sábado, dezembro 29, 2018

Top 10 de 2018: Cinema

E têm-me perguntado "Então, não tens top 10 de filmes para este ano?" Ora essa, apesar de ter visto muitos menos obras de 2018 do que devia - tend recuperado um pouco nestas últimas semanas - penso que vi cinema suficiente para não me envergonhar. O critério usado foi o da estreia nas salas portuguesas, portanto não estranhem algumas das escolhas. Será, apesar do mito que so vejo filmes da Marvel, bastante ecléctico. Espero. Antes, umas menções honrosas: "Cold war" estaria com certeza aqui, se não fosse o pedestre quarto de hora final; "Spider-man: into the spiderverse" e "Isle of dogs" são, apesar das óbvias diferenças de estilo, duas das grandes obras de animação do ano, embora não caibam aqui; "The other side of the wind", embora imperfeito, prova como Orson Welles, mesmo depois de morto, acompanhou muito bem os tempos; "BlackKklansman" é um regresso de Spike Lee à raiva com algo não gratuito a dizer; "A quiet place" mostra que não é preciso ser político para ser fazer um filme de terror ao qual devemos prestar atenção;"American animals" é um bom híbrido de documentário e ficção, mas precisava de mais documentário; "They shall not grow old" e "Won't be my neighbor" são dois dos documentários do ano, ambos lembrando outros tempos e outros homens de que o mundo actual precisa definitivamente. Posto isto, vamos ao top 10.


10 - "Avengers: Infinity war": O culminar de 20 filmes encadeados, com altos e baixos, mas extremamemte eficaz como obra de entretenimento e com um raro final que entra na cultura popular de tal forma que define um gesto, "the snap", que entra no vocabulário global subentendido


9 - "Three identical strangers": Começa como uma história de vida luminosa e no fim damos por nós num túnel de trevas imenso. Tal como "The imposter" antes de si - um dos meus documentarios preferidos dos últimos anos - funciona não apenas como veículo de informação, mas também um thriller de reviravoltas assombrosas e, em última instância, trágicas. Porque o bom documentário não tem de envergar bandeiras de hashtag para ser destacado.


8 - "The death of Stalin": Em simultâneo um filme histórico e uma sátira política, o filme de Armando Ianucci é tudo aquilo que não se conseguiu encontrar em tanta suposta comédia aclamada este ano ("Crazy rich asians" é um dos filmes mais banais de 2018. A ideia de que a raça dos actores deve contribuir para a valorização de um produto tem de acabar): actores que sabem o que fazem, ideias traduzidas em piadas que rasgam o ecrã e estupidez bem medida como reflexo dos egos que definem o mundo.


7 - "Mission Impossible: Fallout": Nenhum outro filme - aparte outro que está mais acima - me proporcionou uma experiência de adrenalina numa sala de cinema como este em 2018, desde revolver-me na cadeira a agarrar com força os braços da mesma.È do caralho. Como uma franchise chega ao sexto filme para dar lições num género específico de cinema (em particular a lição de que só parece novidade aquilo de que se esqueceu) é açgp que me ultrapassa. A última meia hora de "MI: Fallout" é um pináculo.


6 - "Leave no trace": Homem leva filha para viver afastados da civilização e cria-a no meio do mato. Nâo é "Captain Fantastic", é Debra Granik com um olhar clínico, humanista, complexo sobre a relação entre dois indivíduos em co-dependência, às margens da sociedade, mas sem vilanizar esta nem os que nela vivem e querem ajudar Ben Foster e Thomasin Mackenzie estão incríveis e o realismo da sua relação no filme torna o desenlace final devastador, mas inevitável.



5 - "You were never really here"/"First reformed": Um empate, duas obras protagonizados por dois homens que não estão de todo em plena presença do mundo. Na primeira, Lynne Ramsay realizada um excelente filme sobre um mercenário tão desprovido de alma, tão perdido no mundo, e ainda assim capaz de nos criar empatia graças à enorme performance de Joaquin Phoenix. È quase uma viagem poética visual sobre o que significa não estar vivo ainda que se respire; na segunda, Paul Schrader regressa ao convívio dos bons com a queda de graça de um homem de Deus sozinho numa Terra pela qual ninguém parece querer lutar, apenas para descobrir que, em última instância a salvação pode estar literalmente no outro.


4 - "The shape of water": Um ano depois, espero que já tenha deixado de ser moda falar mal dele apenas porque ganhou o Oscar. A consagração de Guillermo del Toro para os cegos, é uma proclamção de amor pelo cinema, pelo estranho e pelo próprio amor. Visaulmente espantoso, como seria de esperar, apontando ao que de monstruoso existe no Homem e ainda que sendo muito menos subtil do que devia, um assalto total às emoções do espectador que triunfa porque del Toro nunca abdica do que lhe é queirdo, nem parte de si. A principal lição do filme.


