do passado. Como acontecerá, aliás, ao longo dos dias em que aqui passamos. Percorrer a cronologia de Tbilisi é a pretensão de registar um mapa de convulsões. Entre ocupações à força, terramotos e mudanças de dono imperial, há muitas oportunidades de perder a identidade; mas algures, entre reconstruções e genuína vontade de glorificar o passado através do esplendor da arquitectura (o melhor exemplo é a renovação que a cidade atravessou no final do século XIX e início do século XX) marca mais o carácter rugoso de um magote de pessoas com uma identidade comum, orgulhosas dessa identidade, recusando o seu desaparecimento por entre as brumas da História. Ocasionalmente, no entanto, o apelo do vil metal chama com um trompete e a identidade comum senta-se no lugar de passageiro em sono que ronca. Foi o que aconteceu no primeiro local que visito na zona histórico, o Bazar de Meidani. Outrora, foi o mais importante dos postos comerciais que se localizavam na praça que lhe dá o nome, o grande centro de compra e venda da velha Tbilisi. Hoje, mantém o local, um túnel subterrâneo por onde se distribuem pontos de venda; mas atravessá-lo, seduzido por música local que acredito passar numa versão do “Oceano Pacífico” autóctone – que tomará aqui porventura o nome de “Mar Negro” – e o aspecto impecável de quem vendeu a alma ao Diabo via Loja do Gato Preto, com um toque de tijoleira a fingir o antigo e mobiliário a pedir designação de Vintage, não é de todo o que já encontrei de genuíno por outros pontos da Ásia onde o comércio continental ainda se faz sentir com uma força que treme. Começo a temer que afinal, para lá de fantasmas do genuíno, vá encontrar demónios do consumismo.

                                   

No entanto, nem sempre o que é antigo salva a alma de um local. Noto que, espalhadas pelas paredes e muros, um artista local chamado Goshaart tirou umas tardes e noites do seu tempo para enfeitar as ruas e becos com pinturas, muitas delas alusivas a clássicos da Sétima Arte. Noto uma obsessão com a saga “Alien”, o que só lhe dá crédito na minha caderneta bancária. Misturando xenomorfos e gatos, esta pessoa lava-me um bocadinho o mau gosto deixado pela visitar a Meidani e os meus passos não se perde, mas encontram-se de súbito na zona das termas de Tbilisi. O papel lendário destas águas já foi referido, mas é apenas quando se visita esta zona da cidade que se entende o quanto o acto de alapar num tanque de água quente está enraizado em quem vive e sobrevive na cidade. É tão georgiano quanto um kachapuri, vender efígies de Estaline ou conduzir sem qualquer respeito pelo código da estrada (spoiler alert). O nome da capital significa, aliás, “o lugar quente”. Vir aos banhos é um pouco como apertar a mão à cidade e fazer conversa de ocasião para não desapontar um anfitrião. É essencial. Quase todas as termas ficam na mesma zona, o bairro de Abanotubani, colado ao rio e distinguível de imeditado pelo traço dos seus edifícios termas, casas de tijolo basso encimadas por uma cúpula onde uma chaminé revela segredos através de fumo. Preenchidas por buracos que deixam passar a luz, já que tradicionalmente o interior não possui iluminação artificial, é debaixo de terra que a acção acontece. As águas vêm de uma fonte que origina num pequeno ribeiro que ladeia o complexo termal, inserido no meio de outros edifícios locais, e a temperatura ronda os 40 graus. É um bocadinho como ter Beja durante o Verão a escorrer pelas costas. Embora as águas tenham propriedades medicinais, uma boa parte dos visitantes actuais fazem-no pela experiência e pelo ambiente. Mas o seu papel na cultura georgiana, e costumes, é inegável. Ir às termas é o pretexto de vários romances e poemas da literatura nacional e até asiática. Estão abertos durante todo o ano, mas é no Inverno, logicamente, que a procura aumenta. Ao contrário dos banhos mais icónicos de cidades como Budapeste e Istambul, os de Tbilisi não são spas. As pessoas não vêm aqui para ser apaparicadas, mas sim por questões de saúde e higiene. A pessoa em questão despoja-se do vestuário e instala-se ao natural numa sala que pode ou não se partilhada. A actividade termal tem divisão sexual por questões de decoro, excepto se optarmos por uma sala privada, onde cada um pode aquecer com a cara metade sem que ninguém tenha alguma coisa a ver com isso. Se te sentires um conde abaronado, podes pedir um tratamentozinho medicinal mais relaxado, proporcionado por um ou uma Mekise. Esta pessoa, especializada em manusear o teu corpo da mesma forma que eu trato os lençóis da minha cama quando tenho de enfiá-los na máquina de lavar, uma massagem vigorosa para remover a pele morta e assim contribuir para a saúde da tua epiderme, que se fores bem a ver, merece plenamente, pois tem de te aturar durante o dia inteiro.

