sábado, dezembro 29, 2018

Top 10 de 2018: Cinema

E têm-me perguntado "Então, não tens top 10 de filmes para este ano?" Ora essa, apesar de ter visto muitos menos obras de 2018 do que devia - tend recuperado um pouco nestas últimas semanas - penso que vi cinema suficiente para não me envergonhar. O critério usado foi o da estreia nas salas portuguesas, portanto não estranhem algumas das escolhas. Será, apesar do mito que so vejo filmes da Marvel, bastante ecléctico. Espero. Antes, umas menções honrosas: "Cold war" estaria com certeza aqui, se não fosse o pedestre quarto de hora final; "Spider-man: into the spiderverse" e "Isle of dogs" são, apesar das óbvias diferenças de estilo, duas das grandes obras de animação do ano, embora não caibam aqui; "The other side of the wind", embora imperfeito, prova como Orson Welles, mesmo depois de morto, acompanhou muito bem os tempos; "BlackKklansman" é um regresso de Spike Lee à raiva com algo não gratuito a dizer; "A quiet place" mostra que não é preciso ser político para ser fazer um filme de terror ao qual devemos prestar atenção;"American animals" é um bom híbrido de documentário e ficção, mas precisava de mais documentário; "They shall not grow old" e "Won't be my neighbor" são dois dos documentários do ano, ambos lembrando outros tempos e outros homens de que o mundo actual precisa definitivamente. Posto isto, vamos ao top 10.


10 - "Avengers: Infinity war": O culminar de 20 filmes encadeados, com altos e baixos, mas extremamemte eficaz como obra de entretenimento e com um raro final que entra na cultura popular de tal forma que define um gesto, "the snap", que entra no vocabulário global subentendido


9 - "Three identical strangers": Começa como uma história de vida luminosa e no fim damos por nós num túnel de trevas imenso. Tal como "The imposter" antes de si - um dos meus documentarios preferidos dos últimos anos - funciona não apenas como veículo de informação, mas também um thriller de reviravoltas assombrosas e, em última instância, trágicas. Porque o bom documentário não tem de envergar bandeiras de hashtag para ser destacado.


8 - "The death of Stalin": Em simultâneo um filme histórico e uma sátira política, o filme de Armando Ianucci é tudo aquilo que não se conseguiu encontrar em tanta suposta comédia aclamada este ano ("Crazy rich asians" é um dos filmes mais banais de 2018. A ideia de que a raça dos actores deve contribuir para a valorização de um produto tem de acabar): actores que sabem o que fazem, ideias traduzidas em piadas que rasgam o ecrã e estupidez bem medida como reflexo dos egos que definem o mundo.


7 - "Mission Impossible: Fallout": Nenhum outro filme - aparte outro que está mais acima - me proporcionou uma experiência de adrenalina numa sala de cinema como este em 2018, desde revolver-me na cadeira a agarrar com força os braços da mesma.È do caralho. Como uma franchise chega ao sexto filme para dar lições num género específico de cinema (em particular a lição de que só parece novidade aquilo de que se esqueceu) é açgp que me ultrapassa. A última meia hora de "MI: Fallout" é um pináculo.


6 - "Leave no trace": Homem leva filha para viver afastados da civilização e cria-a no meio do mato. Nâo é "Captain Fantastic", é Debra Granik com um olhar clínico, humanista, complexo sobre a relação entre dois indivíduos em co-dependência, às margens da sociedade, mas sem vilanizar esta nem os que nela vivem e querem ajudar Ben Foster e Thomasin Mackenzie estão incríveis e o realismo da sua relação no filme torna o desenlace final devastador, mas inevitável.



5 - "You were never really here"/"First reformed": Um empate, duas obras protagonizados por dois homens que não estão de todo em plena presença do mundo. Na primeira, Lynne Ramsay realizada um excelente filme sobre um mercenário tão desprovido de alma, tão perdido no mundo, e ainda assim capaz de nos criar empatia graças à enorme performance de Joaquin Phoenix. È quase uma viagem poética visual sobre o que significa não estar vivo ainda que se respire; na segunda, Paul Schrader regressa ao convívio dos bons com a queda de graça de um homem de Deus sozinho numa Terra pela qual ninguém parece querer lutar, apenas para descobrir que, em última instância a salvação pode estar literalmente no outro.


4 - "The shape of water": Um ano depois, espero que já tenha deixado de ser moda falar mal dele apenas porque ganhou o Oscar. A consagração de Guillermo del Toro para os cegos, é uma proclamção de amor pelo cinema, pelo estranho e pelo próprio amor. Visaulmente espantoso, como seria de esperar, apontando ao que de monstruoso existe no Homem e ainda que sendo muito menos subtil do que devia, um assalto total às emoções do espectador que triunfa porque del Toro nunca abdica do que lhe é queirdo, nem parte de si. A principal lição do filme.


3 - "First man": Um triunfo cinematográfico. Talvez o melhor filme sobre exploração espacial desde "The right stuff", trata o Espaço como um papão, os seres humanos como anões frágeis, que usam latas de sardinha para lá chegar, e leva o espectador numa experiência espacial sem que nunca tenha de pagar uma fortuna a Elon Musk. Damien Chazelle percebe o ritmo, o uso da escuridão e do silêncio como poucos actualmente e na sala de cinema, senti-me positivamente abananado. Acrescenta que é um excelente estudo de peronsagem de Neil Armstrong. Será, a meu ver, o grande injustiçado nos Óscares deste ano, o que so contribui para aumentar a sua mística futuramente.


2 - "Roma": Alfonso Cuáron fala de si mesma e em vez de ouvirmos olhamos abismados. Este ano, houve vários usos fantásticos do preto e branco no cinema, mas nenhum como em "Roma", evocando uma época e um mundo que poucos espectadores conhecem ou lembram, mas sentem. Capaz de resgatar a poesia dos pequenos gestos e a dor dos grandes erros, Cuáron cria um universo poderoso a partir da sua infância na cidade do México, num ano de todos os perigos, desilusões e crescimentos. Filmar a vida, às vezes, pode ser o maior triunfo cinematográfico. Mas não no meu top


1 - "Phantom Thread": Por mais voltas que dê e filmes que veja, volto sempre à obra-prima com que Paul Thomas Anderson nos brindou este ano. Cada vez mais um olho balzaquiano no que toca à desconstrução de indivíduos, Paul Thomas Anderson começa o filme como um desfile visual, um mundo dentro de mundos, para lentamente fazer cair o pano e revelar que afinal estamos a ver uma soberba comédia de duelos mentais, um jogo amoroso como se vê pouco actualmente, retorcido e meigo, terno e ácido, carícias de brutidão. Pela sublime realização, a banda sonora que enche de fumo o que a escrita deixa em branco e as performances incríveis (saudamos-te, Day-Lewis, mas que não se esqueça Vicky Krieps), "Phantom Thread" é o meu filme de 2018.

P.S: O pior filme de 2018 para mim? "Peregrinação". Tão mau que me sinto envergonhado como português por tê-lo a representar-me nos Óscares.

domingo, dezembro 16, 2018

Perugrinação 11: Cuscovilhar


Abro os olhos e verifico se chorei bílis durante a noite. Não. Pelo menos, a minha cara não está amarela. Há vagas impressões no meu rio de pensamento. Acho que estou num segundo andar. Acho que há escadas. Acho que fez frio mas agora não sei. Estou enrodilhado demais para querer descobrir. Claro que o meu estômago ainda parece a barragem do Assuão caso tivesse sido rebentada, mas por agora, tento remendá-la. O meu corpo não se queixa de mais nada. Combinámos na noite anterior que a manhã seria livre, de maneira a que todos pudessem recuperar daquilo que passei a baptizar como "Carreira do Inferno", apenas para me lembrar que essa deve ser uma marca registada da família artística de Tony e seus muchachos. É a primeira vez, nestas viagens, que me permito a estar longe em inactividade. Não me é natural uma viagem para tão distante e instalar-me como se estivesse em Portugal. É queimar tempo que paguei. No entanto, sinto-me fraco e meio derrotado, ainda que aquela nuvem negra que me envolveu quando cheguei a Lima tenha passado a um cinzentinho menos agressivo, sei que está sempre comigo e não gosto de enfrentá-la em inferioridade física. Já me bastam a mental e a espiritual.


No entanto, quanto mais tempo estou sozinho comigo, com os meus pensamentos, maior e  potente é a tempestade. Um banho de água quente, meio que para retirar a segunda pessoa que se forma sempre na nossa pele quando estamos presos numa camioneta durante 24 horas, e verifico que não se formou qualquer tipo de bolor na cabeça. Decido correr o risco de me alimentar. Quando abro a porta do quarto, brilha um sol que pede licença. Dá imediatamente para a cidade. Ensaio respirar fundo, não morro. Estou localizado na zona história de Cusco e há uma pequena varanda do lado direito onde posso vê-la. Se chamam a Lisboa a cidade da sete colinas, Cusco é a colina de uma cidade só. Nenúfares laranjas agrupam-se, feitos de telhas, e ocasionalmente pequenas praças interrompem a sua formação. Há bastante barulho, música, carros e tudo o que imagino que caiba numa cidade turística. Para se entender esta urbe, há dois dados fundamentais. O primeiro é que esta é a maior cidade dos Andes; o segundo é que ainda hoje é considerada, na Constituição, a capital histórica do país, por ter sido o centro do Império Inca. Entrámos nessa zona e está claro que a partir de agora, o turismo vai dominar os nossos destinos. Quem deseja visitar as ruínas dessa civilização mater do Peru, pára obrigatoriamente aqui, seja para usá-la como base de expedições e passeios, seja para procurar a melhor maneira de chegar ao El Dorado do turista da idade da Internet: Macchu Pichu. Quando subo mais um andar e chego à sala do pequeno-almoço - excepcionalmente servido para nós perto da hora de almoço, que atenciosos - ouvem-se várias línguas. Reconheço russo e francês, mas também japonês e um pouco de mandarim (não estranhem: uma vez aprendida uma língua oriental, as outras distinguem-se muito mais facilmente do que se pensa. A cadência e as inflexões identificam-se numa audição rápida). Cusco serve de porta giratória para tudo o que é guardado pela cordilheira andina.


