quinta-feira, dezembro 19, 2019

Fachinação 14: O vento que leva, o vento que passa


É o ponto sem regresso. Pelo menos, assim surgiu o seu nome: o enorme deserto de Taklamakan envolve este ponto da província de Xinjiang e espalha-se para Sul praticamente até ao Paquistão. O seu tamanho corresponde ao da Alemanha, portanto imaginem só tal imensidão de areia mesmo no coração da Europa. Não conseguimos. Não existem desertos na Europa continental; e o mais curioso é que o seu aspecto não é fixo. Muda sempre. As suas dunas erguem-se e desfazem-se com a passagem do tempo e dos elementos. Ou seja, se voltasse cá no próximo ano, provavelmente veria uma paisagem completamente diferente. Penso nas minhas aulas de Teoria da História e na obsessão que o professor Fernando Catroga tinha pela forma do tempo, pelos seus ciclos, a circularidade de Santo Agostinho e a música das esferas de Herder. Talvez seja de ser muito cerebral em pontos. Não sendo um deserto de emoções, embora por vezes gostasse de secar ao ponto de tudo ser areia que escoa, de fazer desaparecer tudo no ritmo da ruína. Este ponto sem regresso foi na Antiguidade estrada de comerciantes, cujas probabilidades de ultrapassar Taklamakan eram tão boas que o baptizaram desta maneira: um local onde uma vez entrado, a saída não é certa. Animador. A única salvação possível nestas viagens pela desolação eram os vários oásis espalhados pelas areias, ponto de refúgio e acima de tudo, água. Muita água. Com o tempo e a afluência de pessoas, esses oásis deram lugares a cidades que funcionavam em seu torno, pontos de fixação de gente, de vida, de negócio, de cultura. Quase todas as grandes cidades da Ásia Central começaram assim e aqui na China, já visitei Kashgar e Turpan, dois exemplos. Água é vida. Se isto hoje é um chavão, imaginem em territórios onde esta só se encontra em recantos desérticos conhecidos de alguns. Depois da visita aos Budas cavernosos, a estrada leva-nos a uma dessas cidades oásis, que a certa altura foi uma das grandes metrópoles dos antigos reinos chineses: Gaochang.


Surgida como entreposto de comerciantes, Gaochang sempre foi uma cidade cobiçada pela sua função e posição a norte de Taklamakan. Hoje, só existem algumas ruínas, incluídas num museu. Gaochang é património mundial e considerada uma da cidades mais bem conservadas da China Antiga, dizem. Quando chegamos ao edifício da recepção, chove. Chuva numa das zonas mais secas da Ásia. É quase um sinal colonialista, ocidentais aparecem e vida surge. Enquanto esperamos pelos bilhetes, reparamos num velhote que toca cítara com vontade e galhardia, acompanhado por outro que dá uns batuques. Estão quase a terminar um mini concerto. Unplugged in Gaochang. Atrás de si, duas mesas preenchem-se de pratos cheios de uvas. Têm um ar apetitoso, com a sua cor verde amarelada evidente, sumarentas no aspecto, convidativas na fome que tenho. Um funcionário deve ter reparado no meu ar esfaimado e com um sorriso, empunhando o inglês macarrónico que aprendi a amar na função pública chinesa, explica-me que elas estão ali para serem comidas por quem queira.
Por esta altura, Turpan vive a Festa da Uva, essa fruta que tem um papel tão central nesta região como já expliquei. É tradição por esta altura oferecer a estranhos, estrangeiros e conhecidos doses generosas deste fruto como sinal de agradecimento aos deuses pelas colheitas e também porque, segundo ele, a prosperidade deve unir as pessoas e não separá-las. Todas as casas de Turpan, conta, participam e as pessoas gostam de dar a conhecer algo que as orgulha tanto. Calculo que vivendo num deserto esquecido pelo governo central, não haja muitos motivos de orgulho a que se agarrem. Uma uva é algo tão válido como qualquer outra coisa. E são muito boa: trinco uma e logo a casca estala entre os meus dentes, uma das minhas sensações preferidas quando como fruta. O sumo é doce e arranjo logo o descaramento de tirar dois cachos e entregar-me assim à gula. Enquanto nos dirigimos ao espaço de visita, como-as e passo por um conjunto de estátuas que representam figuras importantes da História da cidade. Nem todas são homens, há mulheres, o que costuma ser uma raridade nas representações do passado.

A tour pela ruínas da cidade é simples, até porque não sobra grande coisa da mesma. Foi destruída no século XIV em definitivo e abandonada desde então. Boa parte dos edifícios que restaram foram destruídos ao longo do tempo por gente que necessitava de material de construção. Vamos dar uma voltinha num veículo descapotável com 30 lugares, onde os melhores são aqueles que ficam atrás, porque permitem uma visão quase a 360 º. É num deles que me sento. Logo percebo que Gaochang era enorme no seu auge, a julgar pela longa muralha que rodeia o espaço onde antes se localizavam as casas. Há espaços claramente divididos: a moradia real; a zona religiosa; o centro da cidade; e uma periferia onde, somos informados, moravam por norma os seguidores das religiões minoritárias, normalmente variando entre os Islamismo e o Budismo. É muito complicado explicar a História de Gaochang sem que exista um conhecimento mínimo da própria História da China ou mesmo da Ásia. A nossa obsessão ocidental de criar uma narrativa histórica eurocêntrica fecha o conhecimento que temos - bem, aqueles que o têm - à complexa evolução dos reinos chineses e asiáticos.

 Não vou tentar entrar aqui em pormenores, mas fica uma versão para idiotas como eu: houve quatro dinastias antes de Cristo e um período de Guerra Civil. A mais duradoura foi a primeira, que se estendeu por quase um milénio; no entanto, pequenos reinos ocuparam partes do espaço chinês actual, que só começa a ter esta dimensão com as campanhas militares e expansão da dinastia Han, a primeira depois que JC quina. Depois de, em 220, o reino Han se ter dividido em três, há um período em que o país se divide, algo que só temrina em 581, no início da curta dinastia Sui. No entretanto, o verdadeiro ponto unificador do país era o comércio da Rota da Seda, em cujas estradas os reinos chineses foram sucedendo e caindo, mas mantendo uma unidade fictícia no meio de religiões e culturas muito diferentes entre si. Depois de um novo período de divisão, devido às disputas decorridas após a morte de Genghis Khan - que conquistara todo o território chinês - há nova união no início da dinastia Yuan, em 1271. Nos sete séculos seguintes, o reino atravessa momentos de apogeu e declínio, principalmente devido à intervenção das potências ocidentais, durante os períodos Ming e Qing, dinastia que encerra o período monárquico na China com a deposição do último imperador, Pu Yi, em 1911. Desde então, o período da República tem permanecido, com a maior alteração a surgir em 1949, quando após um período de revolução, o Governo Chinês democrático se exila em Taiwan, ainda hoje reclamada pela China como território, e Mao Tse-Tung inicia a era da China comunista.