3 - "First man": Um triunfo cinematográfico. Talvez o melhor filme sobre exploração espacial desde "The right stuff", trata o Espaço como um papão, os seres humanos como anões frágeis, que usam latas de sardinha para lá chegar, e leva o espectador numa experiência espacial sem que nunca tenha de pagar uma fortuna a Elon Musk. Damien Chazelle percebe o ritmo, o uso da escuridão e do silêncio como poucos actualmente e na sala de cinema, senti-me positivamente abananado. Acrescenta que é um excelente estudo de peronsagem de Neil Armstrong. Será, a meu ver, o grande injustiçado nos Óscares deste ano, o que so contribui para aumentar a sua mística futuramente.


2 - "Roma": Alfonso Cuáron fala de si mesma e em vez de ouvirmos olhamos abismados. Este ano, houve vários usos fantásticos do preto e branco no cinema, mas nenhum como em "Roma", evocando uma época e um mundo que poucos espectadores conhecem ou lembram, mas sentem. Capaz de resgatar a poesia dos pequenos gestos e a dor dos grandes erros, Cuáron cria um universo poderoso a partir da sua infância na cidade do México, num ano de todos os perigos, desilusões e crescimentos. Filmar a vida, às vezes, pode ser o maior triunfo cinematográfico. Mas não no meu top


1 - "Phantom Thread": Por mais voltas que dê e filmes que veja, volto sempre à obra-prima com que Paul Thomas Anderson nos brindou este ano. Cada vez mais um olho balzaquiano no que toca à desconstrução de indivíduos, Paul Thomas Anderson começa o filme como um desfile visual, um mundo dentro de mundos, para lentamente fazer cair o pano e revelar que afinal estamos a ver uma soberba comédia de duelos mentais, um jogo amoroso como se vê pouco actualmente, retorcido e meigo, terno e ácido, carícias de brutidão. Pela sublime realização, a banda sonora que enche de fumo o que a escrita deixa em branco e as performances incríveis (saudamos-te, Day-Lewis, mas que não se esqueça Vicky Krieps), "Phantom Thread" é o meu filme de 2018.

P.S: O pior filme de 2018 para mim? "Peregrinação". Tão mau que me sinto envergonhado como português por tê-lo a representar-me nos Óscares.

domingo, dezembro 16, 2018

Perugrinação 11: Cuscovilhar


Abro os olhos e verifico se chorei bílis durante a noite. Não. Pelo menos, a minha cara não está amarela. Há vagas impressões no meu rio de pensamento. Acho que estou num segundo andar. Acho que há escadas. Acho que fez frio mas agora não sei. Estou enrodilhado demais para querer descobrir. Claro que o meu estômago ainda parece a barragem do Assuão caso tivesse sido rebentada, mas por agora, tento remendá-la. O meu corpo não se queixa de mais nada. Combinámos na noite anterior que a manhã seria livre, de maneira a que todos pudessem recuperar daquilo que passei a baptizar como "Carreira do Inferno", apenas para me lembrar que essa deve ser uma marca registada da família artística de Tony e seus muchachos. É a primeira vez, nestas viagens, que me permito a estar longe em inactividade. Não me é natural uma viagem para tão distante e instalar-me como se estivesse em Portugal. É queimar tempo que paguei. No entanto, sinto-me fraco e meio derrotado, ainda que aquela nuvem negra que me envolveu quando cheguei a Lima tenha passado a um cinzentinho menos agressivo, sei que está sempre comigo e não gosto de enfrentá-la em inferioridade física. Já me bastam a mental e a espiritual.