Umas torradas servem de desculpa de alimento. Verifico se o leite é mesmo de vaca - lembrar sempre como me armadilharam com produtos lácteos de égua no Quirguistão - e ponho o pé nas águas da digestão. Não me afundo. Combina-se uma hora à frente do hotel para começar a visita; e quando começamos a percorrer as ruas, estreitas e empedradas, cheias de gente e bulício, confusas na sua desorganização e aparente falta de planeamento, começa a surgir um estranho cruzamento entre arquitectura colonial e inca que não combina. O Pedro, nosso guia, habita no Peru e a sua cidade é precisamente Cusco. Conta algumas lendas e histórias, experiências na cidade. Prefere-a a Lima, talvez por ser auto-suficiente e funcionar um pouco como aldeia grande. Na zona histórica, toda a gente se conhece e até os cães aparentemente vadios têm donos improvisados. Ele conhece-os todos pelo nome. O Pedro vai explicando histórias sobre a cidade, mas a minha atenção é dividida a meio. Sofro do mal das pessoas que lêem muito: conhecem o mundo todo sem nunca terem postos os pés onde que quer fosse. Prefiro dar atenção ao espaço, ao momento, às pessoas. A cidade é o exemplo perfeito da colonização espanhola nas Américas. Ao contrário de Portugal, que no Brasil encontrou apenas tribos indígenas sem grande formação ou complexidade civilizacional, bandos de gente metidos na selva e vivendo do que esta lhes dava, os Espanhóis deram por si a disputar este espaço com algumas das civilizações culturalmente mais complexas do seu tempo. Pensamos sempre nelas como antiquíssimas, mas os Incas e os Aztecas, por exemplo, eram contemporâneos da Expansão e haviam surgido dois séculos antes da mesma ter começado. Por isso, enquanto que os Portugueses construíram as primeiras cidades em território brasileiro, os nosso vizinhos e rivais apagaram o património urbano destes grandes povos. O que vemos em Cusco hoje não é Cusco: é a versão espanhola da mesma. Como quem quer comer um leitão da Bairrada, mas se contenta com uma imitação tragada numa estação de serviço em Aveiras. Em 1950, um violento terramoto destruiu um mosteiro dominicano. Por baixo, encontraram o que restava de um templo solar inca, no qual o sismo não tocou. Um desastre natural não conseguiu realizar aquilo que a crueldade e estupidez humana acabaram por fazer. Espanha passou pela América como uma placa tectónica esmagando a decência humana. Portugal teria provavelmente feito o mesmo no Brasil; simplesmente não tinha muito que apagar da memória. Mesmo assim, aquilo que fez não é de boa memória nem pouco mais ou menos.


É por isso que o maior monumento de Cusco, hoje em dia, é a Catedral de São Domingo, um horrendo exemplo de arte colonial, uma cópia do que se fazia na altura na Europa, mas feito com o mesmo cuidado e atenção que eu dedico a qualquer pessoa que me diz "Sabes, o que te animava era apanhares um bocado de sol". Localiza-se na Plaza de Armas, a principal de Cusco, e é vigiada, oh ironia, pela estátua de Pachacuti, herói da resistência Inca. Segurando uma lança, o seu dedo aponta em tom acusador para a montanha maior que guarda como uma muralha os habitantes de Cusco. Se o nosso olhar seguir a indicação, encontramos uma outra estátua, de um Cristo Branco, enorme, imitando o Redentor do Rio de Janeiro. Uma anedota fala que existe um diálogo subjacente entre ambas - Pachacuti inquire: "Foste tu quem roubou o meu ouro?", à qual o beatífico filho designado de Deus se faz de desentendido, abrindo os braços: "Eu? Não tenho cá nada!". Como símbolo maior do passado peruano. um misticismo especial rodeia todo este espaço. Cusco significa "A rocha do mocho" e diz respeito à sua lenda fundacional. Dois irmãos, os Ayar (Manco e Oche... não confundir com Rómulo e Remo. Voltaremos aos dois primeiros para a semana), são considerados os pais fundados dos Incas. Um deles, procurando o melhor sítio para fundar uma nova cidade, centro de um Império, criou umas asas e voou até aqui. Pousando numa rocha, assinalou então esse desígnio. Ouvirei falar mais vezes desta parelha, fundamental para se entender a mundividência inca. Mais do que em Lima, por exemplo, sente-se uma ideia de "incanismo", um orgulho particular em descender-se de algo genuíno vindo do passado. Vemos mais caras quechua, também, a clivagem populacional é óbvia.

Passeamos um pouco pelas ruelas apertadas e depois de várias voltas -e da passagem por um restaurante chamado "Cicciolina" - a mais conhecida rua de Cusco surge debaixo das nossas sapatilhas. O motivo que lhe dá distinção é, pondo isto à bruta, um calhau na parede; mas um calhau com estranhas propriedades. Assenta numa parede inca, muito diferente das restantes. São quadradas  e empilhadas noutra pedras geometricamente desenhadas, quase todas regulares... coisa que está não é. Entre esquinas e derivações, esta pedra tem doze ângulos e só de olhar, calculo que pese pelo menos uma tonelada. Para quem não consegue ter uma ideia disto, este bloco de granito, uma pedra que é densa e duríssima, foi cortado de um bloco maior doze vezes. Isto sem qualquer tipo de instrumento moderno. É verdade que, e isto é uma descoberta recente de etnólgoos e antropólogos que passaram décadas a conviver com tribos meso-americanas, há o conhecimento de uma pasta, com base em produtos naturais, que permite amolecer os minerais da pedra e facilita o seu corte. Ainda assim, mesmo com este desconto, continua a ser dos muitos enigmas das arquitecturas sul-americanas antes da chegada dos Europeus. Ninguém muito bem sequer se este tipo de arquitectura sólida e aparentemente simples é Inca ou já existia antes de a civilização se instalar neste vale.


Depois de passarmos pelo local de Cusco que serve o melhor café - conselho do Pedro, um pequenino recanto gerido por um casal argentino - subimos até um arco elevado com uma grande vista sobre a cidade. A guardar a sua entrada, um velhinho peruano, dono de uma mercearia, que cobra um sol de entrada antes de abrir velhos portões de ferro. O sol ainda está a cair lentamente e o alaranjado dos telhados brilha mais forte. É uma vista incrível, de uma urbe sem espaço para nada mais. Cheia, sem costuras. Incrivelmente fotografável, mas a minha máquina está manca. Uso a teleobjectiva e retiro uma amostra do que vejo. Entre nós, surgem umas palhaçadas, poses,  jogos de perspectiva. Temos tempo, está-se memso bem aqui. Descemos. Uma ladeira conduz-nos até à entrada de um hostel com pinta irlandesa. Num largo de igreja à minha frente, uns garotos jogam à bola. Troco uns passes com eles enquanto fotografo. O Pedro conduz-nos ao espaço interior do hostel, onde um pequeno caminho instala-se até um bar com esplanada que observa Cusco. É a altura do pôr do sol. Não se está mal. Tiro a minha segunda foto do projecto "Borges nas Américas" e ao vê-la, reparo que estou mesmo careca; mas já não me sinto tão mal do estômago. A comunidade médica ignorou durante anos os benefícios curativos de uma máquina fotográfica. Com o sol, vai-se também a temperatura agradável e fica frio depressa. Nem todo o álcool do mundo pode aquecer o gelo andino.

À noite, no regresso ao quarto de hotel, vejo a Beatriz pela primeira vez. É um brinquedo com alma, um Pinóquio que não engana quanto à sua fofura. Não me sinto mais perto dela, mas algo em mim se compõe mais humano, mais sensível. Ao adormecer, penso nesta cidade conquistada, nos sues mistérios, de como há tanto do mundo que a Beatriz verá um dia, mais do que eu, mais do que todos nós. Segundos antes de adormecer, palavras confortam-me. Conseguem esgueirar-me um sorriso. Não estou, de certeza, enjoado.



segunda-feira, novembro 26, 2018

Perugrinação 10: Alucinação


Nunca quis ser cobaia científica. Não é uma carreira pela qual tenha optado, em parte por falta de vocação. Também digo o mesmo em relação à docência, mas aí há quem diga que tenho jeito. na verdade, gosto de me ouvir falar. Por não me sujeitar a experiências, jamais tive o contacto directo com os efeitos nefastos que uma viagem de autocarro de 24 horas pode ter no frágil cérebro humano, dos riscos inerentes à meninge esponjosa que se agarrou às paredes do crânio. Quer dizer, agora posso riscar isso da minha bucket list...  o que faria caso lá estivesse. Apenas quando cheguei ao Peru soube que algures no final da primeira semana me esperava um trajecto praticamente sem parança desde Nazca até Cusco, aprisionado numa camioneta encarnada. Sei que sou do Benfica, mas não vivo assim tão enredado nas cores do clube. Não sabia o que pensar. Confiei que com livros, uns jogos de telemóvel e a minha simples predisposição para soltar a mente - vamos riscar esta, no entanto... a minha mente amiúde é tão inimiga que de mim que poderia, eventualmente, partir um vidro e saltar para a estrada sem qualquer apego pela minha integridade física - me iria safar, distrair ou simplesmente esquecer que o Tempo é um conceito Na realidade, 24 horas são números. Algo psicológico. Nem existe, na prática. É deixar seguir; e vendo o mapa, até se percebe a estafa: entre as duas cidades peruanas, ergue-se a inabalável muralha dos Andes. Qualquer estrada que atravesse as montanhas pode ser um preliminar orgásmico se o vosso fetiche for a morte enredada em metal esmagado de colisão. Não foi para isso que paguei uma batelada do dinheiro. Para além disso, seria uma desonra para mim ter sobrevivido à Ásia Central apenas para morrer aqui. A Ásia sempre traria o martírio e a glória mediática da zona perigosa, da tensão política. Aqui, sobrava-me a monótona motivação das curvas de estrada, do alcatrão gelado feito ringue de patinagem. Se é para isso, prefiro contar para a estatística das estradas portuguesas.