Claro que mesmo com isto percebo zerinho do que vejo. Para mim, é uma imensa planície de areia encarnada, com reconhecíveis escombros e destacado, lá ao fundo e aproximando-se com o movimento do veículo, um único edifício de pé. Do que me apercebo, Gaichang era um quadrado, a julgar pelas muralhas que ainda se mantêm de pé e pela linha evidente daquelas que foram sumindo vítimas dos vários conflitos tribais que se desenrolaram nesta área mesmo depois do desaparecimento da cidade. Existem ainda as nove entradas originais da cidade, embora aquela voltada a Oeste seja a melhor preservada e a única onde a porta é, de facto, evidente. A construção isolada que mencionei ergue-se a sudoeste e sem que esteja perto, pela forma cónica e vertical, arriscaria que é um templo de uma qualquer religião - o meu conhecimento de arquitectura não cristã é reduzido, infelizmente. Han, o guia de que vos falei na crónica anterior, é uma cátedra de passado chinês e também sabe muito sobre tudo isto. Explica os ires e vires de Gaochang e alerta que vamos fazer duas paragens: uma no tempo budista - o meu palpite revela-se correcto - e outra no palácio imperial, que não consigo ver a partir de onde me encontro. Bem, lá chegaremos. O templo, que é um de dois (informam-nos que o outro não pode ser visitado, mas mistura religião e justiça), é circular e tem apenas uma entrada. Não sobra inteiro, mas consigo ter uma ideia do que seria no seu tempo áureo. O Han refere que antigamente, era completamente pintado em redor, de azul e dourado. Hoje, sobra a cor dos tijolos. Parece que um conhecido monge budista chamado Xuanzhuang. que soa à onomatopeia de um beijo de velha parou aqui, a caminho da Índia e proclamou uns sermões que devem ter sido tão bons que ainda hoje se lembram dos mesmos.
Rodeio o templo e subo umas escadas que conduzem à entrada. A porta está fechada, mas permite uma espreitadela. Vejo uns murais e pouco mais. Talvez tenhamos mais sorte no Palácio. Cinco minutos depois, chegamos a esse espaço. Mais ruínas, a palidez do céu cinzento não ajuda a criar na minha cabeça essa imagem de esplendor que nos querem fazer crer quando falam de Gaochang de maneira tão elogiosa. Há uma estrutura cúbica a meio e paredes que se desfazem, sem personalidade, rodeando. Consigo perceber, pelo menos, o tamanho desta moradia real, era enorme. Não há dúvida que de essa ideia de gigantismo de antigos reinos chineses, de riqueza, de importância histórica é um bálsamo para o ego deste povo. Uma placa de madeira, colocada estrategicamente, lança um lema que pode muito bem ser desígnio nacional: "Sorrir é a nossa linguagem; a civilização a nossa crença". Tudo bem, camarada Xi, mas todo este aparato por umas ruínas, mesmo que imensas, que quase nem ruínas são é demasiado. Conimbriga fica-me mais perto de casa e os Romanos tiveram classe o suficiente para criar uma técnica de mosaico que dura mais de dois mil anos depois.

Claro que, viajando pela China, percebemos que as suas visões do passado apenas aguentam pela força simples da vontade e do dinheiro. Tuyok é o exemplo disso. Enquanto por um lado envereda por esforços para acabar com a cultura uigur, o governo chinês anda a recuperar esta pequena aldeia típica desse povo ancestral simplesmente por propósitos turísticos. Fá-lo de forma atroz, violando a beleza simples da arquitectura deste povo e apenas mantendo aqui aqueles que ainda vivem de acordo com tradições milenares pagando-lhes, não dando qualquer outra visão esperançosa do futuro. É triste, muito triste. Almoçamos aqui, cortesia de uma família local. Recembem-nos debaixo de um vinhedo, num caminho a partir do qual acedemos às casas. Aqui, o mundo está longe, algures. A simpatia das pessoas, a disponibilidade da partilha e aquela sensação, mesmo ligeiramente falsificada, de comunhão, existe enquanto comemos do seu pão e da sua fruta, das suas compotas, da sua carne. Tento ao máximos quebrar a ideia de que eles estão ali para me servir, mas percebo, ao logno da refeição, de que tal é impossível. Estão formatados a isso, a verem-me, um estrangeiro, como alguém que paga e espera algo, não como um curioso que chega e quer conhecer, comunicar, ver, trocar experiências. O mundo é cada vez mais a barriga exposta do capitalismo de versão egoísta. Há poucos países como a China para saber estragar uma coisa boa.


Ainda assim, pelo espaço, pela observação desta gente, é um momento de descompressão e de algum prazer que nem a escumalhice consegue estragar. Logo de seguida, damos uma volta breve pela aldeia. Enfiada num vale vinhateiro das Montanhas Flamejantes, é um conjunto de casebres de adobe pequenos. A maior parte tem dois andares, um rés-do-chão e um piso superior habitualmente com varanda, presumo que para colocar as uvas a secar. Por vezes, passamos por gente na rua, mas aparte de dizerem olá, ignoram-nos. É como se nem estivéssemos ali. Existe ainda uma mesquita azul que está fechada. Na curta volta que dou, reparo numa placa que celebra Albert von Coq, arqueólogo alemão que referi na grutas do Buda que os pariu por ter gamado pinturas murais e artefactos. Aparentemente, morou aqui uns tempos e merece ser celebrado por isso. Parece pouco chinês, isto de elogiar alguém que tão claramente explorou o país e é estrangeiro. Ainda nos cruzamos com um velhote que à sombra de um toldo, guarda uma arca frigorífica e quer falar connosco no seu próprio idioma. Percebemos zero, mas o seu entusiasmo e alegria são tesouros à parte, das poucas coisas genuínas que guardo desta visita. Mas é hora de partir. Junto ao autocarro, um de nós tenta comprar uma garrafa de água, mas desiste. O ponto de venda está incluído na esquadra de policia de Tuyoq e querem cobrar 12 yuans por um produto que habitualmente custa dois. Gatunos. A China é comunista, mas quando convém. Como sempre, adapta-se às realidades, explora necessidades e projecta a imagem que conta e favorece. Imagem. Aspecto. São palavras que guardo destes primeiros cinco dias no país.