No entanto, quanto mais tempo estou sozinho comigo, com os meus pensamentos, maior e  potente é a tempestade. Um banho de água quente, meio que para retirar a segunda pessoa que se forma sempre na nossa pele quando estamos presos numa camioneta durante 24 horas, e verifico que não se formou qualquer tipo de bolor na cabeça. Decido correr o risco de me alimentar. Quando abro a porta do quarto, brilha um sol que pede licença. Dá imediatamente para a cidade. Ensaio respirar fundo, não morro. Estou localizado na zona história de Cusco e há uma pequena varanda do lado direito onde posso vê-la. Se chamam a Lisboa a cidade da sete colinas, Cusco é a colina de uma cidade só. Nenúfares laranjas agrupam-se, feitos de telhas, e ocasionalmente pequenas praças interrompem a sua formação. Há bastante barulho, música, carros e tudo o que imagino que caiba numa cidade turística. Para se entender esta urbe, há dois dados fundamentais. O primeiro é que esta é a maior cidade dos Andes; o segundo é que ainda hoje é considerada, na Constituição, a capital histórica do país, por ter sido o centro do Império Inca. Entrámos nessa zona e está claro que a partir de agora, o turismo vai dominar os nossos destinos. Quem deseja visitar as ruínas dessa civilização mater do Peru, pára obrigatoriamente aqui, seja para usá-la como base de expedições e passeios, seja para procurar a melhor maneira de chegar ao El Dorado do turista da idade da Internet: Macchu Pichu. Quando subo mais um andar e chego à sala do pequeno-almoço - excepcionalmente servido para nós perto da hora de almoço, que atenciosos - ouvem-se várias línguas. Reconheço russo e francês, mas também japonês e um pouco de mandarim (não estranhem: uma vez aprendida uma língua oriental, as outras distinguem-se muito mais facilmente do que se pensa. A cadência e as inflexões identificam-se numa audição rápida). Cusco serve de porta giratória para tudo o que é guardado pela cordilheira andina.


Umas torradas servem de desculpa de alimento. Verifico se o leite é mesmo de vaca - lembrar sempre como me armadilharam com produtos lácteos de égua no Quirguistão - e ponho o pé nas águas da digestão. Não me afundo. Combina-se uma hora à frente do hotel para começar a visita; e quando começamos a percorrer as ruas, estreitas e empedradas, cheias de gente e bulício, confusas na sua desorganização e aparente falta de planeamento, começa a surgir um estranho cruzamento entre arquitectura colonial e inca que não combina. O Pedro, nosso guia, habita no Peru e a sua cidade é precisamente Cusco. Conta algumas lendas e histórias, experiências na cidade. Prefere-a a Lima, talvez por ser auto-suficiente e funcionar um pouco como aldeia grande. Na zona histórica, toda a gente se conhece e até os cães aparentemente vadios têm donos improvisados. Ele conhece-os todos pelo nome. O Pedro vai explicando histórias sobre a cidade, mas a minha atenção é dividida a meio. Sofro do mal das pessoas que lêem muito: conhecem o mundo todo sem nunca terem postos os pés onde que quer fosse. Prefiro dar atenção ao espaço, ao momento, às pessoas. A cidade é o exemplo perfeito da colonização espanhola nas Américas. Ao contrário de Portugal, que no Brasil encontrou apenas tribos indígenas sem grande formação ou complexidade civilizacional, bandos de gente metidos na selva e vivendo do que esta lhes dava, os Espanhóis deram por si a disputar este espaço com algumas das civilizações culturalmente mais complexas do seu tempo. Pensamos sempre nelas como antiquíssimas, mas os Incas e os Aztecas, por exemplo, eram contemporâneos da Expansão e haviam surgido dois séculos antes da mesma ter começado. Por isso, enquanto que os Portugueses construíram as primeiras cidades em território brasileiro, os nosso vizinhos e rivais apagaram o património urbano destes grandes povos. O que vemos em Cusco hoje não é Cusco: é a versão espanhola da mesma. Como quem quer comer um leitão da Bairrada, mas se contenta com uma imitação tragada numa estação de serviço em Aveiras. Em 1950, um violento terramoto destruiu um mosteiro dominicano. Por baixo, encontraram o que restava de um templo solar inca, no qual o sismo não tocou. Um desastre natural não conseguiu realizar aquilo que a crueldade e estupidez humana acabaram por fazer. Espanha passou pela América como uma placa tectónica esmagando a decência humana. Portugal teria provavelmente feito o mesmo no Brasil; simplesmente não tinha muito que apagar da memória. Mesmo assim, aquilo que fez não é de boa memória nem pouco mais ou menos.