Confesso que tenho memórias difusas da viagem. Se me mostrarem imagens de satélite, sei indicar-vos por onde passei, talvez. Nem sei. Talvez pela falta de oxigénio na cabine do autocarro, do pouco sono ou simplesmente por ter entrado neste tormento depois da experiência gregoriana da avioneta, tive o cuidado de, ao longo da viagem, ter sempre comigo um caderninho. O melhor que posso fazer é uma experiência de fluxo de consciência. Vou transcrever-vos, integralmente, tudo aquilo que anotei, ainda que algumas coisas possam ser inventadas ou sido apenas alucinações bem vívidas. Embora estas crónicas vivam de anotações - tenho boa memória, mas não iria longe como gravador humano - é a primeira vez que a salganhada que são os meus jogos mentais e os pormenores que me ficam no rio das recordações atracam directamente nas vossas margens. Não é a mais elegante experiência do mundo, e o facto de a solidão dominar a minha vida prova como um contacto demasiaro directo comigo não ganharia o voto popular na Eurovisão. Mas é a viagem como ela foi.

"Dedicatórias fúnebras em carros peruanos: para a avó para a prima, para a mãe, para a Juanita e o Pedro. Vidros traseiros tapados a negros com inscrições macabras a branco. No Peru, as crianças usam todas uniformes escolares e vão de mão dada para a escola sem vigilância adulta como se tivessem saído de uma qualquer Arca de Nóe escondida dos nossos olhos. Arequipa na base dos Andes. É quase tão desinteressante quanto ficar a ver o gelo derreter no congelador. É grande, mas não é grande merda. Camioneta pára, pequeno-almoço à beira da estrada. Há umas banquinhas, compro pão, se calhar tem bichos e não sei. Já comi pior e não morri. Nem é mau o pão e é do dia, não ganhou ainda a consistência para servir de arma de mão para palestinianos. Oito da manhã e vê-se o sol. Arequipa está a mais de dois mil metros de altitude. Saímos do deserto, estamos na montanha. Ainda não sinto nada, hei-de sentir se continuarmos a subir. O autocarro afasta-se e vejo o pináculo de uma torre branca ao longe. Deve ser igreja. Consegui dormir umas horas durante a viagem e não sei como. Entretanto, põe a meio um filme com o Nicolas Cage. Acho que é o Gone in 60 seconds. Posso estar enganado. Ando tão grogue que já nem consigo reconhecer filme do Nicolas Cage. Deve ser a altitude.

Paragem em Lagunillas. É um pequeno lago onde o sol bate e parece azul. Não tenho a certeza, a luz é demasiado intensa. Ponho os pés fora do autocarro e de repente, ganho três cabeças, a julgar pelo afluxo sanguíneo ao meu topo. O céu tem um martelo e espetou-me tal marretada que só não me encolho como um acordeão porque Peru não é o país de Piazolla. Uma placa indica os 4400 metros de altitude. Só de ler, dói-me tudo, da ponta do fémur ao interior do baço. A vista é linda, mas o meu sangue ganhou a consistência de cimento termal. Caminho com cuidado, vejo velhinhas vendendo têxteis como quem está na feira. Está claro que o deslocado aqui sou eu, uma espécie de Pingu andando quase de lado, no seu esforço a lidar com esta alteração do paradigma geográfico. Com esforço, consigo regressar ao interior da camioneta, onde alapar o meu esplendoroso rabinho no assento faz desaparecer aquela gostosa sensação de ser estátua de pedra grogue. Passo pelo guia, o Alex. Suspira alarvemente e tenta sorrir, embora parte de mim ache que na verdade este moço tema que o sorriso fique cravado na face sem se mover até que regressemos ao nível do mar. Eu já estive aos 3500 metros. Estou certo de que não sofrerei com isto.


Comício político no meio de uma rotunda em Imata. Duas carrinhas de caixa aberta paradas, um homem discursa a uma multidão que tem acompanhado a marcha dos veículos. Tenho a sensação de ver lamas dançando a Macarena e ainda um cortejo de vicunhas amestradas pintadas por Frida Kahlo naquela fase em que tentou imitar as Pinturas Negras de Goya. Mas pode ser só a ausência súbita de oxigénio. As pessoas parecem contentes, acham que o homem lhes resolverá os problemas. Não lhe dou sete meses até fugir para o Paraguai casado com um hamster chamado Nestor, que conhece pessoalmente Avelino Ferreira Torres.   

Numa colina imensa, e escrito a alvas garrafais letras de pedra, leio "Cristo Viene". Não sei se é publicidade a uma banda de death metal andina, mas parece-me estranho. Não vejo Cristo, provavelmente foi curar o mal da altitude. Ouço Elliot Smith no telemóvel. Juro que o vejo do outro lado do vidro, acenando com o anúncio em fundo. Canta "Between the bars" e sem ninguém ao meu lado no assento, seguro a mão de alguém. É mais palpável que a borracha da minha alma e tão concreta quanto a mesma.

O Tiago e a Vanessa falam português, são portugueses. Andam a passear no Peru e andaram já pelos Andes. Falam maravilhas, mas também histórias de horror com a altitude. Criticam a massificação do turismo do Peru, enquanto ela dá nota a um restaurante no Tripadvisor.

O Peru odeia-se bem quando a decisão se colocar lombas de estrada que não destoariam no Muro de Berlim se mostra corriqueira. É como se tivessem pegado em manilhas de canalização, cortado ao meio e achassem "Ná, isto não vai atrapalhar o trânsito." Quando uma aparece, a camioneta trava, quase estática e balança os passageiros ao ritmo da elevação. Tudo o que o meu estômago não precisava. Temo o pior.

Mais uma voltinha, mais um saco com vómito. Desta vez não me caiu na roupa. O passageiro à minha frente dá um salto quando me vê. Acho que o ouvi chamar-me "La llorona". 

Um buffet em algures. Estou tão revirado que já nem reparo no nome das terras. Convencem-me a comer algo, embora sinta que o meu estômago foi passado a napalm. Na mesa em que me sento, vejo um unicórnio, Napoleão Bonaparte com uma coroa de frutas na cabeça, uma versão do Terminator interpretada pela Carmen Miranda e um adepto do FCP com quem se pode conversar de bolas sem que ele se torne imediatamente insuportável. Acho que mais do que comida, devia procurar oxigénio. Tanto que agarro uma colher, penso, e afinal tenho na mão uma palheta. Um bocadinho de sopa no prato. Ainda consigo sorvê-lo todo. O napalm queimou tudo, a sopa nem sequer serve de chuva. Não têm de me carregar em ombros de regresso ao autocarro, mas só porque eu nem tenho ombros.

Escuridão, montanhas, estradas em obras, muita poeira. Ou então, são os meus olhos em electricidade estática.

Chegada. A dúvida é se consigo sequer pôr um pé à frente do outro. Ergo-me e consigo. Mas não vencerei a maratona."

A partir daqui, os rabiscos acabam. Mas o que me recordo é suficiente. O grupo juntou-se em dois táxis, malas arrumadas e atravessámos a periferia de Cusco rumo ao centro histórico onde fica o hotel. Trânsito confuso em estradas largas dá lugar a revienga totalmente assassinas para o meu estado comatoso já dentro da cidade em ruas estreitas. Depois de um confronto entre três táxis que chegam em simultâneo a um pequeno largo e decidem na hora a ordem de prioridade, o destino não está longe. Já não me vejo ao espelho há uns dias, mas enquanto me carrego, juntamente com as minhas mochilas, pouso tudo com abandono e estardalhaço-me no sofá. Presumo que o meu aspecto deva ser assustador, pois rapidamente se dispõem a preparar um chá de coca, sem toque escobariano. Beberrico um pouco e não fico muito melhor. A coisa vai indo ao sítio. Não sei se é da altitude ou simplesmente de dois dias seguidos a revirar as entranhas, desconfio desta última. Já estive em altitude, nunca fiquei assim. No entanto, por precaução, oferecem-me cinco minutos de oxigénio em botija, É um equipamento standard nesta cidade a 3400 metros de altitude. Disseram-me que veria no Peru paisafens de tirar a respiração. Não se referiam a isto, certamente.





quinta-feira, novembro 15, 2018

Perugrinação 9: Não alinhado em Nazca


"Dame mi paz , por favor!!!!" e assim canta uma pungente voz masculina que enquanto se espalha pela carrinha, balançando o ritmo da cumbia, reforça aquele que é para mim o drama maior da existência: querermos sossego e não nos ser permitido gozá-lo. Aqui, no entanto, tal parece possível: saimos de Huacachina bem cedo e uma viagem de 150 quilómetros através do deserto rochoso e baço conduz-nos a Nazca. O sol estampa-se no solo e pelo caminho, atravessamos algumas pequenas aldeias, ajuntamentos de casa e gente entre faixas de alcatrão. A certa altura, numa paragem para esticar as pernas, a carrinha estaciona junto a um casebre de cimento solitário no meio de tudo isto. Ninguém para trás, nada para a frente. À porta, um garoto imberbe entretém-se a estampar carrinhos de brincar uns contra os outros. Faz vozes, inventa personagens, tem o maior recreio do mundo, útil quando se é o último riso infantil do deserto. Um oásis, afinal. Olhamo-nos e aceno-lhe, ele sorri e devolve, mostra-me um dos carros. Talvez seja um convite. Não posso aceitá-lo, temos de partir, há um horário em cumprimento constante; e afinal, dirigimo-nos ao mistério principal que me trouxe ao Peru.


