segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Fachinação 20: Negócios




Ainda sinto a crepitar na boca a sensação picante, entre o violento e o deleite, mas definitivamente a precisar de água. Ou leite, segundo dizem os médicos, como melhor remédio para eliminar o problema. Não dói, mas mói. No entanto, o raio dos camarões até eram bons  e nessa raridade que tem sido encontrar comida chinesa que me saiba apetitosa, tratei de aproveitar. O almoço seguiu essa regra da minhda vida que é o erro na sofreguidão, a procura do que me sabe bem, mas mal sei no mal que me trará. Quer dizer, até sei; mas ignoro, finjo ignorar pelo menos, porque a realidade batendo de frente é demasiado desconfortável. E rouba o prazer. Importante isso. Os monges no mosteiro à minha frente bem falam do quanto expectativas e hedonismo são na verdade inimigos da felicidade. Mas camarões são camarões. E a dor é o que acontece quando transgredimos a felicidade; ou pelo contrário, queremos encontrá-la. Seja de que maneira for. O que pode explicar porque é que estão a chegar, enquanto reentro no espaço do mosteiro de Labrang, centenas de pessoas aos poucos, cansadas, algumas arrastando-se, outras com a vtitalidade de quem cumpre uma missão de vida. São peregrinos. Como local de extrema sacralidade no mundo budista, Labrang é o foco de várias peregrinações. Aliás, a zona à volta da cidade de Xiahe destila uma atmosfera religiosa tão difusa quanto uma lanterna de incenso fumegante. Há aqui perto fortes comunidades muçulmanas, e adoradores de Confúcio. Mesquitas e mosteiros convivem a pouca distância, fiéis encaminham-se à sua casa devota de preferência pessoal. A maior celebração decorre durante o primeiro mês lunar do ano, invariavelmente Fevereiro: inclui actividades com nome tão pitoresco quanto a Festival dos Animais Livres ou Festa do Buda apanhando Sol; mas o que salta mais à vista, e atrai muitos visitantes, é o culminar deste último ritual. Uma longa thangka, um pano colorido, pintado, desenhado, medindo trinta por vinte metros é transportado até ao topo de uma elevação sobranceira do mosteiro, tapando-a por completo. Uma longa procissão de fiéis segue-o, cantando e orando, sofrendo também - carregar aquilo não deve ser uma tarefa agradável. Das estepes distantes e próximas, nómadas budistas chegam com roupas coloridas, os sues melhores fatos, para participarem deste momento solene. Deste apelo a Buda. Tudo isto decorre em vários dias. No segundo, uma dança com trinta e cinco mascarados é protagonizada por Yama, entidade que simboliza a Morte, como um exorcismo do agouro defunto. É um momento alto em Xiahe e para toda a comunidade budista. No entanto, não é Fevereiro, mas sim Agosto. Estes que aqui chegam não esperam espectáculos ou panos gigantes. Em algo que nos é familiar no Ocidente, vêm simplesmente cumprir promessas ou colocar à prova a sua fé nas palmas dos pés. A dor como promessa a Deus.

Uma coisa que explico sempre aos meus alunos, quando dou Mitologias pela primeira vez, é a razão pela qual o ser humano abraçou a espiritualidade. Não a Religião em si. Uma Religião não tem de ser espiritual, pois é simplesmente um conjunto de valores, ideias, teorias e crenças reunidas num corpo de saber que pretende explicar o mundo e encontrar um sentido final na vida. A Ciência, por exemplo, é em si uma Religião, embora explicar este conceito a ateus empedrenidos e orgulhosos seja complicado pelo facto simples de a palavra ter adquirido uma conotação tão negativa ao longo dos séculos que, numa ironia incrível, os mais anti-religiosos têm comportamentos muito semelhantes ao dos prosélitos mais potentes: ambos crêem numa verdade imutável; ambos ridicularizam o lado contrário; ambos descartam factos que mudam o mínimo do seu evangelho; ambos têm gosto em espezinhar e perseguir aqueles com ideias diferentes. A crença em algo de transcendente surge, ainda assim, de um outro princípio que ambos partilham: a ilusão do controlo. Num mundo infestado de fantasmas sob a forma de fenómenos naturais inexplicáveis e uma sucessão de dias e noites que não obedecia a uma lógica ou explicação, o ser humano na sua infância viu-se na necessidade de pensar no que, afinal, se passava. A resposta foi simples. Algures num local qualquer, desconhecido e tapado, uma ou mais entidades super poderosas e sobrenaturais possuíam as rédeas deste planeta na mão. Caprichosos, punham e dispunham destes inferiores bípedes que se sujeitavam aos acasos e humores dos gigantes ou, como lhes chamaram, deuses. Num instinto básico, de quem