segunda-feira, maio 18, 2015

Inveja



Invejei o Tomás a minha vida inteira, e só o conheço há dois anos. Ele não é uma pessoa, mas uma aparição, pois não o conhecemos: ele surge, quase como se desse corpo aos nossos desejos e ânsias, e de súbito se tornasse indispensável apenas porque sentimos a sua falta desde o dia em que se toma a consciência de que a vida não é só acordar e dormir. Fui visitado pelo Tomás há três anos, pela primeira vez. Encontrei-o no topo do monte, a olhar para o topo de outro monte, ajoelhado e vergado. Sangue na pele, a roupa suja, estava ali há uns dias, de certeza. Quase que o mundo não era nada com ele, e mesmo assim, desde aquela primeira vez, que não consigo imaginar um planeta a rodar sem que o Tomás possa estar presente. Uns minutos depois, deu um salto e veio-me dar umas palmadinhas nas costas. "És tu", e pôs-se logo a falar de coisas quem nem percebi, de telurismo e da terra, de como as árvores são quem mais debita, e nem sequer cobram imposto. Falou-me de onde vinha, onde estava, e apenas não sabia para onde vai, porque "ninguém sabe, e quem diz o contrário anda a sonhar, e não o melhor tipo de sonho, aquele que nos puxa pelos cabelos num beijo", talvez, pensei eu, aquele que faz do monte o nosso quarto, e de cujo sono despertamos porque sim, porque apetece e nos pomos a desenrolar a nossa vida na cara de um estranho. O Tomás tinha esperado que surgisse um amigo, e depois de vários dias de desespero e pouca espera, uma voz tinha-lhe dito "Este, vai", e o Tomás estava decidido a fazer isso, porque não era de planos mas sim de repentes e vontades, usando mapas apenas para não se perder nas altitudes. Comecei a invejá-lo aí, quando pensei no quão livre era, e talvez triste, mas a boa tristeza que se melancolia em todo o corpo sem que deixe marca, apenas uma alucinação perfeita que faz adormecer sem medo. A minha tristeza carrancuda e lenta como uma corda de pedal guarda o sono numa caverna, e não me relaxa o corpo, contrai-me como um acordeon e nunca me solta. Ele deixara o peso muito para trás, e só subia montes porque por dentro, era penas, nas as que se carregam, mas as que permitem a levitação. Juro que, quando me apertou a mão, os seus pés ganharam algumas asas, asinhas, mas que carregam tudo consigo.

Desde então que invejo o Tomás. Eu vivo num mundo, ele já visitou uns sete, e não fica por aqui. Quero ir com ele, mas peso demasiado. Gostava de me sentar no topo de um monte, qualquer um, mas de preferência com o vento a servir-me de casaco, e ser apenas isso, moléculas que vibram com a passagem de outras moléculas, esquecer tudo, ser apenas eu, deixar-me de outros que invariavelmente aprendi a ser e voltar a mim, ao que sou ao que quero, ao que o Tomás me disse um dia "o olhar onde tudo faz sentido, e quando não te encontras em ti, mas sim num espaço sem palavras". Esse, onde te sentas e te transformas numa anomalia geológica: uma massa não inerte. Invejo o Tomás, mas não significa que não lhe possa gamar uma coisa ou outra.