                                     

Não as experimentamos, mas do que leio de experiências alheias posteriormente, fico arrependido. Observo-as do exterior e tomamos um caminho que passa por entre os vários complexos de banhos. Encostada ao espaço, a mesquita de Jumah não toma conta da estranheza da sua presença, espaço muçulmano em terra de fortes crenças cristãs. É o único espaço de culto islâmico em Tbilisi, herança sunita do tempo dos Otomanos. Sofrendo do mesmo processo de construção e reconstrução que marcou todos os edifícios da cidade, deve a sua sobrevivência à devoção de um milionário azeri que financiou a sua reconstrução. Misturando arquitectura árabe e neogótica, a sua fachada em grande arco, cobertas de pequenos azulejos de azul do mar, combinando com o ribeiro que a separa das termas, convida à entrada. É também um símbolo de união numa cidade multi-cultural. Que eu saiba, é a única mesquita no mundo que recebe Sunitas e Xiitas, dois ramos da religião muçulmana tantas vezes em conflito e recusando entendimentos. Quando a mesquita xiita foi destruída aquando a construção da ponte Metekhi, estes ficaram sem lugar de oração. Os Sunitas abriram Jumah aos seus adversários doutrinários e desde então, ambos os grupos partilham o espaço sem conflito aparente. O caminho segue o curso de água para longe do rio. Está acimentado e tem claramente um destino. É aqui que o leviatã do turismo de plástico assoma de novo, entre gente com vestes tradicionais à procura de um cobre mais através da sua presença ou de folclore bacoco e ponde carregadas de cadeados, celebrando o amor e também as falhas de engenharia que um dia provocarão lesões graves a alguém no leito do ribeiro. Fica evidente qual é o destino desta via sacra penitencial do vil metal. A alguns metros, vejo uma bonita cascata e como já aprendi noutras andanças, não há beleza natural que não possa ser estragada por gente sem outra sensibilidade que não seja o vazio. Um par de jovens espera o turista com bicharada, um falcão e um macaquinho. Já vi disto no Peru, mas aí usavam lamas e vicunhas. Fazem-nos sempre sinal a indicar a oportunidade fotográfica. Damos uma notinha, tiramos uma foto com o bicho, ficamos ambos contentes. Só que não. Na minha cara, veem um cruzamento estranho entre o doutor House e o Wolverine e a minha máquina fotográfica vira-se para a água que cai pela rocha. Três polícias vigiam o espaço, aos quais se junta um quarto. Fico com a ideia de que este ponto é o perfeito local de ócio para as forças de autoridade locais e que algures noutros pontos da cidade, criminosos marcam os horários da sua actividade pelo trânsito dos senhores agentes junto à cascata. Se o fazem, são espertos. Olho para esta garganta de pedra e imagino, algures em séculos passados, mulheres lavando aqui a roupa à mão. Do que li na minha pesquisa prévia, mães de família costumavam passear por aqui como olheiras de futuras esposas para os seus filhos, numa versão sentimental do jogo Championship Manager aplicada à actividade matrimonial. Procuravam porventura qualidades úteis a uma esposa, como a destreza na aplicação de sabão ou a assertividade quando se curtem lençóis contra calhaus para tirar as nódoas mais rapidamente. Imagino-as a registar nomes num bloco de notas e a comparar as melhores contratações possíveis umas com as outras. Tendo em conta os costumes religiosos locais, duvido que as jogadoras pudessem ser contratadas com opção de empréstimo.

                                     

Depois de passarmos pela sinagoga de Tbilisi, não muito distante da mesquita a cuja porta estivemos – provando que estas duas religiões do livro não se largam nem por um bocadinho – a ideia é batermos à porta de um curioso museu: o das Relações Acabadas. Apropriadamente, dá-nos uma tampa. Está fechado. O motivo tem menos a ver com o nosso desamor e mais pela arquitectura do próprio edifício, que conserva muitos traços das casas civis soviéticas. O uso da madeira, a varanda que sai para o exterior suportada por vigas, duas assoalhadas com divisões encabeçadas umas por sobre as outras. Mas depois de a Georgia acabar a sua relação com a URSS, é apropriado. O projecto foi iniciado por um casal croata, Olinka e Drazen, e é um dos poucos, talvez único, núcleo museológico cujo espólio reunido depende totalmente de crowdfunding. Os objectos em exposição são enviados por quem quiser, se onde quiser, e dizem respeito a esse momento sempre mágico e inesquecível que é o fim de um relacionamento amoroso. Do exterior, não consigo vislumbrar qualquer bulldozer, mas acredito que exista por lá um. Pelo menos, é assim que me costumo sentir quando me partem o coração. As pessoas enviam os objectos para se livrar da sua presença ou então porque têm um valor sentimental profundo que sobrevive ao trauma da separação. O amor e o seu fim são ecuménicos, afinal, um pouco como Tbilisi. Atravessam origens geográficas e crenças no Além, atravessam diferenças de carácter e disposição, atravessam barreiras sociais e culturais. Algures, alguém já foi atropelado por esse TGV que é a decepção emocional. As relações não são apenas amorosas. Podem ser familiares ou de amizade. O Amor tem muitas formas de se exprimir. Apesar de o conceito ter começado na Croácia, rapidamente se alargou pelo mundo. Existem sucursais em São Francisco, Singapura, Istambul, Cidade do Cabo ou Buenos Aires, para dar alguns exemplos. Descubro mais tarde que o mais recente abriu em Portugal, na cidade de Aveiro. Talvez porque é fácil afogar a tristeza com uma caixa de ovos moles; ou porque certos amores e desamores são um pouco como um moliceiro esburacado, prontinho a repousar no fundo da ria local.