É por isso que o maior monumento de Cusco, hoje em dia, é a Catedral de São Domingo, um horrendo exemplo de arte colonial, uma cópia do que se fazia na altura na Europa, mas feito com o mesmo cuidado e atenção que eu dedico a qualquer pessoa que me diz "Sabes, o que te animava era apanhares um bocado de sol". Localiza-se na Plaza de Armas, a principal de Cusco, e é vigiada, oh ironia, pela estátua de Pachacuti, herói da resistência Inca. Segurando uma lança, o seu dedo aponta em tom acusador para a montanha maior que guarda como uma muralha os habitantes de Cusco. Se o nosso olhar seguir a indicação, encontramos uma outra estátua, de um Cristo Branco, enorme, imitando o Redentor do Rio de Janeiro. Uma anedota fala que existe um diálogo subjacente entre ambas - Pachacuti inquire: "Foste tu quem roubou o meu ouro?", à qual o beatífico filho designado de Deus se faz de desentendido, abrindo os braços: "Eu? Não tenho cá nada!". Como símbolo maior do passado peruano. um misticismo especial rodeia todo este espaço. Cusco significa "A rocha do mocho" e diz respeito à sua lenda fundacional. Dois irmãos, os Ayar (Manco e Oche... não confundir com Rómulo e Remo. Voltaremos aos dois primeiros para a semana), são considerados os pais fundados dos Incas. Um deles, procurando o melhor sítio para fundar uma nova cidade, centro de um Império, criou umas asas e voou até aqui. Pousando numa rocha, assinalou então esse desígnio. Ouvirei falar mais vezes desta parelha, fundamental para se entender a mundividência inca. Mais do que em Lima, por exemplo, sente-se uma ideia de "incanismo", um orgulho particular em descender-se de algo genuíno vindo do passado. Vemos mais caras quechua, também, a clivagem populacional é óbvia.

Passeamos um pouco pelas ruelas apertadas e depois de várias voltas -e da passagem por um restaurante chamado "Cicciolina" - a mais conhecida rua de Cusco surge debaixo das nossas sapatilhas. O motivo que lhe dá distinção é, pondo isto à bruta, um calhau na parede; mas um calhau com estranhas propriedades. Assenta numa parede inca, muito diferente das restantes. São quadradas  e empilhadas noutra pedras geometricamente desenhadas, quase todas regulares... coisa que está não é. Entre esquinas e derivações, esta pedra tem doze ângulos e só de olhar, calculo que pese pelo menos uma tonelada. Para quem não consegue ter uma ideia disto, este bloco de granito, uma pedra que é densa e duríssima, foi cortado de um bloco maior doze vezes. Isto sem qualquer tipo de instrumento moderno. É verdade que, e isto é uma descoberta recente de etnólgoos e antropólogos que passaram décadas a conviver com tribos meso-americanas, há o conhecimento de uma pasta, com base em produtos naturais, que permite amolecer os minerais da pedra e facilita o seu corte. Ainda assim, mesmo com este desconto, continua a ser dos muitos enigmas das arquitecturas sul-americanas antes da chegada dos Europeus. Ninguém muito bem sequer se este tipo de arquitectura sólida e aparentemente simples é Inca ou já existia antes de a civilização se instalar neste vale.


Depois de passarmos pelo local de Cusco que serve o melhor café - conselho do Pedro, um pequenino recanto gerido por um casal argentino - subimos até um arco elevado com uma grande vista sobre a cidade. A guardar a sua entrada, um velhinho peruano, dono de uma mercearia, que cobra um sol de entrada antes de abrir velhos portões de ferro. O sol ainda está a cair lentamente e o alaranjado dos telhados brilha mais forte. É uma vista incrível, de uma urbe sem espaço para nada mais. Cheia, sem costuras. Incrivelmente fotografável, mas a minha máquina está manca. Uso a teleobjectiva e retiro uma amostra do que vejo. Entre nós, surgem umas palhaçadas, poses,  jogos de perspectiva. Temos tempo, está-se memso bem aqui. Descemos. Uma ladeira conduz-nos até à entrada de um hostel com pinta irlandesa. Num largo de igreja à minha frente, uns garotos jogam à bola. Troco uns passes com eles enquanto fotografo. O Pedro conduz-nos ao espaço interior do hostel, onde um pequeno caminho instala-se até um bar com esplanada que observa Cusco. É a altura do pôr do sol. Não se está mal. Tiro a minha segunda foto do projecto "Borges nas Américas" e ao vê-la, reparo que estou mesmo careca; mas já não me sinto tão mal do estômago. A comunidade médica ignorou durante anos os benefícios curativos de uma máquina fotográfica. Com o sol, vai-se também a temperatura agradável e fica frio depressa. Nem todo o álcool do mundo pode aquecer o gelo andino.

À noite, no regresso ao quarto de hotel, vejo a Beatriz pela primeira vez. É um brinquedo com alma, um Pinóquio que não engana quanto à sua fofura. Não me sinto mais perto dela, mas algo em mim se compõe mais humano, mais sensível. Ao adormecer, penso nesta cidade conquistada, nos sues mistérios, de como há tanto do mundo que a Beatriz verá um dia, mais do que eu, mais do que todos nós. Segundos antes de adormecer, palavras confortam-me. Conseguem esgueirar-me um sorriso. Não estou, de certeza, enjoado.