No último ponto do dia, regressamos ao deserto. Embora, na verdade, nunca o tenhamos abandonado. Depois de uma longa recta que atravessa um campo de extracção petrolífera, aquelas garças mecânicas em constante movimento sugando o interior do planeta, entramos numa pequena aldeia de portões desenhados, todos. Depois disso, a carrinha estaciona num largo parque e à nossa frente, areias amarelas distinguem-se a algumas centenas de metros. Kumtag. A montanha de areia. Um planalto desértico que se prolonga até à Mongólia e é uma extensão de Taklamakhan. Que continua a expandir-se. Se observarmos um mapa de há dez anos, a área de Kumtag correspondia a dois mil e quinhentos quilómetros quadrados. Hoje, é quase o dobro. Como noutras alturas, os caprichos da Natureza ameaçam cidades e povoações e as primeiras vítimas, neste caso, podem ser precisamente ruínas antigas como as de Gaochang. Este é um problema que tem afectado o nordeste da China, com o avanço das areias a obrigar a leis anti-emigração e desperdício de água, pairando o medo de que nalgumas décadas, todos estes locais que visitei hoje possam estar completamente enterrados. Quando em Portugal falamos de desertificação e seca, nunca pensamos nestes efeitos. Mas aqui, a escala é diferente em tudo. Até na malapata. Somos transportados até um ponto a partir do qual começam as visitas. Porque temos horas contadas para apanhar um novo comboio nocturno, dispomos apenas de pouco mais de meia hora. Desperdício, claro, porque este parece um deserto como deve ser. Viajo para fotografar, não para correr atrás de transportes. Ponho por isso pés à areia rapidamente. À minha frente, uma encosta picada arenosa contempla-me zombateira. De cabeça, calculo que sejam pelo menos uns 400 metros. Talvez mais. Bem, de certeza mais. Não tirei as férias para fazer cardio, mas já que aqui estou...


Meto um ritmo regular e lento. A cada 50 passos, paro uns segundos. Respiro. Há muita gente aqui, este é um popular lugar de turismo. Ainda assim, não são muitos o que, como eu, se entregam às dores fisicas do prazer da visão. Há quem se deite aqui como quem está na praia, mas o mar existe milhares de quilómetros longe das sensações. Mulheres passeiam de sombrinha, adolescentes fazem selfies parolas, vejo até alguém que lê descontraidamente. Lembro-me que no ano passado, no Peru, havia quem surfasse as ondas de areia. Aqui, não existem esses corajosos Chego ao topo e tenho de me desligar durante uns segundos. Numa longa extensão, fico com a impressão de que um grupo de serpentes deslizou pelo solo e o que vejo são esses rastos fundos e bruxuleantes, que o sol se encarrega de transformar num espectáculo de marionetas das sombras. O relevo criado pelos fortes ventos que aqui circulam criou uma cordilheira de pó cristalino e mineral, amontoado numa amarelecida luz que o sol expande nos meus olhos. É imaginar os vossos pés na orla do mar, mas numa multiplicação por cem. Kumtag não é um deserto grande na métrica dos tamanhos desérticos, mas impressiona e captura o olhar, afunda-o como os meus dedos do pé se afundam no solo.

Quero sentar-me e ficar um pouco, fotografar como bem me apetece, mas não tenho mesmo tempo. Alertam-me que mais cinco minutos e temos de ir embora. No entanto, aqui consigo pensar de desligar-me, é a primeira vez que tenho espaço mental para isso desde que me envolvi com as montanhas da estrada de Karakoram. Daqui a três horas, abandono Xinjiang e começo a pesar bem tudo o vi aqui, no quão diferente é de mim e do que conheço. Mas nem consigo engrenar a reflexão como quero. Estamos à pressa, estamos a correr. No regresso, o que inclina de uma maneira agora vira ao contrário. Enquanto os meus colegas de viagem descem cuidadosamente para não cair, largo numa corrida desenfreada e sem qualquer pinga de comportamento civilizado. Não vejo câmaras ou polícias, nem ninguém a vigiar-me. Neste deserto, sou livre por momentos, na minha estupidez tão desmesurada quanto este campo de areias. Pode haver sinais de vida em desertos. Quero acreditar que neste segundo em que me torno idiota, sou um deles, e bem forte.


quinta-feira, dezembro 12, 2019

Fachinação 13: O Buda que os pariu


Abro os olhos e vejo vermelho. Perdes-se na distância, na minha vista. A extensão é longa e a certa altura, é tão compacto que se torna impossível de escapar. Mas se o vento sopra com mais força, desfaz-se em pó fino e maleável. Areia. Um deserto encarnado com planícies e dunas altas. Não desperto de um sono, apenas me fui afastando de quem viaja comigo na carrinha, perdido entre as notas musicais que nos meus headphones se tornam escapatória da China. É-me complicado tantas vezes estar num sítio por inteiro. Ou estar com pessoas a toda a hora. Preciso de mim e ouvir música é talvez a maneira mais educada de mandar pessoas à merda. Quero que saibam que não é nada de pessoal. Se não forem estas pessoas, são outras. Porque preciso mesmo de fugir de quando em vez. De pensar, de reflectir, de recordar. A memória faz muito parte de nós e acho que tem sido um dos temas principais das crónicas que fui escrevendo ao longo dos anos, viajasse eu à América do Sul ou ao Círculo Polar Árctico: interessa-me muito o que nos constrói como pessoas e como grupos, grandes ou pequenos. Acho que também por isso que acabei em Historia, que lá jazi durante quatro anos e ainda hoje ando em exumações.