pretende dominar o indominável, o ser humano chegou à epifania esperada: se não posso mandar, ao menos negoceio; e assim nasceu a necessidade de aplacar o desconhecido que ruge em nós mesmo que nos achemos racionais e materialistas. Pensou o ser humano que oferecendo sacrifícios, talvez os deuses, enfim, encaminhassem o controlo da grande máquina terrestre para o caminho do benefício humano. Quando pequenos sacrifícios não chegavam, faziam-se grandes; e no sentido comunitário, não bastava que um ou dois cumprissem as regras. As divindades exigiam um espírito comum e portanto, a escolha pessoal não é tida nem achada. Todos obedecem aos mesmos princípios e comportamentos. As diferenças não serão toleradas, porque os deuses não têm sentido de humor, ou então sentido de humor a mais, negro, daquele que castiga ao desvio mais pequeno. Quando tudo o mais falhava, dava-se o que de mais importante cada um tinha - a própria vida, o próprio bem estar. Contavam-se histórias de dores de cada deus, de cada profeta; e o bípede humano sentia-se na necessidade de entregar também a dor como homenagem, como justa troca. Várias civilizações na História fizeram dos sacrifícios humanos peça central das suas devoções (os Aztecas serão, talvez, o caso mais conhecido, e quantas guerras foram cometidas em nomes de religiões, num secreto desejo de que cada morto fosse uma oferta alvejando a benevolência superior) e hoje em dia, onde a degradação da vida humana é muito mais subtil e menos óbvia, sobra a dor do corpo, o sofrimento como pagamento, como MB Way entre o que não se vê mas tudo sabe e aquele que está visto, sabe tudo, menos aquilo que devia conhecer.


As peregrinações são um exercício deste princípio. Um pouco como muitas das guerras militares passaram para campos desportivos, a nossa morte em nome de deuses oferece o seu lugar sentado à aceitação de doer é bom. Fortifica e frutifica; ajuda e lá em cima gostam e apreciam o esforço. Por isso há quem faça Fátima de joelhos. Nossa Senhora adora rótulas escanzeladas. Eu consigo entender racionalmente esta associação de ideias, porque a estudei. O que não me cabe é que numa sociedade moderna e tecnológica ainda persistam estes hábitos de um tempo em que nem sequer concebíamos a roda. Depois de uma adolescência bastante irreverente na minha relação com a religião, ainda que tenha estado perfeitamente inserido num grupo de escuteiros - quero dizer, tão inserido quanto eu, uma criatura estranha, pode estar - os meus anos seguintes passaram-se a tentar entender porque é que se acredita em algo que está fora de ser compreendido. Talvez seja esse apelo, o de tomar nos braços da incerteza e deixarmo-nos ir. Vários amigos meus, pessoas que respeitam, encontram um consolo e um sentido em religião. Com o tempo, e também conhecendo as pessoas certas que não fazem da sua fé uma cruzada contra ideias que todos devíamos encontrar com normais e evidentes, o meu respeito foi surgindo. Também a aceitação de que aparte uma franja que quer fazer de Deus uma projecção dos seus desejos tacanhos de submeter os outros à sua vontade e de não confrontar o seu desconforto com um mundo em mudança. Por isso, ao ver toda esta gente em chegada de uma longa peregrinação, procedendo a ritos milenares individuais, hesito em rir e escarnecer. Sigo apenas. Independentemente da origem, cada peregrino partilha o percurso final, uma volta de quase cinco quilómetros em torno do mosteiro. Essa volta inclui pontos de passagem obrigatórios, incluindo alguns pequenos templos e corredores de kora, placas giratórias com um paralelípedo no meio. São coloridas, com figuras estilizadas de paraísos budistas e lamas em poses meditativas. Cada peregrino, ao passar, faz girá-las, todas, obrigatoriamente. Na outra mão, segura um colar de contas chamado malas, que aperta e conta a cada kora que faz mover. É uma tarefa longa. Cada corredor deste género tem seguramente umas cem maquinetas pelo menos, e existem vários espaços deste género ao longo do percurso marcado. Uma pessoa deve chegar ao fim com calos manuais do tamanho de bolas de futebol. Mas todos cumprem, religiosamente - em mais do que um sentido. Tiram os chapéus e ajeitam as túnicas coloridas com que vieram protegendo do vento. E seguem. Mulheres de longas tranças e faces encovadas da inundação da longa vida que trazem por arrasto maquinam mantras para si enquanto percorrem uma via que é sacra também. Os sapatos estão gastos, poeirentos, mas nada os detém. Vejo gente muito desgastada, até de existir. Mas insistem e continuam a percorrer.