As chamadas linhas de Nazca são um conjunto de complexos desenhos gravados no chão rochoso do deserto que lhes dá nome, delineados e construídos pela civilização homónima. Entre 500 AC e 500 DC, por razões que ainda hoje nos são desconhecidas, uma sociedade inteira girou em torno de dois objectivos: arranjar comida a partir de uma zona semi-desértica e espalhar pelo seu território rabiscos brancos que só podem ser vistos em altitude. Não é difícil entender como é que o fizeram: o complicado é explicá-lo. Isto não foi propriamente o passatemplo displicente de um solitário - tornou-se na meta recorrente de séculos. Se nos dirigirmos para Norte, ao longo do vale de Palpa até Paracas, encontramos mais conjuntos daquele que deve ser o mais épico jogo de Pictionary que a história humana registou. As figuras variam em tamanho e elaboração. Há simples linhas que terão provavelmente alguma intenção de mapeamento ou orientação astronómica, mas o que obviamente impressiona são as intrincadas representações de animais e figuras antropomórficas que se estendem ao longo dos ermos de Nazca, por cinquenta quilómetros quadrados. Encontramos macacos, baleias, colibris, flores, jaguares, peixes e outras representações que são recorrentes até em culturas andinas posteriores. A imagem de animais marinhos mistifica, pois o mar fica longe daqui, mas a partir do momento em que aceitamos que estas linhas são uma realidade, tudo o mais é bizarria acessória.

A primeira menção que lhes é feita por europeus data do século XVI, por um explorador espanhol, mas só começaram a ser referidas com seriedade e método na década de 20 do século passado, quando alguns aviadores amadores e expedições militares entraram em contacto com um oásis arqueológico no deserto. Desde 1940 que os estudiosos ocidentais, em colaboração com académicos peruanos, têm sido mais sérios. Mas apenas nos aproximámos mais de perceber como funcionava a civilização Nazca, não da sua intenção quando deixou no mundo estas enigmáticas marcas. Há uns anos, activistas zelosos do Greenpeace mostraram que estão bem a marimbar para o ambiente histórico quanto estragaram alguns dos desenhos numa manifestação; e este ano, um cmaionista pouco sóbrio guinou para o parque arquelógico onde danificou também algumas linhas. Em ambos os casos o governo peruano interveio a sério. Para eles, isto é de honra. Os vorazes teóricos de de antigos astronautas encontraram aqui uma inesgotável fonte de conspirações e intriga, mas o facto é que mesmo com instrumentos simples, um conjunto reduzido de pessoas conseguia desenhar qualquer um destes esboços na rocha. Os cépticos riem, mas o facto é que ninguém consegue explicar o motivo e esse é o grande busílis e a razão pela qual as linhas de Nazca não só hipnotizam na sua faíscanta intensidade curiosa, atraindo todos os anos milhares de turistas a esta inóspita região peruana, mas também incomodam quem acha que o mundo se explica facilmente e a História nada tem de misterioso e é uma narrativa linear e simples. Crentes iludidos passam atestados de estupidez à raça humana assentindo que algum tipo de engenharia complexa na nossa infância civilizacional só se pode dever a intervenções extraterrestres; empedernidos desmistificadores mataram no interior de si próprios a capacidade para se admirarem e sonharem perante o mistério e o desconhecido. Nazca recorda-me sempre a razão pela qual gosto de História - a eterna, permanente e inesgotável capacidade de escapar a quem quer prendê-la numa jaula de tédio, porque baseando-se em motivações humanas, será por natureza imprevisível e imensa nas suas explicações.


A melhor maneira de observar estes mistérios é a partir do céu, embora haja no parque arquelógico uma torre com treze metros de altura a partir da qual se vêem duas figuras e meia. A pouca distância das figuras, um aeródromo oferece a possibilidade de voos regulares diários sobre o deserto, meia hora de procura a partir do firmamento. O turista compra bilhete, espera sentadinho a sua vez e se assim o desejar, ainda lhe carimbam o passaporte -  é uma viagem à séria. Chegamos e temos logo direito a check-in. Dividimo-nos por duas passagens, por sermos nove bandidos e haver cinco lugares na avioneta que oferece o serviço. Muitos algarismos para a conta simples de assistirmos ao fantástico. Enquanto esperamos, não há muitas possibilidades de diversão. Na sala de espera do aeródromo, três televisões passam em loop um documentário da National Geographic, narrado pelo inconfundível Peter Coyote, onde vários arqueólogos discorrem sobre quem eram os Nazca, o que faziam, de onde vieram e para onde foram. Sento-me durante um pouco a assistir, a verdade é que sei mais sobre as linhas do que sobre aqueles que as fizeram. A própria National Geographic não consegue escapar ao folclore místico dos alienígenas.

No exterior, várias bancas vendem souvenirs e t-shirts remetentes a este local e o tema dos nossos irmãos de outros planetas recorre quase sempre. Embora seja mais céptico hoje do que o era na minha adolescência, é-me impossível estar na América do Sul sem sentir um pequeno tremor do meu interesse pelo fenómeno OVNI. Recordo-me sempre de um documentário chamado "Ovnis nos Andes", que embora se centrasse no Chile, cravou no meu cérebro este éter de arcano desconhecido que de mão dada faz dançar discos voadores e a austral América. A certa altura, um trio de radialistas chilenos, habitantes de uma pequena cidade mineira, descrevia como, durante uma emissão ao ar livre, viram com uma multidão luzes movendo-se sobre a grande cordilheira que forma a espinha dorsal deste continente. Isto enquanto falavam de OVNI na rádio. A história é tão incrível e contada tão expressiva e tão natural em simultâneo, um entusiasmo infantil e irrepreensível, que já a recriei em vários escritos de ficção. Anos mais tarde, tive a oportunidade de encontrar uma gravação online, no Youtube. Quando me recordo da mesma, a fornalha do apaixonado por mistérios, que em mim arde incandescente em várias intensidades, entra no ponto de fusão. Sei que é algo que as pessoas aprenderam a associar-me e o mesmo amigo que me encaminhou o documentário de que falei acima disse-me que nas questões do amor, o melhor era revelar o mais tardiamente possível este interesse que alguns de nós temos por algo que corre debaixo da realidade. Terá a sua razão, pois é preciso é uma loucura maior até do que o próprio amor, esta de procurar o que todos consideram insanidade ou ridículo. Felizmente, estou numa parte do mundo onde o ridículo é tão parte do tecido da realidade quanto o banal.


O primeiro grupo chega da viagem. Se todos gostaram, quase ninguém demonstra. Há um ar tumular na apresentação geral, um certo agouro que dá a entender que não voaram numa avioneta, mas sim em corvos. Comenta-se que a viagem é muito agitada e os aparelhos pouco estáveis. É nesta altura que o fascínio me cai sobre os olhos e me recordo de um pormenor importantíssimo: a relação muito ténue que o meu estômago mantém com movimentos bruscos. Pode-se dizer que é tão antagónica quanto a que Sérgio Conceição estabelece com o yoga ou a que Rui Vitória possui com qualquer tipo de auto-crítica. No entanto, é tarde demais para voltar atrás: 80 dólares estão pagos e para dizer a verdade, a ideia de ver aquela obsessão que alimentei desde criança enraizou-se tanto na minha cabeça que estou por tudo. Devia lembrar-me que os momentos em que estou por tudo são invariavelmente seguidos de desastres dignos do sismo de 1755, mas o meu voo está prestes a partir e manco de uma lente, tento concentrar-me em como usar uma tele-objectiva para melhor trazer a recordação visual das linhas. Somos conduzidos ao check-in. Eu, a Sofia, o Jorge, a Cina e um peruano jovial e sorridente. Apresenta-se, é o Flores, traz consigo equipamento fotográfico suficiente para cobrir as noivas de Santo António. Saímos do aeródromo, o sol brilha tanto quando caminhamos pela pista. Ao lado da nossa avioneta, os pilotos saúdam-nos. Perguntam-nos se queremos tirar fotos ali, eu escolho não fazê-lo. Quanto mais olho para as asas e para a fuselagem, finas e estou certo que feitas de papel cavalinho, mais reconsidero algumas das minhas opções de vida. A viagem de barco no ano anterior entre duas ilhas das Faroe retine dentro de mim como o sino de alerta do Titanic, mas não há volta a dar. Meia hora no ar está garantida. Pelo meu peso, apontam-me para que me sente à frente. Pelo menos, não estou nos lugares mais problemáticos. Ao meu lado, o Flores ainda não desligou a voltagem dental. Parece esperar algum tipo de serviço de bordo mais exótico de que não fomos avisados.