Na China, a memória é entendida como reinterpretação. A tarde do dia anterior foi preenchida pela visita a uma espécie de parque de diversões do vinho, um museu que supostamente nos apresentaria uma resenha histórica da produção vinícola por Turpan e quando damos por nós, parece que Joe Berardo abriu aqui um Buddha Park ainda mais parolo. Localizado no vale que produz as mais conhecidas bebidas alcoólicas da região, é um daqueles museus onde não se aprende nada daquilo que se quer ensinar, porque o professor não só não preparou a aula, como dispensa qualquer tipo de matéria a leccionar. Faz uns números de malabarismo, engole umas espadas e conta assim que saiamos mais enriquecidos. Aqui, é a mesma coisa: do edifício da recepção, somos transportados por um comboinho que faz uns três quilómetros até à atracção principal, recriações de algumas casas dos tempos em que se fazia vinho a sério por aqui. Cores berrantes, estuque barato, imitações de objectos, murais sem qualquer gosto. A China reescreve-se e entrega essa visão à população que a consome. Quando organizei mentalmente estes textos de viagem, poderei seriamente se valeria a pena dedicar tempo a esse local. Talvez tivesse um interesse kitsch, mas no geral o que sobra é esse elemento de feira popular bacoca que agrada tanto aos chineses. Vê-se pouco e o que se vê assombra pelo desfasamento da realidade. É o que há e não é muito; e o que há é o aproveitamento de uma cultura que se quer exterminar, o que dá um toque muito sui generis a tudo isso.


Mas hoje, pelo menos em teoria, visitarei locais de real interesse histórico. O guia chama-se Han e no início da viagem automóvel, foi debitando alguns factos interessantes: falou da geografia de Turpan, de como fica numa depressão e de como tal originou uma das lendas mais fortes de Xinjiang, a de que o Apocalipse final do mundo se dará nesta cidade perdida no deserto. Olhando pela janela, vendo desolação e areia, quase consigo acreditar, embora tenha para mim de que a Besta apreciaria mais areia junto ao mar. Contou-nos também o mistério de alguns painéis electrónicos que já viramos em Kashgar, com uma contagem decrescente. Trata-se um projecto governamental de erradicação de pobreza. Os números nos painéis são a quantidade de dias que faltam para que desapareça a indigência no país. Diz isto com um ar sério e sorridente em simultâneo. O Han não é historiador, mas sim engenheiro; no entanto, está desempregado e faz estes biscates porque se interessa muito por livros e por saber coisas. Deve ter uns 45 anos, é baixote e largo e fala num inglês bastante bom. Foi de ler muitos textos em estrangeiro quando tirou um curso, o que mostra ou uma estranha abertura do aparelho chinês ao Ocidente ou o funcionamento pleno da espionagem industrial do país. Mostra-se também muito preocupado com o aquecimento global e os motivos não são apenas superficiais.

Uma boa parte da água que tornam Turpan num literal oásis no deserto vem do degelo de glaciares e cumes nevados das montanhas próximas da cordilheira do Tian Shan. A população tem beneficiado da gradual renovação desta fonte de água desde a sua origem. No entanto, o mesmo aumento de temperatura planetário que tem dizimado as calotes polares e virado do avesso o clima em muitos países acelerou este processo, levando a que as reservas de água gelada tenham diminuído assustadoramente. O Governo Chinês mostra-se, por uma vez, verdadeiramente preocupado com uma parte de Xinjiang por outros motivos que não sejam sinistros. Por ser o maior fornecedor de vinho do país, e falo de produção real e não folclórica - também existe - é de todo o interesse que continue aqui a florescer agricultura. É um pouco complicado fazer crescer vinhas sem rega. A China sabe perfeitamente que controlar este fenómeno está longe do seu controlo. Também sabe que é um dos grandes responsáveis pelo mesmo, pela sua irresponsável política industrial de há trinta anos para cá. Mas a população não necessita saber. Para a imagem pública, fica o papel que têm desenvolvido ultimamente como grande paladino do carbono zero e da tecnologia ao serviço da ecologia e de soluções para resolver o problema. Também para deixar os EUA mal visto, mas tal é apenas um bónus. Pergunto ao Han se ele acha que é possível, se tem esperança. Uma pausa. Diz que sim, Que o Governo tem sido bom e que a China tem pessoas muito inteligente. Que também é do interesse dos políticos tratar da questão. Que todos devem ajudar, naquele espírito comunitário que não é fantochada e existe mesmo nos chineses. Sinto na voz dele que não diz por dizer, que acredita mesmo. Que mesmo no meu de manobras canalhas, podem surgir emoções e sentimentos positivos. Uma crença no futuro, mesmo quando o presente é envenenado.


Saímos da estrada principal e metemos por outra secundária, mas de bom alcatrão. É de turista de certeza. A vermelhidão da paisagem mantém-se. São mais uns cinco quilómetros até pararmos. Saio do autocarro, procurando ligar-me novamente ao mundo real. Torna-se difícil quando a paisagem saiu de um filme de Jodorowski. Montanhas Flamejantes é o nome que deram a este local, elevações de areia e rocha sangue, nalgumas zonas como vítimas da paisagem desenfreada de uma manada de elementos. Uma enorme garganta à minha frente conduz a um parque de estacionamento, onde deverá encontrar-se também, calculo, a nossa primeira paragem do dia. Mas a garganta não é árida: uma mancha verde forte, de árvores e vinhedos, repousa no seu fundo, indicando que algures há um curso de água a passar. Na encosta, observo o que sobra de um sistema de elevadores que ajudava as pessoas a subir a inclinada vertente. Mas nesta manhã, estão parados. É provável que nem funcionem. Serviam principalmente um conjunto de pequenos edifícios de barro castanho triste, paredes arejados com vários espaços quadrados. Servem ainda para deixar as uvas a secar, no seu processo de transformação em passas. O ar quente desta zona tórrida, juntando à secura da areia, tornam este vale no local ideal para que tudo isto seja natural e que a única intervenção humana seja a de trazer as uvas e levá-las posteriormente. Tiramos fotos num miradouro que dá para a garganta e descomprimimos. Há uma beleza própria nesta monocromia, que talvez fosse até mais bonita num dia de luz. Com o céu cinzento, torna-se apenas triste; mas as rugas da passagem do tempo, do vento e da água são ainda mais insolentes. Atrás de mim, um monte de areia mais ou menos da minha altura cria um milagre e dá à luz ovos. São dezenas, cabecinha de fora, metade enfiados na areia. Dois marmanjos guardam-nos. Um segura uma placa indicando um preço de 5 yuans. Do que entendo, a ideia é que os ovos estão a cozer na areia quente, de forma lenta. Um método bem natural e ecológico de cozinhar. Claro que, dizem-me depois, a coisa é um bocado treta. Na maior parte dos casos, trazem-se cozidos em casa e ali colocados, com casca e tudo, para o logro ser ainda mais verdadeiro. Uma ilusão. Ah, China...