Esta volta pretende imitar a revolução da Terra em torno do Sol. O templo é vida, o templo é luz. E o templo é também o destino de uma jornada que nalguns casos, encerra um capítulo final doloroso. Por entre corredores, certos peregrinos, selectos, entregam-se a um ritual fascinante de ver, duro de fazer: em vez de caminharem apenas, conduzem-se por uma série de gestos medidos e contados. Dão três passos, erguem os braços, juntam as mãos por sobre a cabeça e ajoelham-se. Sem perder o balanço, prostram-se e estendidos sobre o chão durante alguns segundos, nunca perdem a ligação entre as mãos. Por fim, regressam à posição original revertendo a ordem dos gestos. Repetem. Quase cinco mil metros disto nas próximas horas. A maior parte envolve a face num lenço que me impede de ver as caras; mas não as expressões, uma firmeza inabalável nos olhos, a certeza de que chegarão ao fim por mais que custe. Como se depois de tudo, o plácido e sempre razoável Buda lhes exigisse uma última portagem, um último pagamento. Há tábuas de madeira espalhadas, caso queiras fazer estes movimentos fora do caminho. Fazes alguns parado, mas contam na mesma como se os fizesses em andamento. Ali ao lado, o rio corre e talvez ofusque todos os restantes ruídos neste exercício em masoquismo. A minha tentativa de não julgar cai cedo, mas ainda assim, admiro uma disciplina que nunca terei. Não por ser ocidental, mas por ser eu. Quanto mais viajo, ainda assim, menos julgo o que é diferente. Aprendo também que não tenho ambições em ser uma daquelas pessoas que acha não n
ter preconceitos. Claro que os tenho. Toda a gente tem; mas andar em viagem torna-me honesto em relação aos mesmos, a conviver com eles e a perceber que são normais e que não afectam a minha relação com o mundo. Exceptuando a comida claro, mas aí tenho desculpa. Com camarões ou sem eles. Na minha humildade, faço também a volta dos peregrinos, mas passo a passo e ao meu ritmo de observação curiosa. Fotografo de quando em vez, mas ao longe e tentando não ser um elemento intrusivo e que estraga o momento. A certa altura chego ao chotren, um pilar branco de algum tamanho, encimado por um pináculo dourado e verde, que é ponto fundamental no percurso. Aqui chegados, os peregrinos contornam-no por mais do que uma vez e só depois prosseguem até ao final. É aí que de um ponto mais elevado, observam então os telhados dos vários edifícios do mosteiro, verdes e dourados dominando a paisagem e com as montanhas tibetanas como pano de fundo. Numa delas, vejo o trilho que os monges sobem quando estendem a gigantesca bandeira do festival do mês lunar. Tento imaginar aquelas imensidão verde dominada por várias cores, figuras. Ainda que este misticismo me diga pouco, acredito que ficaria impressionado e siderado com tudo isto. Miudagem passa por mim a correr, a escola de Xiahe fica por aqui e garotos de mochilas garridas às costas correm em direcção a casa. Digo-lhes adeus e retribuem sorrindo. Para eles, não há fiéis nem romeiros: só obstáculos. Recordo-me de quando fui peregrino, há vinte anos, e segui os quilómetros de Santiago. Já me começara a afastar da espiritualidade, mas a experiência marcou-me, talvez porque a essência de Compostela não é o sofrimento, mas a descoberta e a partilha. Algures, nas mensagens das grandes religiões, esta essência existe lá. Mas descoberta e partilha nunca ajudaram a controlar quem quer que seja. Medo e sofrimento, pelo contrário, são instrumentos muito mais contundentes nessa missão. Quando cheguei a Santiago, não senti qualquer realização; mas fui num grupo de amigos e eles sim, sorriam de par em par, orgulhavam-se, abraçavam-se. Como quase sempre, tinha a alma num caco, acho que se partiu quando tinha dezasseis anos e ainda ninguém a colou, nem eu, nem que veio a seguir. Pergunto-me se de facto é isso que me impede de sentir a profundidade desta vivência. Mas de súbito, passo por um velho que urina contra uma parede e percebo que não é mesmo de mim.