                                       

Por entre ruas estreitas e becos desavindos, onde vários estilos e almas se dardejam e gotejam em trocas de séculos comuns, andamos um pouco sem rumo. A zona histórica de Tbilisi é de uma decadência com classe e personalidade, onde até mesmo as ruínas, num orgulho muito próprio, como quem cai pelas escadas abaixo de fraque e cartola, têm muito para ver e para reter. A cidade parece desaparecer e morrer, mas com o sentido de humor de Oscar Wilde que no seu último fôlego, topando o papel de parede do seu quarto, proclamou: “Bem, um de nós tem de ir embora”. Noutras cidades, esta morte seria real; mas porque o Turismo é hoje um importante factor monetário, alguém algures elaborou um projecto que não está isolado: a certa altura, reparamos que há um extenso conjunto de obras públicas que visa recuperar alguns edifícios antigos e abandonados. Nalgumas zonas até já se observam os seus efeitos. O resultado, por uma vez, satisfaz. O respeito pelo desenho original é notório, a réplica dos elementos decorativos total, o charme do século XIX não está presente, mas ainda assim faz uma aparição especial. Há uma limpeza que se deve claramente à modernidade, mas o desenho neo-gótico e os elementos arabescos e até soviéticos reconhecíveis. Novamente, Tbilisi parece uma cidade deLorean, viajando no tempo, uma cabine telefónica azul na qual esperamos encontrar um Doctor Who falando um idioma que ninguém reconhece e cuja escrita se nos escapa. Há urbes dominadas por monumentos de espanto ou por uma vida cultural intransigente na sua dinâmica. Outras atraem-nos pelo seu esmagador tamanho; mas Tbilisi é fascinante nessa sanfona existencial que propele para o futuro com um motor do passado. O presente não parece bem existir, é um estado temporário por definição, mas também necessidade. A capital quer-se bem lá à frente, mas deixar o que a fez para trás. Reconhece o que a faz forte, mantém o que o visitante procura e os habitantes de acostumaram a ter e a chamar de seu. Se a ligação às tradições e o conservadorismo por criar por vezes um ambiente hostil à diferença, por outro lado mantém este vínculo que vemos nas casas de muitas cores, verdes amarelas e azuis, que vão surgindo numa das ruas mais antigas da cidade e que desemboca na Abesadze, uma via que desce quase directamente para a principal rotunda de Tbilisi.

                                                       

Não é só o tempo a dar horas, também a barriga. Descemos a Abesadze, abstraída de trânsito, procurando um espaço agradável para o nosso primeiro almoço na Georgia. No trajecto, passamos por uma igreja reconhecidamente católico. Posso ser agnóstico, mas 18 anos de educação católica não se atiram assim à rua. É o maior templo local desta confissão religiosa, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção., mas a zona onde nos encontramos tem sido historicamente o bairro católico. Já aqui existiu um mosteiro dominicano e também uma outra catedral, a da Anunciação, bastião católico numa terra dominada por muçulmanos. Esta versão foi construída apenas no século XIX e durou apenas algumas décadas, porque quando a URSS engoliu o país, o culto foi proibido e a igreja fechada. Apenas em 1993 houve a reabertura e desde então que vai funcionando. Entramos, apenas com alguma curiosidade. A decoração é relativamente simples, com alguns candelabros dourados e uma estátua da Virgem segurando o Menino Jesus e denunciando o orago do templo. Nas paredes laterais, encontram-se alguns baixo-relevos. Parte do grupo indaga sobre o que significam. O meu tempo no lado crístico da Força leva-me a identificar de imediato as estações da Via Sacra. À entrada, Cristo é criança; mas como em quase tudo o que envolve o Cristianismo, a Morte é o tema central e forte. Depois de termos caminhado durante toda a manhã, sentamo-nos em descanso, no silêncio. Contemplo um pouco e respiro mais pausadamente. Penso no Tempo, no Espaço e nas dimensões de Tbilisi, outras e de outrem. Quero filosofar e reflectir, quero rasgar o cosmos com grandes conclusões, mas a minha cabeça é sempre trazida ao seu verdadeiro e derradeiro valor pelo órgão que verdadeiramente manda nas minhas vontades: o meu estômago. Vai ressonando ausências. Uma relação acabada com a comida. É necessário procurar um poiso para acalmá-lo. De outra forma, passarei a tarde a caminhar torto em desfalecimento.

Apropriadamente, o restaurante que encontramos é a perfeita reflexão de um desfalecimento. Mas isso é uma história para a próxima semana.