O ponto a visitar são as cavernas budistas de Bezeklik. Cavernas é uma palavra muito liberal. Podem classificar-se perfeitamente de buracos na rocha. Desde o século V ao século XIV depois de Cristo, seguidores de Buda, homens sérios comprometidos com os ideais de solidão e ascetismo do senhor Gautama, o Buda original, isolaram-se neste vale arenoso para se purificarem, buscar o sentido da vida e evitar andar sem roupa interior de maneira a proteger as virilhas. Este último aspecto é apenas especulação minha. A maior parte datam dos três últimos séculos de permanência. Ora, porque é que a coisa acabou no século XIV? Por intervenção desse grande motor da História humana que são as guerras religiosas. Estes monges foram enviados a partir do Tibete para evangelizar a população de Turpan e arredores. Durante um tempo, foram bem sucedidos. O Budismo chegou a ser, aliás, a principal religião de Xinjiang, com Turpan no seu centro servindo de ponto de peregrinação para todos os seguidores de Buda que calcorreavam a Rota da Seda. Findo esse tempo, e perante o crescimento da comunidade muçulmana, zelotas e fanáticos fizeram aquilo que melhor sabem: perseguir pessoas diferentes só pela diferença e só para não deixar a coisa a meio, matá-las. Como se tal fosse considerado negligência, avançaram um pouco mais e destruíram todas as grutas que encontraram. O que sobra hoje dá apenas uma pálida ideia do que seriam estas grutas no seu tempo maior de glória. A aversão islâmica à representação religiosa não foi o único motivo pela destruição. Superstições na comunidade muçulmana local sopravam que aquelas figuras pintadas apareceriam à noite nos sonhos dos incautos habitantes para lhes roubar a alma.


O interesse maior está num conjunto de pinturas murais que cruza iconografia budista, de cores garridas e dourados feitos com outro real, e a história da região. Nalgumas figuras que ainda sobram, é possível reconhecer alguns reis e governadores de Turpan que se fizeram representar neste local sagrado. Fazem-se acompanhar por Buda e por monges importantes, numa representação do Paraíso e Inferno budista, uma religião que ainda que sem divindades, tem a sua escatologia de Bem e de Mal, por muito que o seu principal atractivo seja precisamente a representação por um conjunto de ideias filosóficas que aparentam não ter irrealidade. Mas tem. No Budismo, reencarna-se e essa reencarnação obedece a uma lógica de bons comportamentos e outros reprováveis. Portas-te bem, reencarnas depressa e no Brad Pitt; armas-te em parvo, podes muito bem reviver no corpo de um besouro dourado. Claro que, como de costume, os Europeus também estão metidos ao barulho quando o assunto é o desaparecimento de arte de outros continentes colonizáveis. Os murais mais bem preservados que escaparam à destruição foram removidos por um arquitecto alemão de nome curioso- Albert von Le Coq - e transportados para o seu país natal, onde ainda hoje permanecem num museu. Pode questionar-se, claro, se a permanência no museu não foi o factor chave para que ainda hoje pudessem ser admirados. Ainda assim, se quiserem viajar até Berlim para admirá-las, é melhor meterem travão nas intenções. Foram obliteradas durante a Segunda Guerra Mundial, quando so Aliados bombardearam a capital alemã. Mas esse é outro assunto. No entanto, foi um toca a todos: japoneses e britânicos vieram atrás e não se limitaram às pinturas. Tudo o que fosse artefacto ou livro desapareceu dali e um local cujo nome significa literalmente "Gruta pintada"deve ter parecido uma surpresa chocante para quem esperava ali desenhos coloridos.

Quando exploramos as grutas, lamentamos ainda mais que a selvajaria religiosa tenha vencido. Os traços que sobram, as pinturas murais são, mesmo danificadas, de grande beleza e significado, de muita ostentação até para monges que queriam viver despojados de bens materiais. No entanto, como templo real, calculo que quisessem transformar este complexo dos mil Budas pintados num exemplo para todos os locais religiosos do reino. Existem ao todo setenta e sete grutas, mas visitamos talvez um quarto delas. São aquelas que se conservaram melhor. Em quase todas vemos ainda figuras humanas, de olhos riscados, cara apagada. O preceito muçulmano contra a representação de figuras divinas aplicado na realidade, os perigos de uma colagem demasiado próxima e literal a leis que são inventadas por homens, mas justificadas por entidades invisíveis nas quais projectamos o melhor e o pior do que somos. Como em quase tudo, quando ambas entram em conflito, o pior vence. Mas as representações apelam exactamente ao contrário. Representam pessoas de raças diferentes, etnias Han e Uigur convivendo pacificamente ao redor de mesas com boa comida e música sendo tocada. Nalguns, temos até europeus, o que é uma aparição relativamente bizarra. Alguns dos murais representam gigantes Budas rodeados de figuras importantes naquele tempo; outros são representações mais abstractas dos mundos fora deste que definem a religião budista, embora se notem, nos cenários e representações, influências persas e um pouco de arte indiana.


Depois da visita guiada, temos alguns minutos para admirar o resto do complexo, um conjunto de casas com cúpulas e escadas ligando os vários patamares desde o rio até à entrada, construções à base do barro castanho triste que domina esta zona. Enquanto fotografo estes locais para a posteridade, a minha lente apanha uma cara familiar. O amigo americano. Michael, a omnipresença não divina. Não é paranóia se andarem de facto atrás de ti. Mas como...? O que de início me pareceu uma teoria da conspiração absolutamente tresloucada vai-se transformando lentamente numa possibilidade real a qual não se pode fugir. Estou quase certo de que notou o meu espanto. Desconfio, porque me aborda com a frase "Sim, sou eu outra vez. O senhor CIA", ao que respondo "Diria mais senhor NSA. Eles têm o melhor equipamento."
"É o que nós queremos que eles pensem..." E como não consigo morder a língua quando devo e tenho a tendência de me desbocar como a Boca do Inferno, acrescento:
"Claro que estamos na China, não é? Já que me estás a vigiar..."
O Michael seria o perfeito candidato a encarnar o Gato Cheshire de Lewis Carroll, a julgar pelo sorriso.
"Se calhar é verdade. Se calhar estou a seguir-vos. Quem sabe..."
Eu não. Mas posso desconfiar. Acompanham-no um casal belga e um rapaz francês. Explica-nos que se cruzou com eles acidentalmente em Turpan e decidiram vir até cá. Que provavelmente ainda vai dar umas voltas com eles, que pode ser que nos vejamos novamente. Acredito em tudo. Acredito ainda mais na expressão esfíngica com que diz isto. Eu li umas coisas sobre a esfinge. Algures num passado remoto, a cara humana que hoje lhe conhecemos era de leão, a combinar com o resto do corpo. Não sei com o que é este moço combina. Mas tenho a ligeira impressão que a partir do momento em que deixarmos hoje esta província de Xinjiang, não voltaremos a vê-lo.