Até ao jantar, temos tempo livre. Com um receio de ser deserdado e de perder os poucos amigos que ainda tenho - não sei bem até quando - dedico-me a correr algumas lojas e bazares, sem qualquer ideia definida do que comprar. As coisas são bastante baratas, estamos afinal na China, e perco algum tempo de volta de lenços, bem suaves para não causar comichão aos pescoços alheios. Têm muitas cores e custam entre 30 e quarenta yuans. Portanto, oito euros no máximo. Não tenho qualquer sentido de estilo, o que aliás acaba sempre por ser inimigo nas minhas viagens. Estou profissionalizado na compra de livros, mas temo que nenhum dos meus amigos pretenda receber algo que nunca poderá ler na vida, a não ser que se dedique à aprendizagem do Mandarim. Tento imaginar o que gostaria eu de ver numa mulher. Erro, porque penso imediatamente na pessoa errada, em alguém que devia estar enterrada num recanto profundo da minha mente e não sair mais de lá. Mas acaba por ser tornar inevitável, visto que não há mito maior sobre mim do que aquele que sopra, baixinho mas bem audível, que sou incapaz de sentir algo, que me escondo, que fujo e me rebolo. Escolho alguns lenços então e pelo caminho, compro uma colorida e animada mochila para a Beatriz, a segunda prenda de que ela se poderá gabar aos amigos: o meu padrinho faltou ao meu aniversário porque estava na outra ponta do mundo; mas ao menos trouxe-me isto. Fixe, não? As lojas ficam todas na rua central de Xiahe, que lhe serve de artéria e espinha dorsal. São pequenas, normalmente, e por vezes, entrando em pátios interiores, encontramos bancas, montras e mercados pequeninos que oferecem uma catadupa de hipóteses de compras. É também um momento bom para observar como os monges de Labrang vivem a sua vida normal e corriqueira aqui, entre os "civis". Passeiam-se com as suas túnicas religiosas, mas nunca como homens de religião: como homens vulgares, os mesmos gestos e instintos, temores e preconceitos. Dois deles passam por mim, mão por cima do ombro, risada cúmplice de quem conta uma piada que apenas ambos entendem; quando lhes tiro uma foto, surge uma tremideira com ligeira homofobia, pois ao repararem, rapidamente desfazem a posse e criam um espaço entre ambos razoavelmente semelhante ao Oceano Pacífico. Decerto me chamaram, entredentes, filho da Buda... Quase no final do meu devaneio consumista, uma surpresa. Enquanto fotografo três garotos a jogar à bola, surge um quarto que, tímido, nem está no enquadramento. Mas anda ali perto, curioso. Não sei se por mim, se pela oportunidade fotográfica; mas esconde-se agarrado a uma porta. Sorrio-lhe e ele derrete um pouco; aponto para a máquina, ele não se mexe. Fotografia tirada e mostro-lha. Ele agarra-me a mão com força e dispara a correr. Não entendi. Mas não é para entender. Vive-se e mais tarde, escrevo sobe isto e continuo a lembrar-me. Muito da vida é isso: não tanto o que lhe fica, mas mais o que a faz.


Como ainda sobra tempo e o dia tem luz que contorna as montanhas a fogo, junto-me a alguns rumo ao topo daquela inclinação que em alturas do primeiro mês lunar se cobre com uma bandeira enorme. Estou curioso para descobrir que ponto de vista se pode ter para o Mosteiro, acho que até agora só o vi no interior. É uma subida curta, mas a pique, obrigando a meter um ritmo lento, mas constante. São alguns os turistas que tiveram a mesma ideia, em selfies, em fotos de grupo. Encontramos lá também monges deitados em magote, usufruindo de algum tempo livre, esquecendo Buda por uns tempos. Saudamo-los e Mário, o já mencionado Comendador de Fronteira, Alter do Chão e territórios adjacentes na Extremadura espanhola, rapidamente cria uma conversa, pede fotos, torna-se embaixador do Nordeste alentejano no Sudoeste chinês. Há gente que não tem lata e imediatamente parte a conseguir o que quer. É um talento que me faltam. Como sempre quando a melancolia me bate como um martelo ferroso que pesa, em castigo, fecho-me e nas engranagens da minha cabeça, rapidamente aparecem pedaços fuscos de coração. A máquina põe-se ao trabalho, mas quase em piloto automático. Sinto-me num fundo, nem sei bem de quê; mas apesar de o sol ainda se mostrar, a escuridão em mim galopa. Estes são momentos em que o contacto com outros é simplesmente proibido, pois torno-me tão vulnerável que a única reacção é explodir para fora. No entanto, convocam-me para uma foto de grupo. O grupo budista cedeu aos encantos do Mário e quer que tiremos todos uma foto juntos. Contrafeito, mas aparentando que sou um camarada que alinha em tudo, junto-me. O sorriso é forçado, mas como sou tão pouco fotogénico, acho que a diferença nem se nota. Lá ao fundo, por trás de dois dentes que são picos, a luz solar lentamente se extermina  e como que reflectindo este fim de tarde que me lança em memórias e catadupa de gelo mental, vai-se apagando. Como eu. Embora, pelas minhas contas, ainda tenha uns cinco dias onde não me posso afundar, apenas manter à tona. Sofrer, mas não pelo desconhecido: apenas pelo que se conhece demasiado bem. Uma peregrinação cujo santuário final somos nós.

