segunda-feira, maio 18, 2020

Viagens na minha terra


Na Ceira dos anos 80, as escolhas de escola primária eram simples. A principal era a das Vendas de Ceira; aqueles que viviam no outro canto da freguesia invariavelmente entravam na do Cabouco, local onde só pus os pés uma vez na vida e não como estudante; alguns aventuravam-se para outro concelho e acabavam na do Senhor da Serra, território de mitos e lendas que nos chegavam aos ouvidos através de amigos de amigos. Há um lugar afastado do centro, o Carvalho, que teria as suas hipóteses, mas sinceramente só comecei a conhecê-lo bem mais tarde na vida e falava-se entre os adultos por dois motivos: um desastre de aviação militar na década de 50, soprado com respeito a propósito do choque dos aviões com a parede da serra do Carvalho (parece impressionante, mas a serra do Carvalho mal tem 400 metros) numa manhã de nevoeiro. Talvez tenham visto D. Sebastião; e o facto de o Carvalho ser um lugar partilhado entre dois concelhos, Coimbra e Poiares. Dividido ao meio, por escolha da população, ficava longe de igual forma de ambas as sedes de concelho. Sempre achei isso curioso, e imaginava os habitantes daquela terra como uns eremitas, longe do mundo civilizado, como sevandijas das matas, na minha imaginação de criança. Em adulto, descobri que têm uma povoação mesmo ao lado chamada Terreiros de Além, que é das poucas toponímias que conheço a combinar de morte com o título "Indiana Jones e...". A infantil população de Ceira estava espalhada então até aos dez anos, quando as escolhas de carreira escolar começavam a afunilar para Coimbra. Excepto quem andava na escola do Senhor da Serra. Mas essas pessoas, como referi, viviam numa espécie de névoa de mito e lenda, fora do espaço que considerávamos nosso, e nunca partilhavam todas as desventuras que contávamos entre nós; e pela maneira como nos falavam da sua escola, pareciam saídos de uma iniciação ao banditismo que, tímido e impressionável como era em criança, fascinava-me a atemorizava-me em simultâneo. Aí, estas crianças viajando para a adolescência eram novamente divididas em três tribos, mas bem distintas: a da Carreira; a do comboio; e a do autocarro.

Eu pertenci a esta última até terminar a carreira académica. Não vou aqui aborrecer-vos com as intrincâncias do 10-Ceira, a linha que me levava do centro do meu mundo ao centro de qualquer coisa a que íamos chamando "escola". Por muito que não o tenha usado, o meu foco é o comboio. Hoje uma memória assim esbatida nas conversas de café e grupos de partilhas de memórias da minha terra, houve uma altura em que era como que uma coluna vertebral que unia principalmente as povoações do sul da freguesia, o Sobral e as Vendas de Ceira, à cidade. Com o advento do Metro Mondego, patranha que encheu os bolsos a alguém e esvaziou Ceira de opções de transporte, já nem os carris sobram. As minhas recordações das carruagens são esparsas. Na verdade, poucas vezes usei a "automotora", a locomotiva preferida das linhas regionais. Nunca lhe senti a falta. Em criança, tenho aum vaga ideia de ver imagens da tragédia ferroviária de Alcafache, onde dezenas de pessoas - num número não especificado até hoje - mal sobraram calcinadas em morte depois da colisão entre dois comboios perto de Mangualde. Nem era bem medo o que me causava, mas espanto. Pensava às vezes na mágoa dos meus pais se não me conseguissem reconhecer. Morrer não me assustava em criança, algo que não posso dizer na minha condição de adulto, e acho que me perturbava mais a inquietude familiar em relação ao meu corpo. Imaginava a minha mãe em pranto, o meu pai numa certa desolação muda. Escusado será dizer que tive uma infância pouco paradigmática, ou se calhar encaixando no paradigma daquilo que dei quando cresci: uma ave rara. No entanto, os meus traumas valiam menos do que passar a noite em casa dos meus avós maternos, que me criaram a meias. Havendo oportunidade, adorava ver televisão com o meu avô e conversar com a minha avó sobre Coimbra e sobre a nova escola, sobre o que fazia. A Lurdes nem era bem segunda mãe, era mesmo primeira avó. Mesmo depois de passar os dez anos, gostava de ficar uns minutos comigo antes de dormir, a falar de patetices e a explicar a vida da terra, a fresa e que agora já não brincava tanto com as molas. Mesmo que eu não precisasse, insistia em deixar a luz acesa. Porque assim ficava mais sossegada. Nem era por mim, era por ela. Hoje penso que se calhar já antevia dentro de mim a génese da escuridão que foi crescendo e tomando conta, e como se quisesse mantê-la ao largo mais uns tempos, porque eu até merecia ser criança ainda, guardava a lâmpada iluminada como uma candeia que protege o Santíssimo das investidas demoníacas. Ela acreditava um pouco nessas coisas, tirava quebrantos e rezava responsos a pedido de outros. Não sei se resultava, mas sempre senti nela uma sensibilidade diferente para o mundo e para a realidade. Talvez por isso gostasse tanto de mim, talvez por isso sinta a falta dela de uma forma quase de navalhada ainda que ela já não ande por cá em duas pernas fez quinze anos em Abril; e o valor dessas noites só cresceu no tempo. Mas morando ela no Sobral, sabia que teria de usar o comboio para ir à escola de Coimbra. Porque independentemente dos nomes, sentíamos todos isso em Ceira: íamos à escola à cidade.