A avioneta levanta voo normalmente. O piloto, Ernesto, e o co-piloto, Gustavo, apresentam-se com um discurso perfeitamente ensaiado e batido. Já devem ter dito isto tantas vezes que a língua apresenta calos de expressão. Enquanto o avião ganha altitude, referem as linhas, o seu mistério, a possibilidade de extraterrestres serem os seus autores. No Peru, história e pseudo-história cruzam-se com a mesma facilidade com que a avioneta abana à mínima rajada de vento. No entanto, sinto-me bem, sólido. Tomo a minha precaução, agarrando com força elefantina o meu cinto de segurança, que se fosse feito de laranjas teria enchido o cockpit de sumo, tal a força com que o aperto. Como um metrónomo regular, o co-piloto, que faz também as vezes de guia, avisa-nos: a primeira figura, "La baleña" surgirá daí a 42 segundos. Que precisão, penso, que mestre do ar. Não contei pelo relógio para saber se era verdade. Observando o deserto pela janela, já registei algumas linhas rectas sem forma, mas de facto, vai surgindo na encosta do pequeno monte um aglomerado de traços que parecem ganhar forma. Ligo a máquina, preparo-me. "La baleña", anuncia o cicerone, e o seu colega de manche na mão dá uma súbita guinada e a avioneta coloca-se em posição perpendicular em relação ao solo. A redonda janela, que antes estava ao meu lado, aparece por baixo e as minhas costelas arrastam todo o meu sistema digestivo para o conforto do meu baço.Há em mim uma tentativa de sarcasmo, mas corro o risco de cuspir bílis literal. De facto, lá no solo nada uma baleia, com um olho enorme, chapinhando no mar de areia; tentativamente, tiro uma foto, mas concluo que tenho uma escolha simples: ou fotografo ou vejo as figuras. Combinar ambas pode ser um desastre de proporções Bolsonarianas. No entanto, não ficamos por aqui - a avionta regressa à sua posição normal e efectua a mesma manobra para o lado oposto. Novamente a direito, novamente com os pulmões no meu calcanhar e a minha vesícula biliar perdida algures no meu pescoço.


É neste  momento que a minha capacidade de possuir uma excelente memória se volta contra mim. Algures na sala de espera, vi um mapa desta zona. O percurso de avioneta inclui perto de vinte figuras. Tal significa que estes dois moços repetirão as guinadas da morte vezes suficientes para que queira imitar os pássaros, com a diferença de ser muito menos aerodinâmico. Não há qualquer tipo de hipótese na minha guerra: está perdida. O plano de emergência é accionado: duas mãos segurando o cinto de segurança, pernas bem juntas uma à outra, olhos fechados e respiração larga e controlada. Num bolso do banco à minha frente, vejo um saco de papel. Pelo menos, estes carniceiros entendem bem os efeitos da sua barbárie. Num acesso insano, dou por mim a rezar a Viracocha e amaldiçoando todos os conquistadores espanhóis por não terem dizimiado a totalidade dos antepassados de quem guia os destinos da avioneta. O que se segue é hediondo e devia surgir lado a lado com o genocídio do Ruanda como um dos maiores crimes perpetrados contra a raça humana. A cada anúncio, a sensação de suores frios que acompanha os condenados à morte antes de a guilhotina descer. "A la derecha, lo Mono; a la ezquierda, lo Mono. Perfecto". O discurso é sempre o mesmo,maquinal, mudam os nomes: la Araña; el Colibri; lo Pájaro Gigante; las Árboles; é toda uma constelação de monstros que se reuniram numa missão para, quais Vingadores do meu estômago, me deixarem prostrado. Não me rendo, ainda assim.  A cada anúncio de nova figura, permito-me abrir os olhos durante uns dez, quinze segundos. Posso garantir que vi todas as figuras, todinhas; e mesmo no meio de tudo isto, consigo ficar fascinado com a sua nitidez, o seu poderoso e hipnótico magnetismo. A ideia de passear num museu sem paredes e que é visto melhor quando estamos fora do nosso elementos, linhas brancas que rasgam o nosso chão apenas para nos fugirem porque melhor se explicam quando não estamos onde podemos ser mais nós. É uma poesia que só me ocorre mais tarde, mas sentia-a naqueles momentos de terror puro. Acreditem que é preciso uma força desmesurada para contrabalançar os meus momentos de agrura. Se estas imagens o conseguem, estou quase tentado a professar que uma inteligência superior as colocou de facto ali.

Quando anuciam que vamos regressar e aterraremos daí a dez minutos, sou capaz de jurar que o nome da última figura era "Lo Thanos", pois sinto toda a minha resistência a ficar em pó. Passei o pior e resta-me apenas uma linha recta em direcção ao aeródromo; no entanto, uma pulsão quase irresistível leva-me a puxar do saco de papel e oferecer-me um golpe de misericórdia. Talvez porque foi educado a criar as condições perfeitas para envergonhar europeus devido ao que fizemos ao Império Inca, o piloto faz saltar o avião e a minha boca falha o alvo quase por completo, dando às minhas calças um odor muito mais poderoso do que lixívia Chanel. Ao meu lado, Flores, continua a sorrir. Com o telemóvel, filma-se em toda a experiência, estende-me o polegar como que dizendo que está tudo bem. Desconhece que em Ceira, um polegar tão descarado facilmente se interpreta como um convite aberto a que lhe parta a cara com um extintor que está mesmo debaixo do meu banco. A tentação, e a boa educação, quase me obrigam e imagino o sorriso deste Flores em tons de rosa sangue. Resisto, até porque estou tão combalido que creio que acabaria por me agredir ao invés. O vómito sossega-me e os restantes minutos de voo são passados quase morto, sem nada sentir. Damos mais uma voltinha para observar uns poços Nazca e a avioneta desce. As rodas tocam no solo e o aparelho imobiliza-se. Esperam que tenhamos tido uma boa viagem e quero lançar sobre os pilotos o resultado mais óbvio da sua crueldade. Novamente, travo-me. Desejo que o Flores descubra que um deles lhe anda a comer a namorada e que haja um combate de navalhada ali na pista. Não acontece. De facto, que país este, que falta de classe.

Os meus companheiros de viagem procuram saber como estou e algum deve ter julgado que expeli sangue, pela palidez das minhas feições. Confessam que também eles sofreram com a viagem, mas ninguém foi tão abertamente honesto quanto eu. Contiveram-se. É isso que separa os indivíduos que sabem viver em sociedade dos magarefes que fazem do mundo uma choldra gregoriana. Demoro a recuperar. Quando vamos embora, aportamos numa pequena gelataria onde se comem uns crepes e tento convencer-me a devorar um. Neste momento, eu sou uma figura de Nazca: "El derreado". Traçam-me contornos irregulares, gelatinosos, mortos. Sou caracterizado pelo facto de possuir visibilidade até a baixa altitude, sendo inconfundível pela minha cor alva e disposição cadavérica. Podem encontrar-me estendido num sofá, num restaurante de Nazca. Não me parece que tão cedo me tirem de lá, nem qualquer camionista, nem activista de Green Peace; mas não pensem sequer em vê-lo de um avião. É muito provável que vos vomite um míssil terra-ar movido a um ódio por fotógrafos peruanos. E depois de terem lido este relato, pouco há-de sobrar de mistério acerca dos meus desígnios.

quinta-feira, novembro 01, 2018

Perugrinação 8: Mar de areia


O meu maior pecado como cinéfilo é nunca ter visto "Lawrence da Arábia". Não é apenas por ser um clássico inegável - tenho-o em DVD há mais de dez anos e encontra-se ali numa prateleira, tão quietinho quanto as areias do deserto. Não há grandes justificações para isso, nem sequer desculpas. É só imperdoável. No entanto, sei o filme de cor, acho que o vi às partes toda a minha vida e a única coisa que acontecerá quando finalmente me sentar num sofá para me penitenciar será simplesmente ordená-las. Já dele falei a alunos, explicando cenas e pormenores e para quem acha que tal é estranho, desconstruir um filme a que nunca se assistiu, a resposta é simples: David Lean é um desses realizadores com pormenores que valem filmes inteiros e se Peter O'Toole é o nome que mais vezes associamos ao épico das areias que Lean nos deixou, outro homem está acima em importância e esse homem é Freddie Young. Permitam-me um momentinho de nerdice no meio do paleio de viajante. Young ganhou três vezes o Oscar de Fotografia sempre com obras de David Lean e é o artista por excelência do grande plano e do ecrã cheio. Em "Lawrence da Arábia", e repito que nunca vi o filme, fixou-me na ideia a imagem desértica que me tem acompanhado, um cruzamento de vapor de luz com o amarelo carregado da extensão, a linha do horizonte como passagem para um outro mundo, o beijo do calor nas faces encarquilhadas pela desidratação, fantasmas brancos que levitam sem caminhar. Aguardava por isso a minha chegada a um deserto real, um túmulo de grãos infinitos. No plano de viagem, sublinhara com vários traços Huacachina.