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

Fachinação 19: Conhece-te a ti mesmo


Deixo uma dica aos meus leitores que gostam de saber distinguir uma pessoa que leu umas cenas na Internet de alguém verdadeiramente informado. Cheguem junto de um grupo de pessoas - amigos ou simplesmente seres humanos entre os quais querem lançar a confusão incendiária - e comecem a falar de religião. Deixem o paleio rolar e, invariavelmente, ouvir toda a gente a falar mal ou a defender com unhas e dentes, porque neste tema é raro haver meio termo. o que é sempre engraçado, visto que boa parte dos sistemas religiosos pressupõe tolerância e entendimento, algo que parece existir pouco entre os seus mais acérrimos prosélitos. É neste momento específico, onde o terreno está fértil e bem adubado, que deve ser lançada sem hesitação esta declaração que fica pela metade: "Ah, mas o Budismo...". Prestem agora atenção à dinâmica da conversa.  Haverá uns que farão logo a ressalva de que o Budismo não é religião, não tem deuses. Que são só umas ideias, todas boas, todas no sentido da união das pessoas e da felicidade. Esta é a pessoa que leu umas cenas na Internet. Eu duvido seriamente que alguém contraponha algo a esta versão daquilo que o a herança que Buda nos deixou, portanto se encontrarem de facto alguém informado, depois digam-me que tenho curiosidade. Porque o Budismo tem um passe quase inatacável em discussões religiosas.A sua inclusão, e de outros sistemas que se dizem de pensamento (mas que têm inerente um aspecto cultistas mais ou menos subtil) inspirados nas suas ideias, noutras áreas da existência humana torna-a muito apelativa para todos aquele que, fixes demais para se incluírem num sistema de crenças organizado, abraçam as ideias orientais. São um bocadinho como aqueles católicos que são católicos e defendem toda e qualquer ideia cristã, mas "não vão à missa, porque não me identifico com essas coisas". Talvez por não se identificarem também com acordar cedo ao domingo de manhã. Sempre achei curioso este lugar quase isolado que esta doutrina tem na discussão sempre presente acerca do papel da religião na nossa sociedade e do nosso mundo. Interesso-me por estas coisas, e tenho pena que a única razão que atrai tanta gente a este tema seja a errada: defender ou achincalhar, sem entender, se calhar, que a palavra Religião pode designar muitos assuntos que nada têm a ver com espiritualidade. Uma Religião é simplesmente um conjunto de ideias ligadas que usamos para explicar o mundo e que tomamos como factos. A Ciência, com a sua sistematização de conhecimentos e saberes, é uma Religião, por exemplo. Estes sistemas moldam o nosso lugar no mundo e aquilo que nele procuramos e defendemos; e hoje em dia, quando a batalha das ideias está cada vez mais acesa e central naquilo que decidimos como sociedade em relação ao futuro, penso que uma conversazinha clara e definida sobre crenças e fés é o que precisamos. Mas essa conversa não existe. Também porque ninguém está interessado em tê-la. Só há interesse em discutir, esmagar, gozar.


Em Xiahe, o Budismo domina a vida das pessoas. Basta passearem dois minutos na principal rua da localidade e vêem de imediato as reconhecíveis túnicas encarnadas, com tira amarela, que caracterizam os monges budistas. Estes provêm do mosteiro de Labrang, o segundo edifício mais religioso de todo o Budismo. Fora da Região Autónoma do Tibete, é o maior e funciona em simultâneo como templo religioso e escola budista. Devido a restrições governamentais, mil e quinhentos alunos aprendem hoje em Labrang e juntarmos o corpo docente e outros monges, é provável que habitem dois milhares de pessoas neste complexo que inclui vários edifícios. A ideia é aproveitar a manhã para uma visita guiada ao interior do mosteiro, tirar umas fotos, contactar com quem lá vive e quem visita. Por estas alturas de Agosto, há uma enorme peregrinação a Labrang, um pouco como quem vai a Fátima a pé, e é provável que assistamos à chegada de peregrinos ao seu ponto final. Para terem uma ideias do que visitaremos, todo este conjunto de Labrang estende-se por três quilómetros, o que é de facto enorme. Quase uma cidade dentro de uma cidade. Uma profusão de cores nas paredes e nas decorações, dominadas por telhados verdes e dourados que espreitam este vale. Há capelas e residências, juntamente com seis tratsang (o nome dado às escolas), que tratam de temas como esoterismo budista, Medicina, Astrologia ou Direito que chamaríamos Canónico. Somos avisados desde cedo que fotografias só no exterior. Dentro dos templos, as máquinas são para ficar guardadinhas. Os monges reservam-se ao direito de nos multar em 500 yuan, caso sejamos apanhados. Vamos à boleia de um grupo numeroso de turistas, quase todos orientais, com alguns ocidentais metidos e com