Quando saímos do parque dos Budas, este não do Berardo, uma colina que leva a um plano mais elevado mesmo à nossa frente convida-me. Temos meia hora, quarenta minutos a matar até que a carrinha saia. Decido fazer-me ao caminho. O Zé Luís partilha da ideia. Mais ninguém do grupo quer vir. Olhando para a inclinação, talvez já imaginem uma fogueira nos seus pulmões ou falta de tempo para ir e voltar. O que é um bocadinho exagerado, a distância não é assim tanta. Depois de várias demandas e discussões com um grupo de uigures que guardam camelos, e um portão que nos dá acesso à subida - queriam cobrar-nos dinheiro por algo que nem é bem seu, que apenas usam para levar visitantes nos seus bichos, para se sentirem beduínos durante uma hora - subimos. A areia dificulta a passada e opto por ir de lado, passo a passo, aproveitando os sulcos deixados pelos camelos. Ajuda um bocadinho, mas não muito. Tenho de meter um ritmo alto para dar a mim mesmo todo o tempo possível para fotografar alguns montes que vejo pouco acima de mim. Quando chego, recupero o fôlego durante alguns segundos. Estou rodeado de vermelho, sangue petrificado no tempo em todos os seus salpicos e tonalidades. Este planalto rodeado de elevações é tão fotogénico que me basta apontar a máquina e clicar. O costume em belas paisagens, qualquer um é fotógrafo. No tempo que tenho ainda antes de descer a correr, regresso à sensação de desligar do mundo. Não estou efectivamente sozinho, mas é como se estivesse. Cheguei a um ponto na minha sanidade mental onde eu e a máquina conseguimos criar uma bolha bem fechada que não permite distracções, pensamentos negros, pessoas, tudo o mais. É um outro tipo de gruta onde traço representações dentro de uma câmara. Só eu posso danificá-las com distracções e tento não fazê-lo. Quem pode vandalizá-las está aqui, e quem pode precipitar a vandalização está longe. Enquanto ambas não se juntarem, estou seguro. Estou, à falta de melhor palavra, zen.







quinta-feira, dezembro 05, 2019

Fachinação 12: Chá no deserto


Vira a pala do boné para o lado contrário e enquanto acelera numa enorme recta cujo fundo vislumbro em maneira de miragem, ri-se e acena-me positivamente com a cabeça. Não sei se me quer dizer algo ou se, à boa maneira de quem não conhece o interlocutor, é um daqueles tiques de familiaridade. Só sei que é taxista e tem idade suficiente para participar num picanço. Apanhou-me, ao Joaquim e à Isabel na estação de Turpan e tentámos explicar-lhe o hotel que nos serve de destino. Talvez tenha percebido, ainda não entendemos. O jovem está num passo à frente dos profissionais do volante de Kashgar. Não se atreve a usar gestos como lingua franca. Quando pretende comunicar, saca do telemóvel. Escreve algo e o Google translator transmite a sua ideia num inglês rude, mas compreensível. Nota-se logo o desenrascanço: pergunta-nos a origem, regozija-se com Cristiano Ronaldo, quer saber os nossos gostos musicais, embora me pareça que no seu auto rádio é o único ditador cuja vontade conta. O carro enche-se de uma versão oriental de "Shape of you", de Ed Sheeran. A letra é toda em chinês, excepto o refrão. Nhonhinhanhinhinhi shape of you. Não piora, mas também não melhora. Como nos rimos perante este clássico instantâneo, esta canção tão chinesa, o nosso condutor entende isto como uma aberta para arranjar uma oportunidade de negócio. Enquanto conduz, escreve ao telemóvel. Mostra-me "Need a driver? I'm available, cheap". Dou resposta negativa de maneira educada sem pronunciar uma palavra. Tentem fazer isto, é muito mais complicado do que parece. Ele está na boa, polegar esticado, siga para outra e regressa ao celular. "No speed limit, no tickets in Turpan. Will drive fast". Para ele, é espectacular. Para mim, que já estou vacinado contra os condutores da Ásia Central, uma sequela do livro do desassossego.

Turpan presta-se a velocidades. Um imenso deserto por largos quilómetros rodeia a cidade e as poucas elevações á vista são montes de areia. Tem a curiosidade geográfica de ser o local mais baixo de toda a China e o segundo em todo o mundo, apenas atrás do Mar Morto. São cento e cinquenta e quatro metros abaixo do nível do mar. É, portanto, possível subir a um dos montes que vejo e estar alinhado com o oceano. O nome da cidade alude a isto: significa "Grande depressão", o que me faz sentir uma ligação próxima a este sítio ainda antes de qualquer visita. Apesar da sua secura e de uma temperatura média anual que ronda os quarenta graus celsius, a principal actividade desenvolvida em Turpan é a agricultura. É a capital das uvas chinesas e há uma grande probabilidade de, tendo comprado um pacote de passas em qualquer ponto do país, ele ter saído daqui. A vindima e as vinhas definem a personalidade dos seus habitantes e o seu modo de vida. Parece um paradoxo que um local tão arenoso seja este portento do cultivo agrícola, mas a origem de Turpan provém de um oásis, como quase todas as cidades importantes de Xinjiang. Há acesso fácil água, mas com as alterações climáticas, resta saber até quando. Não é um problema que passe ao lado dos agricultores chineses, como verão na próxima crónica. No entanto, antes do fantasma da Greta futura ter surgido com preocupações ecológicas, muito antes disso, este era um importante entreposto da Rota da Seda. Por várias vezes mudou de mãos entre reinos que mas tarde seriam aglutinados no grande Império Chinês e por este passado de conflito, é possível visitar vestígios de culturas muito variadas na província de Turpan, passagens de religiões tão diferentes quando o Budismo e o Islamismo.


