sábado, outubro 26, 2013

Pergunta, resposta; reformular


Pode um terramoto ter réplicas durante anos e anos? Sim, tiver epicentro em ti. Vale-me que os meus ossos são anti-sismo, ainda que os faças tocar rumbas cubanas

domingo, outubro 13, 2013

Inventar o que já é mentira por si mesmo



A minha máquina de viajar no tempo é a tua fotografia. É muito simples a mecânica quântica de quanto acelero em direcção ao passado quando a olho. Sem botões, mas desabotoando o stress, a memória pára e recua, atrás até ao momento onde o teu escorrega em forma de sorriso ficou parado num pequeno cartão de plástico, talvez a pairar até que este se decidisse que tinha pelo menos alguma capacidade de reter tudo o que teu sorriso pode conter. O que é muito para o pouco do cartão, mas talvez pouco para o muito que desejo vê-lo novamente, e de certeza demasiado para o que sou. Como é que dentes alinhados, como soldados que te guardam a boca onde quero inserir a minha língua até eu próprio viajar para outra dimensão, me tremem a certeza, e arrancam de mim coisas que não pensava sequer entender? São dentes, é marfim, nem sequer sente, e no entanto, arranca o que sinto em palavras de esplendor iluminado que ainda conseguem deixar na sombra que não esqueço o teu sorriso, e que não te esqueço, e que num qualquer canto do passado, onde o futuro ficou debaixo de uma pedra, estamos nós, talvez à espera de sermos presentes um do outro. Um dia destes. 

O tempo é contínuo, mas continuo a tempo de ti. Não sei, talvez. Tenho a certeza de duvidá-lo, e de que viajar no tempo é tão ficção quanto estas palavras são reais e verdadeiras. Porque a memória mente,e o engano é afinal tudo aquilo que temos quando a verdade da vida é pouco mais do que uma aula de física teórica dada por um disléxico.

sexta-feira, outubro 11, 2013

A idade da inocência



A propósito do frenesim em redor de Malala Yousafzai, uma daquelas criaturas que parecem saídas do mesmo reino de inverosimilhança das pessoas de bem que encontramos de vez em quando, uma equipa de reportagem dirigiu-se à sua aldeia para avaliar as reacções dos habitantes. Entre o orgulho natural da glória de uma filha da terra, um homem disse que era tudo muito bonito, mas desde que Malala tinha saído do país, os Talibans haviam destruído mais dez escolas e nenhuma tinha sido construída. O triste é que ele tem razão: o Nobel é o prémio do complexo de culpa do Ocidente, que se sente interventivo ao dar um prémio a uma adolescente pensando que vai alterar algo no terreno. Mas não: as negociatas do costume continuarão e a zona do Paquistão e do Afeganistão continuará dominada pelo mesmo grupo de irredutíveis extremistas que quase mataram Malala e que continuamente lutam pela instituição obscurantismo na zona. E o que fará o Ocidente que aplaude a jovem paquistanesa? Nada. Não move uma palha. Depois de erros de casting sucessivos nos últimos anos (e neste ainda podemos ter Putin a ganhá-lo...), o Nobel da Paz deste ano provará uma coisa: nós não merecemos Graça quando nos é apresentada tão inesperadamente, e talvez seja por isso que os suecos se sentirão compelidos a premiá-la. Nada contra Malala, cuja acção e rigidez de boas intenções deve reduzir uma boa parte de nós à imperfeição que passeamos pelo quaotidiano. Ela não tem culpa de sermos assim; e se calhar, na sua aldeia lá longe, na cordilheira do Pamir, não fazia sequer ideia de que estas pessoas que divulgam a sua história de coragem têm muito mais a ver com aqueles contra quem luta do que ela pensará


segunda-feira, outubro 07, 2013

O horror de não pensar



Há algo de estranho neste livro. Não o conteúdo, que é, como de costume quando Judt pega na palavra, vivaz, inteligente, erudito e lúcido em demasia, mas em saber que a lenta desagregação física do corpo do historiador inglês (que viria a morrer em 2010 de esclerose amiotrófica) é incapaz de deter um dos intelectos mais activos e ágeis do final de século passado e início deste, um homem para quem a intelectualidade era uma arma, uma obrigação e um dos pilares estruturantes de uma sociedade justa e funcional. Longe de ser um espectador, Judt, durante toda a sua carreira, fez viver a sua crença de que o intelectual é interventivo e lutador, e usa o seu ponto de vista como algo de atingível e real, por muito utópico que possa parecer. A sua defesa do Estado-Providência, o modelo de governo que preferia, devia ser a leitura de cabeceira de Pedro Passos Coelho. Judt soube ser sempre um desses, com toda a classe: polemista como poucos, sem medo de afirmar à boca grande o que se comentava à boca pequena, a sua crítica à política de Israel tornou-o num judeu muitas vezes apelidado de anti-semita, como se tivesse um ódio à sua própria origem. Ele, melhor do que ninguém, sabia do que falava: um sionista convicto, a sua vida num kibbutz durante a Guerra dos Seis Dias abriu-lhe a pestana para a realidade. Ao contrário de muitos intelectuais actuais, ele viveu o que pensava.

Na conversa que manteve durante vários dias com outro colega historiador, Timothy Snyder, Judt parte do seu percurso de vida para se lançar em reflexões sobre os temas que marcaram o seu percurso académico como historiador, e as suas lutas públicas como intelectual e pensador: o sionismo no pós 2ª Guerra Mundial; os fundamentos intelectuais do Marxismo; a memória do Holocausto; o estado-providência; a invalidade do estado de Israel como hoje existe; a Europa depois a 2ª Grande Guerra; o declínio do papel do intelectual, e da Esquerda, nas sociedades actuais. É inevitável que o "Thinking the 20th century não soe a epitáfio intelectual, e é-o de facto, quanto mais não seja pelas ideias que Judt deixa livros que, sabemos agora, nunca poderá acabar, e da chama e vontade que existe dentro de um cérebro ao qual a esclerose não chega e continua a articular, entre intervalos temporais, os caminhos que julga serem os necessários para o triunfo e felicidade do percurso humano. A sua defesa do historiador como um participante na actividade pública e política, sem nunca esquecer o seu papel como anotador (e não intérprete abusivo) dos factos, figuras e acontecimentos é constante, e esta discussão intelectual com Snyder serve não só como a prova cabal da perda precoce de um dos nossos grandes cérebros como colectivo humano, mas também é prova de que o raciocínio livre e informado, numa era obscurantista onde grassa a estupidez e meia dúzia de bitaites passam por opiniões com fundamento, é um bem tão precioso quanto um orçamento equilibrado. Para que se possa pensar, devidamente, o vigésimo primeiro século.