projectos próprios. Um casal espanhol escuta a nossa lusa língua e identifica irmãos ibéricos. Numa curta apresentação, revelam que estão a fazer uma longa peregrinação de dois anos por esta zona, aprendendo coisas sobre o Budismo, sobre como chegar à felicidade, abdicando da choldra do mundo moderno. Querem transformar-se, afinal o objectivo final da doutrina de Buda. O monge que nos guiará tem uma daquelas caras sem idade. Tanto pode ser um homem novo gasto pela vida como um tipo de meia idade com a jovialidade de um adolescente. Informa que tem 22 anos, mas juro que um sofá que existe na minha casa em Ceira parece mais novo, Antes de nos conduzir pelos edifícios, um apelo quase automático leva-o a uma pequena palestra sobre a Existência. Assim mesmo, com maiúscula. Prega um sermão em que somos nós os peixes. Como quase todos os que pretendem converter ou doutrinar, usa a linguagem obscura onde cada um pode reflectir as suas inquietações e nunca dás respostas, só perguntas. E mais perguntas. É a melhor maneira de parecer sábio mesmo quando se é inepto. Lança-as ao grupo, descompondo qualquer retorno que lhe demos. É algo fascinante de ver, mas alguns caem na cantiga. 


O espectáculo prolonga-se a cada explicação história e informação arquitectónica. Em 1709, tudo isto foi fundado. O responsável chamava-se Ngaging Tsunde e como todos os líderes religiosos, era uma reencarnação de uma reencarnação. Este trânsito de almas é fundamental para entender o budismo e o guia faz questão de nos recordar isto de cada evez que falas dos seus antecessores e camaradas de túnica. É um dos seis grandes mosteiros da maior Ordem budista, a do Chapéu Amarelo (não estou a gozar) e no seu auge, estudavam aqui quatro mil almas. Que já haviam sido almas também, entenda-se. Almas rodadas. A Revolução Cultural de Mao tratou de resolver essa questão, quando quase limpou o país de qualquer outra cultura que não fosse a comunista e a da Revolução. O guia não fala disso. Há sempre uma câmara a vigiá-lo e e o instinto de auto-preservação também deve estar embutido no DNA tibetano; mas eu sei porque conheço vagamente a história contemporânea chinesa. Ele também não explica que desde então, o mosteiro de Labrang representa um ponto simbólico dentro do desenho de Xiahe. É o centro da divisáo étnica da cidade. No lado ocidental, mais desenvolvido e rico, temos uma maioria Han criando negócio, vivendo, ocupando. No lado oriental, em casas mais pequenas e ténues, os Tibetanos originais, fazendo pela vida, subsistindo acima de tudo da actividade agrícola e da pecuária.. O guia também não refere isso quando, visitando a capela da escola de Medicina, explica que foi ali que se formou, porque sempre viveu com a ideia de usar os seus conhecimentos para ajudar os outros. Que o lugar do Budismo era entre as pessoas, ao seu lado. Em 2008, por exemplo, os monges de Labrang protestarm contra o Governo, numa onda que atravessei todo o Tibete chinês, que chegaram à violência. Mas este homem, pacífico e e tão longe do mundo, tão perto das boas intenções, não está para afrontar. Apenas explicar e converter. Continua a inquirir, com aquele sorriso galifão de quem aprendeu um segredo e sabe que nós estamos completamente à nora. Um bocadinho farto pela pose, respondo quando questiona sobre o que é a Felicidade. Vou tentar transcrever, assim de memória, o curto diálogo.
- É sentirmo-nos bem connosco e com o mundo.
- Ah, mas quem és tu? E quem é o mundo?
- Eu sou a pessoa com quem você está a falar. O mundo é este local onde estamos a conversar.
- Ah, mas quem sou eu? E o que é esta conversa?
- Você é a pessoa que está à minha frente. Esta conversa são as palavras que estamos a trocar?
- Ah, mas será que esta conversa existe neste mundo? E só existe este mundo? O que é existir?
O problema maior dele é que eu conheço este tipo de caramelos. Crentes e não crentes. Por ter estado quase vinte anos num agrupamento de escuteiros, cruzei-me com todo o género de católicos, desde os aceitáveis aos que só apetece fechar numa sala com um compêndio de humanidade; e por outro lado, formei-me na Faculdade de Letras, porventura o maior antro de presunção de toda a Universidade de Coimbra, com excepção talvez de Direito. O cruzamento entre católicos e ateus, no que concerne tipos de personalidade, é maior do que ambos os grupos gostariam de admitir. Sei os esquemas e os truques, a linguagem, o paleio vazio, a pose de quem tem as soluções, mas está tão perdido quanto qualquer outro. Apenas bebeu um sumo diferente e julga-se invencível. É gente para a qual tenho muito pouca paciência. Eu tenho um ponta ainda notória de arrogância, mas não me apanhem a tourear os outros com vazio. Como tal, respondo-lhe:
- Para quem está a estudar aqui desde criança, o senhor parece desconhecer coisas muito básicas.