A geografia da cidade de Turpan não é complicada. Uma vez no seu fraco bulício, trata-se de uma longa avenida com ruas perpendiculares, umas mais estreitas, outras com largura suficiente para, pelo menos um par de camiões desfilarem em casamento. Boa parte das casas parecem estar ainda em construção, numa arquitectura que simplesmente esqueceu telhados. Abunda o já familiar tijolo de burro e uma decoração que deve bastante aos arabescos. Ocasionalmente, ressaltam cores garridas, habitualmente azul, mas as paredes carregam-se das cores do deserto, um vermelho profundíssimo que recorda as montanhas flamejantes das areias encarnadas de Turpan; e um pálido castanho, reminiscente das planícies desérticas mais a Leste. Por entre duas casas, o táxi conduz-nos num beco estreito. Por momentos, pensamos que se enganou e afinal o tradutor é tão falível quanto a nossa própria ignorância do idioma chinês. Mas não. afastado de tudo, num pequeno largo, surge um hotel com inscrição: "Silk road lodges - the vines". Saio do táxi e enquanto tiro as malas, reparo que sim, do meu lado direito existe um espaço com aspecto agradável, coberto pelo verde das vinhas, mesmo a matar nos dias de calor. Que são estes, afinal, dez e tal da manhã e o ar abafado já me seca os pulmões e o corpo. Nem quero imaginar as tardes. Enquanto esperamos pelo resto do grupo, entretemo-nos com um par de cães que por ali circulam. Afáveis, dados à brincadeira, disponíveis: claramente, não foram treinados pela polícia chinesa. Sigo-os até ao interior do alojamento. Uma pequena praceta com bancos e mesas parece pedir noites de Verão a enganar a canícula com a brisa nocturna, conversa à volta de chá, noites em que não apetece ir para a cama. A praceta é rodeada dos quartos, em dois andares - alguns no piso térreo, outros no elevado e separada, uma zona de restauração, com mesas em interiores e exteriores, no num terraço. Afastada, nas traseiras do hotel, encontra-se uma pequena e tosca piscina, vazia, o que dá mesmo jeito em altura de Verão porque é disso que precisamos.

Estou desejoso de me meter no quarto. Uma noite num cabine de comboio e quase dois dias sem passar o meu corpo por água devem ter criado um segundo eu de sujidade na superfície da minha pele. Uma coisa que raramente abordo nas minhas crónicas de viagem é o espaço intermédio. O que acontece quando tenho de viver o quotidiano de andar de lado para o outro. Aquele ritual de criar casa onde esta não pode existir. Os quartos de hotel são locais muito estranhos, onde nos devemos sentir familiares, mas de familiaridade têm pouco. Somos convidados a habitar um espaço , com a certeza de que um dia ou dois depois deixará de ser nosso. Tento não criar uma relação com eles, mas sei perfeitamente que por entre as longas viagens e, por vezes, um cansaço que se acumula como um saco de pedras, a cama que neles repousa é aquela recompensa. Quando entro, deixo a mala e a mochila ao fundo da cama, sem querer saber muito como ficam ou onde estão. Apenas me quero livrar delas, de uma maneira que não posso usar com outras coisas da minha vida. Morro na cama, mas de olhos abertos. O corpo dormente, o sangue latente, tudo bem presente. Procuro Internet com o telemóvel, sei que, ainda por cima quando estou há mais de uma dia sem dar notícias, há quem possa pensar eventualmente que não morri numa cama simbolicamente: faleci mesmo. Claro que na China, enfrento esse inimigo que é o vigilante cibernético que controla os sites que posso visitar. Através de uma VPN, uma aplicação que permite contornar esse pequeno problemas mas que facilmente me pode valer uma rabecada de cacetete caso seja descoberto, evito essa questão. Mas demoro a ligar-me. Penso em como, na verdade, uma boa parte desta vigilância até é papelão, que algures, que controla este sistema poderia saber facilmente que está a intrometer-se no mesmo, quem transgride e simplesmente não se importa. Se sabiam a que horas chegava hoje, podem muito bem ter-me naquela lista de gente que, de certeza, está mortinha para ser ocidental numa terra onde isso apenas é permitido se aceitarmos o capitalismo brutal como a única definição do que é o Ocidente. Escrevo que sim, está tudo bem. Satisfaço algumas curiosidades. Falo com quem devo, falo até com quem não devo. Publico fotos, espero likes para depois. Sou tão vulgar quantos os mais vulgares deste mundo, tão humano e falível como qualquer um que procura aprovação e aclamação dos outros, mas quero sentir-me especial. Passo as viagens entre sentir-me patético e único, na variação de uma paisagem, de um momento mental. O Hélder usa a casa de banho em primeiro. Vou eu a seguir. O chuveiro é enorme, largo. A água tomba como dedos que me tentam apagar os tremores da consciência, mas só a amolentam pela força da água tépida. A minha cabeça encostada à parede não estaca nem tem pausa, o interior é Le Mans em dia de corrida, vinte e quatro horas de aceleração. Quando a vejo na água, sinto-me sujo e limpo em simultâneo. Como se entrevisse o arauto da minha própria destruição e a única ilha deserta onde me posso sentir em casa. Desligo a água e a toalha trata do resto.


No exterior, alguns dos meus camaradas já destilam. Um punhado, claro, vidra no telemóvel. Um ou outro estão apenas e só a suar. O Mário, meu colega de viagem no comboio, reclina-se na cadeira com liberdade. Trato-o por "Comendador", pois este advogado de Fronteira possui nos seus genes a memória nobre dos grandes lidadores que defenderam as planícies do Alentejo, lendários homens dos tempos da Reconquista. Reza uma lena alentejana que Gonçalo Mendes da Maia, um desses bravos cavaleiros, enfrentou os sarracenos em combate quando tinha 91 anos, não se vergando sem antes matar alguns. É, obviamente, implausível e provavelmente uma confusão histórica; mas o nosso Mário, de óculos escuros garboso, a verborreia erudita pronta a discorrer num torrente fluvial de discurso retórico, sente-se e senta-se numa casa que não é sua. Imperturbável e estóico. Até a verdade de hoje ser mentira hoje também e num deslizar das pernas da cadeira, quase tomba e beija o poeirento chão. No entanto, segura-se este formoso e agora mais seguro do que há uns segundos. Sem óculos, exclama "Ai a minha vida" e aguarda uns segundos por algo, um algo que a todos passa despercebido. Quando fecha a porta de um quarto, finalmente confessa que no seu sonho acordado, o Comendador de Fronteira deparou-se com a visão despudorada de uma jovem que enfrentava o seu distraído olhar despojada de qualquer peça de roupa, uma Vénus de Milo que reencontra os seus braços e decide assim agredir o mundo com a sua viçosa juventude. Comendador Mário, surpresa e surpreendido, sentiu-se agradecido pela nudez inesperada e a sua resposta corporal fora da queda, como alguém conspurcado pelo pecado original tomba do Paraíso rumo à Terra. Aguentou-se, no entanto, permaneceu nesse estado de graça que apenas os beatíficos de sangue nobre podem transportar e trazer. Comentou, ainda assim, que a jovem enchia-se de qualidade e que não dera o tempo por mal perdido. Queda por queda, que seja de joelhos para agradecer ao Céu estas delícias que o acaso oferece por caminhos que alguém maior desenha.