Huacachina é um lugarejo, uma horinha a sul de Paracas. Pobre e desolado, um amontoado de tijolos pintados de branco que separados dão casas, atrai milhares de turistas, ainda que a população permanente seja de apenas cem pessoas. Ninguem está interessado no entulho - chegam aqui para fazer uma estrada de três quilómetros de forma a contemplar o único oásis de toda a América do Sul. O que não falta a este continente são desertos, desde o Atacama até à Patagónia, e no Peru temos mais abaixo Nazca e Sechura; mas o que distingue este é a presença de um pequeno aquífero em torno do que qual todos os edifícios são construídos. É o umbigo do deserto. O local simboliza o Peru de tal forma que aparece na parte de trás da nota de 50 sol - as notas peruanas usam o esquema "tromba importante à frente/local emblemático atrás". Aliás, podemos dizer que é símbolo de todo o continente, tem até a alcunha de "Oásis da América". Como qualquer símbolo, há uma lenda. Conta-se que existia aqui uma pequena lagoa e uma princesa - não sei aquela que era cantada pelo Boss AC - pôs-se bem desnuda para melhor apreciar o fresquinho aquático na pele. No entanto, reparando na chegada de um caçador bem másculo, não teve mais tempo do que o demorado para vestir-se, deixando para trás na confusão um espelho. Segundo parece, o espelho assentou no fundo da lagoa e esta cresceu até ao tamanho que podemos ver hoje. Portanto, isto é literalmente um espelho de água


Hoje em dia, pouco mais é do que uma atracção turística. Água tem sido retirada do oásis por gananciosos donos de terras contíguas, obrigando um consórcio de outros donos de terra gananciosos a descarregar líquido no lago de maneira a manter o aspecto aprazível. Na verdade, Huacachina não parece ser aquela experiência genuína que pensei, simplesmente mais um show-off para turista ver, daqueles que infelizmente têm povoado um pouco a visita ao Peru. O que procuram os turistas? Terapêutica, as águas têm fama milagreiras; diversão, existem várias actividades que se podem fazer por aqui, desde sandboarding até uma voltinha de buggy nas dunas. A nós está-nos vedado o buggy. Aparentemente, na semana anterior à nossa chegada, o filho de um dos proprietários dos buggys decidiu que estava na hora de conduzir um dos veículos ainda que, e repare-se, não tivesse carta de condução. Responsabilizou-se pelas vidas de cinco estrangeiros e a meio da voltinha, o buggy capotou e entalou um alemão, matando-o. Deutschland under alles; e o Peru fica com uma complicada situação em mãos com o mais rico e poderoso país europeu. Nada mau para o garoto, acabou por se destacar de alguma maneira. Um dos grandes problemas da vaga de turismo no país é que a maior parte das empresas de serviços não são reguladas e isso é ainda mais comum e evidente em zonas pobres como esta; o pior de tudo é que, como segundo a lei os buggys não são considerados veículos sequer, tecnicamente a única coisa ilegal por aqui foi mesmo o alemão morto. Apesar de a minha viagem não contemplar uma visita à Amazónia, sinto que de alguma maneira acabei por vir até à selva.

Como não há passeio de buggy, o programa depois do almoço é livre. O calor mostra-se pleno, tenho até oportunidade de vestir calções. O hotel onde ficamos guarda uma piscina e é tentador ficar refastelado; mas Freddie Young espera mais de mim. Junto-me ao Jorge, o meu colega de quarto, numa pequena exploração às dunas. Da varanda exterior, as dunas elevadas são perfeitamente visíveis. Pelo seu dorso dourado, trepam formigas de duas pernas, sombras que o sol projecta, impelindo-se até à linha que faz de topo da colina. Seguindo para o lado esquerdo com o olhar, encontramos a promessa de vastidão do deserto. Pegamos nas nossas máquinas, mochila às costas e esperam-nos as areias. Meio da tarde e quase ninguém está junto ao Oásis. Quase todos foram atraídos pela áurea praia sem mar. Também lá chegamos e molhamos os pés sem água. Penso em descalçar-me, mas o melhor é jogar pelo seguro. O deserto de Huacachina não é grande, mas quando se procura o seu fim, ali bem perto daquela linha com que o sol salta à corda, não se encontra. De máquina fotográfica erguida, os pormenores são muitos. Fotografar é um desenrasque na captura da luz e aqui, pela altura das dunas e a inconstância das areias, ocasionalmente sopradas pela aragem, essa luz tem como parente o imprevisto.


Enquanto o Jorge demora o seu tempo ao nível do oásis, eu procuro a altitude, um outro ponto de vista. À minha frente, uma grande duna inclina-se e presto-me a subi-la. Não é fácil caminhar em areia. Se concebem que numa praia já cansa, imaginem fazê-lo num plano picado. A chegada ao topo convida a sentar na areia e apreciar. O tapete deserto foi baldeado, a espaços limpo, noutros afundado. Pegadas misturam-se, desnorteiam-se, rumos indefinidos em passos vividos. Quando o vento sopra, é uma vassoura, apenas para segundos depois alguém estragar o um arranjo. Estou num mar com densidade suficiente para permanecer à tona sem nadar e neste momento, vejo tudo do topo de uma onda, todas as vagas próximas e distantes. É como se a ondulação fizesse pausa e pose para ser fotografada. É um mar amarelo, mas estamos longe da China, e ainda assim este amarelo começa a alranjar com a descida lenta do sol. Tiro da mochila "A história universal da infâmia, de Jorge Luis Borges e dou início ao projecto "Borges nas Américas". Primeiro finjo que o leio; depois, é apenas o livro contemplando o deserto. O meu olhar e o meu pensamento, no entanto, estão no pico que encima a duna onde há umas horas vi formigas humanas a caminho. O Jorge desapareceu, por isso estou por minha conta. Desço este monte de areia a correr e num ápice, estou no sopé do seguinte.

Tenho tempo. Em meu redor, uma maralha de gente, quase todos com menos de trinta anos. Dão vivas, riem, alguns levam pranchas de madeira debaixo do braço. Trepam esta enorme duna apenas para descê-la, e há pouco motivos melhores para fazê-lo. Eu observo o sol, calculo o seu ângulo, apenas quero encontrar um ponto perfeito para fotografar o seu ocaso no deserto, Lawrence do Peru. Encontro alguns dos meus companheiros de grupo já alapados, sem grande vontade de continuar a subida, longa e desgastante. Quando observo o topo, vejo um magote, esperando a sua vez para surfar a areia. Talvez não seja o melhor ambiente para aquilo a que me proponho. Sento-me então e da mochila sai um tripé que comprei especialmente para a ocasião. Quase que me sinto um fotógrafo verdadeiro. A vista é incrível, a maior caixa de areia que já vi, reverte-me para uma certa criancice de escola. Quero rebolar, mas o adulto em mim sabe o quão difícil é retirar areia do corpo e da roupa. No entanto, sinto os seus pequenos grãos aventurando-se nos pelos da minha perna, com se fossem lianas. Tripé montado, máquina acoplada e de súbito, a hora mágica. O sol precipita-se para a fronteira entre o dia e a noite e enquanto o faz, desliga em banho maria o seu motor de combustão. São cores tórridas que temperam a paisagem, Em primeiro, uma bola de fogo enorme quase engole o resto da Terra; depois um pirilampo num interstício de presença. A passagem é rápida, mas encanta os olhos. Fascino-me como um ocidental que vê o deserto em estreia. É magnífico e pleno de vida, estranho como um deserto pode florescer desta maneira. Mesmo por entre a vacuidade turística deste espaço, há coisas que a saciedade humana não apaga. Esta é uma delas; mas a saciedade tem os seus poderes e de súbito, um desses mesmos turistas passa, dá-me um encontrão e reacção dominó, toco no tripé e a minha máquina mergulha de lente na areia.


Quem é fotógrafo, consegue imaginar o que me atravessou pela espinal medula. Uma mistura de gelo, fúria épica de Super Guerreiro e vontade de dançar o corridinho na focinheira do turista. Um diagrama de Venn conseguiria traduzir o meu sentimento na perfeição. Nem respiro fundo sequer, que guardei o ar nos pulmões. Retiro a minha câmara com cuidado do seu possível túmulo e com a minha t-shirt e o máximo cuidado que os meus tamancos com cinco dedos podem reunir, limpo o que posso. Ponto positivo; o filtro polarizador estava colocado, logo a lente não ficou riscada. Mas o zoom e o foco encrencam, dificultam o seu movimento. Entraram grãos de areia suficientes para comprometer a actividade fotográfica. Algumas fotos de teste, a lente ainda funciona. O astro solar sumiu; no oásis, a luz artifical liga-se e vários pontos amarelos surgem reflectidos no espelho da princesa. Com calma, arrumo a máquina e tento arranjar uma fórmula qualquer de esperança no deserto em que se transformou o meu interior. Não de areia, gelado. É bonito, o espectáculo à minha frente, mas só consigo pensar naquilo que ainda não está e vem por aí, as linhas de Nazca, Macchu Pichu, os Andes, aquela altitude toda... Estarei lá, mas só trarei palavras, as minhas, o que é fraca tralha quando quero mostrar o que me abriu olhos e consciência. As minhas expectativas desaparecem como a luz de um fósforo. Afundar-me no deserto. Tendo em conta a minha vida, é possível na sua totalidade. Afinal, eu sou o cinéfilo que nunca viu "Lawrence of Arabia"