O sorriso vacila um pouco e ele entende que não é solo onde vá crescer o que seja. Reparo no casal espanhol, que me olha com reprovação. Ela segura um bloco e tira notas. Começo a entender como é que nos livrámos de Espanha três vezes ao longo da nossa História, ainda que sejamos muito mais pequenos em tamanho.


O Budismo, se analisarmos friamente, está cheio de boas intenções e se não estivesse, não seria praticamente por mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo. Surgiu na Índia e a sua mensagem, como a cristã, é muito fácil de resumir: trabalha, melhora-te e serás feliz. Baseia-se numa ideia central de mortes e renascimentos constantes até alcançar a perfeição definitiva e por consequência, a mesma Felicidade pela qual o monge me perguntou. A palavra que designa esse estado é conhecida mundialmente, culpa de três rapazes de Seattle: Nirvana.  Isto é o principal dos ensinamentos que Siddartha Gautama, um príncipe indiano que abandonou a sua vida de devassidão para procurar o modo de ser feliz e pelo meio mudou de nome para Buda, deixou às gerações futuras. Mas como acontece em todas as religiões, uma vez falecido o fundador, os seus seguidores interpretam cada um à sua maneira e distinção. No caso do Budismo, isso deu origem a duas grandes escolas de pensamento: o Theravada e o Mahayana. Há mais palavras de origem indiana metidas ao barulho, como dharma, sangha, paramitas e coisas do género; mas a principal diferença é que a primeira é mais antiga, conservadora e pretende ser a verdadeira representante da versão original dos ensinamentos de Buda. A sua divulgação deu-se  mais para Oriente, na Indochina e países costeiros dessa região asiática, e é também por esse motivo que acontecem aí um número notável de conflitos religiosos. Sim, o Budismo também envolve guerras religiosas. Quê, não sabiam? julgavam que era tudo paz e amor. Não, amigos, não é. Perguntem aos muçulmanos do Myanmar. A segunda escola, a Mahayana, abdica do aspecto mais ritual e doutrinal do Budismo e envereda por caminhos de filosofia e questões existenciais. É o tal Budismo que o ocidental julgar ser o único e o que mais lhe convém. Enquanto que a primeira mantém que o Nirvana só pode ser atingido depois de várias reencarnações e passagem na Terra, a segunda é mais prática e afirma que não, que uma só vida chega para conseguirmos entender isto tudo e abraçarmos a plena felicidade. Talvez pela defesa desta ideia tão apelativa e desejável seja hoje a forma mais popular de ser budista, a mais ensinada, a mais incorporada em técnicas de yoga, meditação, New Age e maneiras de alcançar a celebridade de Hollywood. É também a praticada em Labrang e a base dos seus ensinamentos é a constante questão da realidade que nos rodeia, dos nossos pensamentos, das nossas emoções, do que somos. Quer livrar-nos das inquietações e ânsias, pois a Felicidade última é viver sem ansiedades, desejos, objectivos. É ser com o mundo. O monge pensa que ao colocar-me questões me está a iniciar num caminho em direcção a esta falta de ansiedades. Se me conhecesse, saberia que o meu mundo está carregado de desejos não recicprocados e vidas que não se concretizam, de almas que desejo, de corpos que só passam ao lado, de sorrisos que não se se materializam, de planos que se estampam. Tanta coisa que o próprio Siddartha rotundo que seja, tombaria por terra sob o seu peso. Que tenho muito mais perguntas do que ele, mas sem ilusão de conhecer sequer as respostas. Num certo sentido, sou até mais budista. Vivo cheio de dúvidas. Mas sei perfeitamente que não encontrarão a sua dissipação nestes templos, misturando-se no fumo do incenso. 