Já caminhando nas ruas de Turpan, algo fica óbvio: os habitantes são extremamente simpáticos e abertos. Querem ser fotografados connosco, querem fotografar-nos. Quando os abordamos, há sempre uma palavra, mesmo em chinês, e à falta de comunicação verbal, oferecem-nos algo. Fruta, principalmente, uvas. Muitas uvas. O que eles adoram comer e dar a comer uvas. Orgulham-se muito das suas, querem que também nos orgulhemos e aceitamos. De manhã, a ideia é visitar apenas um local que não fica muito longe do lodge - a mesquita da cidade. Na verdade, isto é um exagero de descrição. O que existe de importante do edifício é apenas o minarete; mas compensa isso sendo o maior da China. Já descrevi anteriormente a relação que o Estado chinês mantém com as minorias e particularmente com os seus muçulmanos, visto e tomados por atacado como terroristas sem excepções, que só podem ser salvos através de uma reeducação intensiva. Estava portanto muito curioso para saber como estava a ser tratado este local aparentemente relevante para a cultura islâmica. Encontramos, claro, polícias, passeando-se à entrava por entre bancas de vendilhões de quinquilharias. Aqueles que no grupo se dedicam a essa religião por ali ficaram; os restantes foram avançando. Encontrámos uma guia, que explicou a necessidade de pagar bilhete para entrar. Tudo bem. Pagou-se. O ritual de vigilância da mochila era familiar, mas aqui, pelo calor emergente do dia, o menosprezo de lassidão dos guardas era notório. Antes de chegarmos ao edifício, existe uma larga praça de meio quilómetro a percorrer. No meio, a estátua de Qianlong, o imperador que ordenou a construção do minarete no século XVIII.Logo atrás, uma grua. Ora, estarão os chineses a tornar mais bonito este espaço de culto? Claro que sim, mas à chinesa e já fomos concluindo que restauros à chinesa são normalmente péssimos e descaracterizadores. Este não é excepção. Qualquer decoração exterior desapareceu. Qualquer sinal de uma cultura que não a chinesa nem existe e só não mandam abaixo a torre porque parece mal. No tipo de gesto que habitualmente conduz a amizades fortes com algemas, o Zé Luís dá uma palavrinha à guia e exige a retirada à grua, visto que se pagou bilhete e isso deve incluir a panorâmica fotográfica imaculada. Incrivelmente, ela concorda. Pede apenas uns minutos para informar a empresa de construção e já teremos o que desejamos. A China vergando-se a portuguesas? Que inversão estranha de papéis!


Um corredor de vinhas leva-nos ao minarete. Feito de madeira e tijolos castanhos, é simples, muito despojado. O edifício em si tem características muito orientais, o que torna as raras mesquitas do país em híbridos arquitectónicos muito estranhos. Como é normal na arquitectura, os elementos de decoração que sobram, até no interior, são abstractos e não figurativos. Quando entro, um espaço circular antecede a sala de oração. Esta é escura, cortada apenas por uma navalhada de luz vinda do tecto, numa abertura. O chão cobre-se de alcatifa, de tons verdes, vermelho escuros. Vigas de madeira suportam o tecto e cravada numa delas, um olho branco que tudo vê Alá comunista vigiando os seus filhos: uma câmara que invade um espaço religioso sem qualquer respeito por crenças ou momentos pessoais. Isso são luxos individuais numa sociedade que se pretende colectiva, todos iguais, todos no mesmo modelo, aceitando um poder superior. Só que aqui, a divindade que controla é dupla. à hora a que visito, a luz incide precisamente na câmara, como se esta fosse escolhida pelo dedo divino. Começo a pensar se daqui a uns tempos, o interior das habitações destas pessoas não será o último reduto de privacidade teórica que tem e até quando isso poderá durar. Nas divisões laterais à sala, o óculo não chega. Mas ainda assim, a sua presença é esmagadora, total. Mesmo a mais de mil quilómetros de Kashgar, o dedo vigilante da segurança continua a empurrar-nos aqui.

Não penso demasiado nisso, aliás. Fotografo e venho-me embora, até porque a fome reza no meu estômago. Enquanto caminho no regresso ao hotel, noto que há hábitos que não mudam: aceleras são conduzidas por crianças, várias vezes mais do que duas; os adultos não são melhores, visto que em tantas alturas circulam de telemóvel à frente, fazendo live feed da sua viagem. Vou entendendo que esta vigilância permanente que tanto me incomoda parece não afectar ou preocupar uma grande parte da população chinesa. Afinal, eles gostam de se observar do outro lado da lente. Mais um olho a registar não lhes faz espécie. A presença constante dos ecrãs e do desejo de partilhar aquilo que lhes é mais íntimo, ou seja, o que de mais ridículo e vulgar se pode fazer, é apenas um prolongamento da sua existência como chineses. Seja com o seu próprio aparelho, seja através da boa vontade e preocupação paternal de quem os governa. A maior vitória de um estado autoritário é a normalização do poder descabido. Achar natural aquilo que é aberrante. Em certos aspectos e com certas franjas da população, a maior vitória é a aceitação. Duas moças passam a pé ao meu lado. Trazem t-shirts pitorescas. Uma exclama "Idiot world". A outra murmura "Self service girl". Assim como assim, percebo de imediato que a era digital é amada pelos chineses e pode chegar de diferentes maneiras, diferentes feitios.