Tenho tido tempo para recordar isso. O adiantamento da minha barriga em sentido protuberante levou-me a usar a caminhada como método de combate ao alargamento. O ramal ferroviário deu lugar hoje a uma via de terra batida que uso como trilho de passos. A minha ligação emocional àqueles espaços é exígua, e apenas sinto um aperto quando perto da estação do Sobral olho para a casa dos meus avós e está igual. Ou se calhar eu mudei tanto que quero manter em estado perfeito os refúgios em mim que me recordam do que fui de feliz. Faço um percurso simples e quase sempre em recta. Atravesso duas pequenas pontes sobre as águas escuras do rio Corvo, que murmura depois das chuvadas, mas em silêncio se guarda nas alturas de seca, e atravesso o breu de um túnel curto, mas que a meio escurece por completo. Se parar, as luzes de ambas as entradas são visíveis; o chão, no entanto, engole-me. Como se me recordasse de que que por muito que tente deixar entrar a luz, a sombra segue-me; ou então, que reparo muito mais na constância da sombra do que na vibrância dos raios luminosos que querem rasgá-la. Sigo e chego à Tremoa, de onde regresso ao ponto inicial. A ideia é moer-me as pernas e pensar o mínimo possível, mas recordo sempre os meus avós, mesmo por entre a monótona voz de relatos de crimes reais que me costumam acompanhar no exercício. O mundo é bem real à beira da linha. Casas no campo, cabras do monte, pastores e cães barulhentos. Aldeias mais esguias e pequenas do que a minha, mais sós, mais prontas a separar-se e talvez voar como um balão para algures. Há quem espreite à janela, talvez esperando o comboio que não volta, sentindo saudades de serem alguém com o barulho da automotora. Já tentei recordá-lo, e não consigo. Talvez porque recordar é dar movimento ao coração, literalmente, e eu sou uma criança de autocarro. A voz monocórdica fala-me de facas e sangue, e quando o relógio cardíaco engrena, lembro-me do meu avô vendo a tourada e a chamar nomes ao Futre; e também das batatas fritas meio queimadas que a minha avó fazia e de como o comboio, por muito respeito que me causasse, parava sempre naquela estação do Beco Trás das Eiras, não suburbano, mas sobre-humano no quanto me fazia sentir querido. Quando chego ao final da malha que dou a mim mesmo, verifico os quilómetros e as calorias. Verifico também o coração, mas não apenas a batida. Tento convencer-me de que sou querido, e num longo olhar pela recta do comboio, não consigo ver a resposta. Sinto-a, mas temo-a. Talvez, quando não encontramos quem nos aceite no regaço em adultos, regressemos onde um dia nos sentimos no mundo mesmo. Ou então, se parar no túnel e não reparar no breu, talvez a Lurdes tenha lá deixado a voz. Talvez se retirar os auscultadores a ouça e talvez ela me diga, como me dizia sempre em criança, que as coisas se resolvem. Sempre. Ainda que não se resolvam como queremos, resolvem-se inevitavelmente. E depois beijava-me na cara e tapava-me no sofá e desejava-me um bom sono e que sonhasse com coisas boas. 

Há noites em que a ouço. E em que quero que o comboio passe. Mas já não volta. Ainda assim, tenho o consolo de ser um menino do autocarro; e que talvez a solução esteja aí. Uma via diferente para um destino diferente. 

quarta-feira, maio 13, 2020

"Tio, tio, tio"


Palavras são apenas isso até que a boca de alguém as torna em qualquer coisa de real; e agora, quando ouço, numa repetição persistente, "Tio, tio, tio", a minha natureza própria como que desaparece e começo a sorrir como um tolo. Por vezes é dito à minha frente, noutras estou ainda a aproximar-me da divisão de onde saem estes sons beatíficos. "Tio, tio, tio", como um alarme de aproximação de algo que gera no interior de um ser pequenino qualquer coisa que nem esse próprio ser consegue bem entender, apenas quantificar num palrar metrónomo. "Tio, tio, tio". Quando entro, vejo meio metro de parte de mim, muito indirecta, cabelo castanho encaracolado e roupa riscada de muitas cores, porque ela descobre que adora "paintá" e o que ela gosta mesmo é de pedir ajuda a arrancar as tampas das canetas com força e deixar tudo salpicado como o anúncio televisivo a televisões de alta definição. Sorri-me, quase sempre, noutras finge uma cara perplexa. Já sabe o que é manipulação e reserva uma cretinice sorridente, como se estivesses prestes a pedir algo e algures destrancasse que o segredo para fazer alinhar um adulto é simplesmente parecer simpática e bem disposta. Como se entendesse por instinto que na gente grande, a visão de uma criança pequena desperta a simpatia e também uma certa esperança que desaparece quando crescemos. Como se acreditássemos que o simples contacto com a infância que se arrumou tão distante, ainda que não seja agora nossa, desperte aquilo que hibernou e espera Primavera.