quinta-feira, outubro 25, 2018

Perugrinação 7: Entregue aos bichos


Se têm a minha idade ou próxima, recordam-se de "A arca de Noé", um enternecedor programa das manhãs de fim de semana onde éramos convidados a fazer amigos entre os animais. Ninguém pode negar que havia ali uma magia qualquer, que fazia com que apresentadores tão díspares quanto Carlos Alberto Moniz, Fialho Gouveia e Ana do Carmo pudessem ter encabeçado as várias temporadas sem que nenhum parecesse fora do seu elemento. Talvez fosse da garotada, mas sempre senti que tal se devia aos bichos. Peludos, pequenos, assanhados ou até deitados no seu canto... A fauna vasta com que eu, como criança, era presenteado todas as semanas abriu a minha curiosidade e empatia para o mundo animal. Como qualquer bom programa de televisão deve fazer, educou; e ficou-me sempre pendurada na privação a ausência de um animal de estimação. Apareceram uns comigo já adulto, mas nunca é bem a mesma coisa. Do que os meus pais contam, fui uma vez ao Zoo de Lisboa, muito novo, e as poucas vezes que lá voltei convenceram-me de que não é assim que se vêem animais. Na nossa antropologia, quanto mais nos afastámos da nossa natureza original, para segurança, maior surgiu a necessidade de trazer a selva até nós, seres urbanos, ao invés de habitarmos entre o indomável. "A arca de Noé" deve ter batido nessa savana profunda da minha mente que ainda julga crescer em África; e enquanto cresço, cresce também em mim a ideia de que os animais não pertencem em jaulas ou até com liberdade cortada enquanto nos servem de apoio psicológico e consolo de solidão. Devem ser livres. Mas os humanos, e muita gente não acorda para esta realidade, estão condenados ao castigo de dominar a Natureza para daí retirarem o conforto que os impede de regressar à selvajaria ou de forma tão simples abraçar bichos, tê-los consigo. Não gosto de zoológicos; abomino circos; acho parques de diversão marinha uma das piores coisas que criámos como espécie. Quando cheguei ao molhe principal de Paracas, para me enfiar num barco rumo à Reserva Natural das Islas Ballestas, queria descobrir que ser voyeur indesejado também iria contra a minha moral.

Pequena introdução: as Islas Ballestas são um pequeno arquipélago situado ao largo de Pisco. Ganharam a alcunha de "Galápagos dos pobres", porque também aqui se concentra uma riqueza incrível de vida animal, que vai desde pinguins e leões marinhos até golfinhos e pelicanos. Devido a isto e à sensibilidade do habitat, foram declaradas reserva protegida pelo governo peruano. Tal significa que não podemos nem caminhar sobre elas, nem pensar minimamente em nadar nas suas águas. Estamos prontos para partir às oito da manhã e já uma multidão aguarda o seu lugar numa das várias lanchas rápidas que fazem a travessia de meia hora desde Paracas até ao arquipélago. O céu cinzento é cimento de nuvens que estão para ficar, mas não há frio. Quando me passam um colete de salvação tão laranja que quase me julgo Dennis Bergkamp no seu auge futebolístico, coloco-o e penso no que aconteceria se caísse da embarcação. As águas negras, escuras, quase nocturnas deste Pacífico mastodonte fazem-me criar que não mais viria à tona. Instalo-me na minha cadeira e de forma instintiva, enrolo uma corda no meu antebraço. Já andei várias vezes de barco, mas não me apetece arriscar. O meu maior medo, na verdade, é que a relação precária que mantenho há tantos anos com o meu estômago volte para me assombrar. Mas tal não acontecerá.
Hoje, pelo menos. Voltaremos a isso mais tarde.


O passeio começa. A saída lenta, morrinha, faz-se por entre as várias cascas de noz que se desculpam como barcos de pescadores ancoradas na baía de Paracas. Quase todos velhos, nenhum cinzentão como o céu. Alguns nomes são clássicos ("Santa Maria"), outros trágicos ("La llorona", que não sei mesmo se tem a ver com o famoso mito da assombração lacrimejante da América Central) ou simplesmente épicos ("La falsa virgen", numa declaração de intenções). Ninguém está a bordo, parece-me, embora de quando em vez se ouça o ranger das cordas, o estalar da madeira pressionada pelo salitre. No topo de alguns mastros, corvos e pelicanos esperam os mestres na saída para o mar, ou agourando ainda mais a vida dura de pescadores. Nada que preocupe o meu guia, que vai lenta e metodicamente contando a história de Paracas e das ilhas. A voz ganha uma outra vida quando nos cruzamos com o enigma maior que é "O candelabro". Já o mencionei na crónica anterior. É um geóglifo, portanto um desenho  feito em matéria rochosa, tão declarado e evidente que não pode ser coincidência. 180 metros de comprimento, 2500 anos de idade. Ninguém sabe quem o fez ou para que servia. A comparação mais evidente é com os rascunhos de Nazca, mas tal civilização habitou centenas de quilómetros mais a sul. Estampado numa duna que enfrenta o mar, quer saudar marinheiros, ninguém mais. Nunca foi apagado pelo vento, pela chuva ou pelo tempo: o seu poder está no mistério e na sugestão. Deve ter sido difícil fazer "O candelabro" nesta zona exposta aos elementos. Para mais, um propósito estava definido por quem o fez - sabemos que alinha pela constelação do Cruzeiro do Sul, como tantas outras construções antigas com uma clara intenção astronómica. No entanto, o local onde se encontra numa teve qualquer importância. Não é ponto de partida ou chegada para o que seja. É deserto. Onde se instalou uma desenho de iluminação que nem por isso traz mais luz sobre este assunto.


O céu começa a cobrir-se de dezenas de aves. Estamos a chegar e um arco de rocha cumprimenta-nos, agarrado a um enorme rochedo onde descansam pássaros. Apesar de me sentir desconfortável por este papel de turista entre câmaras que se erguem na sua intrusão, é impressionante a quantidade de animais que aqui se encontram. Onde é possível que algum se instale, a rocha some. As lanchas circulam lentamente em redor das ilhas e podemos observar que a maior parte das espécies está na hora da sesta. São exércitos parados, esperando ordens. Aqui e ali, guardo momentos, como um desorientado pinguim que caminha tenuemente numa falésia, quase caindo quase voando. Está isolado - os seus colegas encontram-se mais acima, protegidos. Pertencem a uma das mais raras espécies, o pinguim de Humboldt. Como o barco não está tapado, parece um safari e nem de propósito surgem os leões marinhos, refastelados nos cantos possíveis. Passamos muito perto de alguns, em rochas, bocejando, abrançando o princípio da inactividade. A semelhança com salsichas cinzentas é admirável e apenas os bigodes e um focinho quase Chapliniano impedem a confusão. Não mostram medo, talvez alguma indiferença perante os nossos olhos. Cada movimento seu causa um enorme frenesim entre os turistas que me acompanham. Alguns seguram máquina e telemóvel em simultâneo, numa turba feroz de registos. Seja para redes sociais, seja simplesmente para reforçar a sua presença no momento. De qualquer forma, os animais voltam ser usados para nos trazer de volta à vida e no prolongamento do nossos conforto preguiçoso. Talvez tenhamos vindo até estes, mas ainda assim não consigo sentir que, de alguma forma, continuam a ser nossos prisioneiros.


Vejo um guindaste partindo do topo de uma faléssia e logo de seguida, um aglomerado de casebres brancos, cobertos de excrementos voadores. No seu prolongamento, um cais de madeira suspenso, um milagre que o tempo ainda não derrubou na sepultura marinha. Há algumas décadas, estas ilhas mostravam outro tipo de riqueza ao mundo, ainda que também tivesse origem animal. Mineiros chegavam a este cais dispostos a extrair o guano escondido nas cavernas interiores, caca das várias espécies de morcegos aqui residentes. Pelos seus altos níveis de nitrogénio, era um fertilizante muito procurado, inclusivé na Europa. Ainda hoje se dá essa recolha, embora já não sejam necessárias estas infra-estruturas; para além disso, é uma actividade extremamente regulada, de forma a não perturbar estas espécies. Tal tarefa é deixada aos turistas... Os bichos, no entanto, não se deixam incomodar. Ocuparam estes restos humanos como seus e podemos vê-los descontraídamente a balouçar nas podres cordas ou observando-nos, num reflexo devolvido, pousados nas decrépitas tábuas do cais. Tudo à nossa volta produz estímulo e em redor dos barcos, leões marinhos mostram a cabeça, mergulhando e ressurgindo aos seus desejos. Antes que os caros se afastem em definitivo, uma visão bem fofa - num recanto de uma caverna, três pinguins bébés felpudos mexem-se em agitação, parecem esperar comida. São brancos com salpicos negros, imitam pássaros verticias com penas que cedo cairão. Não se despedem, nem precisam. Sinto-me um intruso, ainda que em meu redor a mania dos flashes. cresça. Percebo que o meu turismo é outro, um onde estou sozinho com o resto do mundo. Ver pinguins e outros mamíferos que só tive em frente no Oceanário é bom, mas não sei se um pouco de mim não morre com isso. Pior: se um pouco de mim se deveria sentir mais vivo com isso e não consegue.