Seja qual for a corrente, um aspecto importante do Budismo é a imersão. Imersão de sentidos, principalmente, para ajudar o cérebro a meter travão. Por esse motivo a meditação está carregadinha de mantras, aqueles sons guturais que se repetem à exaustão até serem apenas banda sonora na meninge. É quase impossível entender a importância desta abstracção mental e do quão poderosa consegue ser até termos, de facto, a experiência. Um dos últimos espaços a visitar é o refeitório. Normalíssimo por fora, cinzento de pedra e verdejante no telhado, apenas um beiral amarelo e vermelho lhe traz alguma personalidade. No interior, deparo-me com dezenas de monges sentados no chão, em linhas, em filas. Uma vaga púrpura e amarela, túnica em repouso, faces em inquietação e tédio. À sua frente, todos exibem um tapete quadrado, cores diferentes, em cima um copo. Não estão inactivos: cantam longos mantras de poucas palavras, enquanto num canto escuro, neste espaço que não está iluminado de maneira visível, quatro indivíduos zurzem na nossa mente com instrumentos de percussão. O barulho é agressivo, mas mas sem bater. Só ameaça, lentamente verga-te a esquecer o resto e coloca o mundo em obliteração. Alguns fumeiros, de considerável dimensão, destilam um vapor incensado e de outros aromas que tranca os narizes de qualquer veleidade de fugir do momento. As paredes forram-se de coloridos panos, longos, que no assalto aos sentidos quase saltam as cores do pé coxinho. Como se as formas saltassem das paredes. Já nem noto o grupo onde sigo, parei e vigio os monges, taciturnos e entediados, alguns abraçando a experiência como é seu dever, outros ignorando o momento num aborrecimento vocal. Mas cansa, tudo isto, esta musculação da percepção. Em bom tempo, sou arrastado para uma capela lateral onde um altar domina por completo. É o altar dos Lamas. Pequenas estatuetas representam o espírito dos antigos líderes do Budismo, sucessores de Buda. É o maior que vemos até agora, o que se entende. O guia diz-nos que os Lamas são muito importantes, que enquanto não descem novamente aos terrenos corpos onde reencarnam, aconselham e falam com Buda no tempo para lá da Morte. Se quisermos falar com eles também, podes sentar-nos e reflectir para o altar. Ao meu lado, perguntam se o actual Dalai Lama será aqui representado quando morrer. Muito sério, numa mudança brusca de humor, o guia responde: "Aqui não falamos de política, só religião". O que é bizarro, porque o senhor careca de óculos que está exilado na Índia - bem a calhar para a situação geopolítica asiática - é, final o líder supremo do Budismo em todas as suas formas. Mas a China fez dele um mártir e Lama abraçou esse papel com entusiasmo. Religião e Política são dois primos que tudo fazem que não lhe tirem o prazer de matar pardais à pedrada.


A última paragem é na escola de Astrologia. A sala que visitamos é pequena e está atulhada de objectos científicos. Ou ditos científicos. Coisas que têm importância para os eruditos budistas, desde livros em sânscritos com ar muito antigo, ícones, gravações em pedra, pergaminhos em pele. Olho-os com alguma curiosidade, como se percebesse tudo o que significam ou até o próprio sânscrito. Nem uma coisa nem outra. Mas no centro da sala, destacado, está um globo terrestre. Observo-o e deduzo que deve ser das peças mais recentes em exibição. Isto porque, numa olhada rápida e com os meus conhecimentos de representação geográfica ao longo da História, noto que África está já dividida nos territórios que saíram da Conferência de Berlim em 1885. Para além disso, observando o fundo do globo, a Antárctica está perfeitamente representada da maneira como a conhecemos hoje. isto é um pormenor importante por dois motivos: em primeiro, oficialmente, este continente gelado apenas foi descoberto em 1818 e as suas primeiras representações mais ou menos fiéis em cartografia datam da segunda metade do século. Em segundo, e isto baralha muitos historiadores, há representações da Antárctida em mapas anteriores - os do período da Expansão portuguesa, por exemplo - mas tal como estaria antes de ficar coberta por gelo. O que aconteceu à volta de quinze mil anos. Assunto para outros textos, prometo. Não sou eu o único a notar. O monge é questionado sobre o globo e garante que este chegou ao mosteiro há uns duzentos e cinquenta, trezentos anos. O que é impossível, pelos motivos que lhe expliquei. Confronto-o com isso. Ele ri, está a segundos de me chamar ignorante e afiança que o seu professor e mestre lho disse e portanto, só pode ser verdade. O que não é. A sabedoria oriental do Budismo incide na auto-descoberta. As questões podem ser lançadas contra o outro, mas nunca devem regressar a quem as fez. O pobre monge parece desconhecer que há vida para lá dos mantras e das quatro paredes do mosteiro. Que uma Religião é um método de explicar o mundo e não de fixá-lo em pedra, imutável. Buda, deitado de lado, medita e o planeta avança entretanto. Em Xiahe, num mosteiro no entanto, o incenso fixou o conhecimento nas palavras de um homem, que as transmitiu a outro. A verdade sobre o mundo feita rumor. Quem disse que precisamos de redes sociais para criar desinformação?