Acontece-me, de vez em quando. Pego nela ao colo e pergunto onde está a Beatriz, e ela aponta para si; pergunto onde está o tio e o seu dedo aponta repetidamente para o meu peito, e pergunto-me se na sua inocência ela encontra aquilo que não consigo de maneira alguma descortinar. Eu próprio em mim. Mas ela aponta e ri muito. Peço-lhe um xi e a cabeça cai no meu ombro com abandono. Tenho direito a beijos quando ela se dispõe a isso e nem sabe ainda como se dão beijinhos, abre apenas muito a boca e encosta à face quando calha, porque tem alturas em que o nariz é o destinatário e desvio-me a bem da saúde pública. Fazemos uma brincadeirinha com isso, de cada vez que damos beijinhos fazemos "Muá" muito alto e ela volta a rir muito porque gosta é de estardalhaço e de barulho, de ligar a banda sonora do triciclo e de ficar a abanar de um lado para o outro. Gosta quando lhe passo certas canções, da guitarra do Rodrigo e da Gabriela, da Badinerie de Bach, algumas coisas de Green Day e a "Comics" dos Caravan Palace. Tem a sua sala de jogos e quando brincamos, finjo que durmo e ela finge que acredita e acorda-me com palmadinhas na testa, e depois espera que lhe sopre na cara, em primeiro para gritar um bocadinho e depois fingir-se de zangada. Quando não brinca, caminha pelo quarto e quando se cansa, deita-se no meu colo sem pedir e fica só uns segundos quietinha, como que a recarregar uma bateria que traz na barriga, no "Pipinho", volta a entregar-se ao mundo.

No exterior, procura o "piu piu no céu e mesmo quando não o encontra, olha-me e pergunta "Vistes, vistes?" e eu faço que sim, que vi tudo e vi muito com ela, e até vejo tanta coisinha pequena e grande que me escapa fazia tempo, um pedacinho de parte de mim que sorri quando me vê, que me pede mãos e peito, que sem medo me aceita, que me faz sentir parte de algo, importante para alguém, que me faz ter vontade de sair da cama quando acordo, por uma vez, só para descobrir se hoje ela vai aprender algo de novo. Uma palavra, um tique, um gesto, uma dança, uma mecânica qualquer que na sua cabeça a estabelece e faz saltar um bocadinho mais o crescimento. Sejam a existência de pássaros, o miar dos gatos ou que quando ela está presente, consigo ser mais eu. O que preciso tanto, e fazia tempo que outra pessoa não tinha esse poder sobre mim, de me transformar de uma forma tão profunda que na verdade, nem mudo e sou aquilo que enterrei com a bonomia perversa da desesperança. O que nos liga a alguém não é inexplicável por norma. É uma soma de tempo, vontade, química e acaso; e a afeição de um bébé vem muito das duas primeiras, mas também de algo que eles reconhecem e não se explica, e é esse algo que dá aos adultos um poder quando estes sorriem ou abraçam. Uma nova possibilidade, um oráculo profundo que nos garanta que há mais de bom a chegar, que ainda que nos sintamos um ciclo repetido, pulsa ainda o que sonhámos, o que imaginávamos, há tanto, que nos tornaríamos. Sem erros, sem nos estragarmos, ainda antes de termos ganho o poder inconcebível de magoar alguém e a dádiva da dor dentro de nós como triste lembrança de que não somos nem imortais, nem imunes ao que é bom. Um bébé é uma estrada para um futuro onde somos os alguéns de um passado onde tudo era tão soalheiro quanto o sorriso de uma criança e tão terno e suave como os seus bracinhos estendidos pedindo um biberon.

"Tio, tio, tio" não é apenas um chamamento da Beatriz. É a recordação do que queria para mim, a insistência em ter esperança mesmo quando não se acredita nela, o empurrãozinho pequenino para fingir, durante uns momentos, que tudo pode ser como deve e não como é. Ando perdido em escuridões e ela puxa-me as calças e pede colo. Aponta para a porta da rua e saio com ela. Mesmo quando chove, há sol e eu consigo segurá-lo. Não devia ser possível, porque sou humano, mas este vem revestido da melhor capa protectora que existe: a possibilidade.