Já em terra, ainda ouço palavras como cormoran e boobies, uma delas mais divertida do que outra. Dizem respeito a pássaros. Todos são amantes da zoologia agora O autocarro da Peru Hop espera-nos com destino a Huacachina. Antes de entrar, passo por uma casa com um gigantesco cartaz autárquico. Apoia sem hesitações Lorenzo, um homem com uma visão, uma promessa: vai trazer para Paracas uma planta que tranforma água salgada em doce e resolver assim os crónicos problemas de abastecimento líquido da região. De merda Paracas nunca teve falta, oh ironia. Seria estranho que uma vila tão dependente dos animais fosse finalmente salva por plantas. Assim como assim, aqui nunca transmitiram "A arca de Noé". Mas aposto que algures nos anos 80, passou uma versão peruana do Capitão Planeta. 

quinta-feira, outubro 18, 2018

Perugrinação 6: As várias faces de Paracas


A sul de Lima, o deserto estende-se como quer. Terras áridas onde chove pouco no Inverno e no Verão pouco toca deixaram-se secar e cobrir de areia. É esta a paisagem que nos acompanha pela Pan-Americana Sur até chegarmos a Pisco, um amontoado de casas que é cidadezinha. Desviando-nos da estrada, uma longa recta aproxima-nos de um companheiro que nos sossegou ao longo de duzentos e tal quilómetros: o Oceano Pacífico. Encontramo-lo a guardar uma pequena vilazinha que pareceu brotar do meio da areia apenas e só para servir de justificação ao encontro com o mar. Paracas. Não é muito difícil descrevê-la para quem já passou férias numa localidade de veraneio. Há toda uma aparência de uso, mas a impressão mais do que certa de que só se dá ao luxo de ter vida durante o Verão. Paracas é praia e deserto, basicamente, embora só o segundo se aproveite. Existem areais junto ao mar, mas são pouco extensos e sujos. A vila é de pescadores, acima de tudo. Quem quiser aproveitar os dias balneares, tem outras localizações mais favoráveis a sul; mas aqui, o que existe é uma longa avenida com casas nas laterais.

É dominada por uma imagem familiar de trezentas mil t-shirts, uma figura esguia com canos nas costas que sopra numa flauta que germina da sua face. A sua imagem é replicada em banners e tabuletas e toldos de lona, representando negócios tão díspares como diversão nocturna ou artesanato. O mais estranho, penso, é que este é Kokopelli, um deus da fertilidade comum nas planícies norte-americanas, bem longínquas do deserto peruano. Ainda que alguns mitos Hopi nos digam que é ele quem se esconde naquela sombra que todos podemos ver na Lua (a versão ocidental identifica essa mesma sombra como o cavaleiro São Jorge, o que se só mostra o quanto as bases de valores podem ser radicalmente diferentes em todo o mundo), e que daí salta para a Terra de forma a emprenhar meninas jovens mais descuidadas, não sei o que raio o atraiu para abandonar a base permanente de David Bowie e trocá-la por Paracas. Mas os deuses têm os seus motivos, quem sou eu para questioná-los? Um deus da fertilidade no deserto: se temos fascistas em democracias, não é por aqui que o mundo se torna estranho.


Depois de deixarmos a bagagem no Los Frayles, o objectivo é almoçar. Como a imaginação não abunda, o restaurante escolhido tem o mesmo nome da localidade. O positivo é que nos oferece uma vista bem agradável sobre a marina. Brilha o sol que se reflecte nas águas que parecem prata e sob as quais as embarcações baloiçam. Por momentos, se fecharmos os olhos, até é Verão. Os pratos de peixe são recomendados numa zona piscatória, mas acabo por comer um bitoque apenas e só porque adoro o nome com que é apresentado no menu: bistec à la Pobre. Apropriado. Com tudo, estamos quase a meio da tarde quando nos levantamos. Sobra tempo para caminhar no passeio pedonal junto ao mar. Vejo os alertas de tsunami que aqui se mostram recorrentes e olhando a extensão da Baía de Paracas, que tornou esta zona apetecível a quem vive do mar, imagino que deva preocupar quem ali vive. O turismo é a principal actividade e inventa-se de tudo um pouco para esmifrar a vaquinha turística das suas gotas de ouro mais exíguas. Há um homem de meia idade, boné de lado, sentado num muro, cigarrando descontraídamente. Sempre que vê um grupo de turistas de máquina fotográfica ao pescoço, puxa de um saco do bolso. Os pelicanos peruanos são comuns nesta costa e ele sabe-o bem. Do saco tira pedaços de peixe e lança aos pássaros, deles sacando poses para deliciar os fotógrafos amadores. Claro que, como se fosse um arrumador ornitológico, vem logo depois de mão estendida para pedir uns cobres como se desempenhasse um fundamental dever para o viajante e lhe devessemos mostrar mais gratidão. Quando alguém não o faz, resmunga-se um rumor estranho e fico a pensar se lá como cá se riscam cromados e se à falta de capots é a pele quem paga a ousadia. Não lhe pergunto, até porque não me aproveito dos seus serviços. Já fotografei destes bichos em Lima e não sou fã do seu último álbum.


O sol vai descendo. O final de tarde é preenchido pelo pôr do sol, numa cenário de múltiplos pontões que saindo da praia, fazem um contraste incrível na câmara. Gaivotas e outros pássaros sentem que o dia finda e aproveitam uma última vez para estender as suas penas ao beijo do calor. Paracas é conhecida também pela sua diversidade de vida e ecossistemas. Ao seu largo localiza-se a Reserva Natural da Ballestas, que visitaremos amanhã, e a quantidade de barcos aqui existente atesta a diversidade de peixe nas suas águas. No entanto, esta zona revela ser de incrível ironia, pois esta abundância biológica convive com outra Reserva Natural, mas de deserto. Só a visitaremos amanhã, mas Kokopelli sai da Lua e faz-nos avançar no tempo. O mar convive com a planície desértica num cenário estranho, surreal. Ao seu largo passa a corrente marinha de Humboldt, considerada a mais produtiva do planeta, aumentando ainda mais a ironia. A partir de vários miradouros no deserto, observamos não só o oceano, mas também várias estruturas rochosas que se tornaram postais da região. Uma que já não veremos intacta é "la Catedral", um arco gigante de arenito que no seu auge  apresentava também algumas espirais elevadas como torres de uma igreja gótica. Infelizmente, um terramoto em 2007 danificou gravemente a estrutura e já só observamos o que sobra. A Natureza dá e a Natureza tira. Vale ainda assim a pena pela oportunidade rara de fotografar no mesmo dia extensões de areia na costa e no interior, para além de variadas espécias animais. Apesar da proximidade do mar, as praias não são banháveis. Isto inclui a fotografia mais conhecida de Paracas, a chamada Playa Roja. É um fenómeno à parte. Depois de nos habituarmos aos tons amarelados do deserto, eis que a nossa vista é agredida por um rasgão vermelho que o mar se ocupa de tapar às prestações. Não é um vermelho vivo, mas ocre, duro, resiliente. Não brilha, mas estampa-se na nossa memória. Um vermelho rico. O cinzento da manhã em que a visito faz ressaltar ainda mais o encarnado. Guardam-na um promontório rochoso longo e as dunas. Se não posso calcá-la, deito-me então e fotografo. À minha volta, dezenas de turistas fazem poses, tiram selfies, essa coisa toda. Eu busco areia. É por isso que sou esquisito e estou solteiro.


Como quase tudo o que rodeia as civlizações peruanas, também os Paracas que aqui viveram oferecem mistérios. O mais conhecido vem de achados arqueológicos que nos mostram que gostavam de alongar os crânios por motivos desconhecidos.... embora o clube de fãs de Erich Von Daniken, de quem vos falei nas primeiras crónicas, grite sempre que esta é a prova inequívoca de extraterrestres entre nós. Como em tudo o que é folclore, o principal mistério nem sequer se debate. O espaço da Reserva Natural tem um micro-clima muito particular que apenas encontra paralelo no deserto do Atacama. Basicamente, não chove. O vento e a falta de humidade tornam isto óbvio e a pergunta que se coloca é a da razão que levou uma civilização não só a instalar-se como a florescer num espaço assim. Deixa-nos a coçar a cabeça; e não estamos a falar simplesmente de uma excursão de pescadores que se afeiçoaram ao pescado da região. A cultura Paracas é a antecessora directa da civilização Nazca, que deixou a sua marca no solo não muito longe daqui, mais a Sul. Um voo de drone feito este ano, aliás, descobriu que por toda a extensão deste deserto estão desenhados geóglifos que atravessam o solo arenoso. Alguns são simples linhas geométricas, outros parecem representar figuras completamente diferentes das de Nazca. Vêm juntar-se ao mais conhecido, o famoso "El candelabro", de que falarei para a semana. A ser verdade, os Paracas deviam ter um conhecimento de engenharia bastante razoável e sabemos que dominavam técnicas de irrigação que deviam ser admiráveis, até porque ao contrário de outras civilizações que floresceram junto aos grandes rios, não há qualquer curso aquático actualmente na zona. Um mistério em cima do outro.


Naquele fim de tarde solarengo, na praia de Paracas, nada disto me preocupa ou sequer inquieta. Sento-me junto ao mar, programo a máquina, fotografo e o silêncio da época baixa é bem vindo. Aqui não se passa nada e se calhar devia, vim de tão longe que aborrecem-me viagens de nulo: Mas enquanto o sol me beija em continuado deleite, meio que encolho os ombros e aproveito. No plano da viagem, estou-me a guardar principalmente para a segunda metade, ainda que a primeira inclua Nazca e um deserto. Mas os Andes chamam-me e em Paracas, não há montanhas. Só de ironias. Há também comida boa, pouco irónica, e o descarado convite à nossa carteira, de tantas maneiras que comprovam uma máxima da teoria das civilizações: povos agricultores/pescadores, se enriquecerem o suficiente, tornam-se comerciais. Paracas tem múltiplas faces e identidades. No fundo, talvez devamos agradecer a estes profissionais do viajante: são os guardiões de uma identidade permanente numa terra de caleidoscópio.