quarta-feira, junho 28, 2017

Briefing


Há uns meses, prometi-vos que me dedicaria à escrita de um livro. Não pensem que o projecto tem sido esquecido, apenas avança mais lentamente do que desejaria. A história está delineada por completo (o que, acreditem, não é de somenos), mas colocá-la de facto na realidade tem-se revelado uma assombração. Pensei que o isolamento alentejano contribuísse para a questão, mas enganei-me. No entanto, e para provar, que as minhas intenções, como as de um cavaleiro em busca de cálices míticos, são reais e puras, deixo-vos aqui dois pequeninos parágrafos que tenho para já e que provarão duas realidades: uma é o possível tema desta empreitada; a outra é o claro equívoco de alguns de vocês quando me encorajaram a escrever um livro, convencidos de que teria talento para tal. De qualquer forma, espero que apreciem.

"Foi num livro roubado que Paulo descobriu o que era uma experiência de quase morte. Tudo o que lhe ensinaram na faculdade tentou empurrá-lo para nem acreditar que, confrontado com a finalidade da existência, algo mais se levantasse, um eu indefinido, a tal alma de que falavam os que julgam saber um pouco mais sobre a vida. Mas leu o tal livro no segundo ano académico, quando ainda prestava atenção às aulas, e na sua cabeça ficou a leitura da pesquisa feita por uma doutora canadiana. Vestindo um chamamento de algures, dedicara toda a sua carreira a estudar e a conviver com a morte, sob a forma daqueles que, no fim da linha, lhes desvelaram o novelo dos medos, das ansiedades e do desconhecimento daquilo que existe para lá epílogo da maior obra de todas. Não cabia no entendimento de Paulo que alguém passasse tanto tempo perto do agouro e da previsão certa do futuro, de escrever, minuciosamente, um retrato do que a esperava. Mas essa doutora canadiana, que explicava ter perdido um filho para o cancro e que se intrigava com espiritismo e fantasmas, embora nunca tivesse experimentado nem um nem outro, concluía o contrário: deslindar a Morte, deslindar o que está para lá do temor, era a melhor maneira de enfrentar tudo isso com calma e serenidade, de aceitar os factos e assim valorizar muito mais o ar que se respira. Na sua pesquisa, recolhera então alguns factos surpreendentes.


Morrer atrapalhava o corpo, e no momento em que morres, ambos têm um diálogo. O corpo não percebe o que se passa, e a Morte, generosa mas pouco paciente, faz-lhe perceber os factos muito depressa, o que atrapalha o corpo, que não concebe outra realidade que não seja viver. Habituou-se a ser sólido, a existir, a ser matéria e tudo o que compreende é absorvido na pele e pela experiência dos sentidos. A vida não é senão um conto sussurrado pelo mundo onde vivemos, um mundo exterior que nos estimula e agarra, cheio de sons e visões, cheiros e sensações, que nos desenham e tomam a forma bípede com que tentamos dominá-lo. A missão imediata da Morte é convencer-nos de que a realidade é a percepção de tudo. A retórica é convincente no seu tom habitual, e então a respiração diminui, o coração pára e somos pó de memória algures nas frinchas da nossa identidade. Perde-se a visão, o movimento e até a dor, sobram apenas a calma e o silêncio. No entanto, para espanto de quem espreitou para lá da cortina, ficamos nós também. Tudo parece ser mais natural, até não respirar, muito muito mais, e o mais estranho é que a vida não termina com tudo isto. Continuamos a pensar, a dizer piadas, a perceber, a pressentir, e a confusão inicial é essa: sempre nos disseram que se vive no mundo, e afinal a Morte nada mais é do que despir o corpo como se fosse um casaco. És mais tu sem o teu corpo, este é uma jaula, um caixote onde vives, e abandoná-lo dá acesso a uma liberdade que nunca pensámos. Morrer é como trocar de casa; ou melhor, é como mudar a estação de rádio que estamos a ouvir. Clica-se no botão, recebe-se o AM em vez do FM, e a nossa consciência segue, vagueando."

terça-feira, junho 20, 2017

Hubris


Diz muito de mim que uma das minhas histórias preferidas acerca do espírito humano envolva uma tragédia que matou dezenas de pessoas. A 20 de Março de 1980, o monte St. Helens, um vulcão julgado extinto no interior do estado de Washington dos EUA, anunciou ao mundo através de rugidos que os rumores da sua morte haviam sido manifestamente exagerados. Os vulcanólogos americanos não sabiam muito bem o que julgar disto, pois apenas estavam habituados aos vulcões do Hawaii, que são mais escorredores de lava. Adoptando uma política de esperar para ver, à medida que o vulcão começou a expelir magma em pequenas quantidades e o barulho aumentava, decidiu-se criar um perímetro de 13 kms em redor do vulcão, proibindo a passagem de pessoas. Mas o cidadão comum não sentia como um perigo potencial: era uma atracção turística, um divertimento e todos os fins de semana, centenas de pessoas subiam as encostas do vulcão para sentir e ver o espectáculo. Equipas de televisão chegaram de todo o lado para reportar o fenómeno, apontar os melhores pontos de observação. Helicópteros voavam por sobre a cratera esfumaçante, com reportagens divertidas. No entanto, o tempo foi passando e tanto barulho não dava em nada. As pessoas, impacientes, achavam que o vulcão não ia explodir e que desilusão seria esta. A 19 de Abril, o lado esquerdo da montanha começou a inchar. Os cientistas foram incapazes de reconhecer um sinal básico de explosão iminente, pois não estavam preparados. A História registou o final deste regabofe: um mês depois, esse mesmo lado esquerdo rebentou de tal forma que lançou monte abaixo uma tempestade de rochas e matéria a 250 kms hora, que apanhou tudo o que pôde pelo caminho. Para terem uma ideia da coisa, este material era suficiente para soterrar a ilha de Manhattan até 120 metros de profundidade. Pouco depois, o vulcão explodiu e a nuvem decorrente transformou-se numa cortina assassina que tudo varreu a uma velocidade de 1050 kms hora. Malta a 30 kms de distância foi apanhada e no meio disto tudo morreram 57 pessoas. Foi sorte, era um domingo: à semana, haveria centenas de madeireiros a trabalhar nas florestas no sopé da montanha. Noventa minutos depois, uma chuva de cinzas arejou a cidade de Yakima, a 130 kms. O dia transformou-se em noite, a cidade ficou isolada durante três dias.

Reparemos que estamos a falar de um local habitado num raio aceitável de um vulcão que exibia um comportamento perigoso. Como não foi feito nada? Não havia procedimentos de emergência ou preparação. Os cientistas falharam nas previsões, foram incapazes de reconhecer o óbvio; e por sorte, o número de mortos, perante a proporção da catástrofe, revelou-se baixo. Penso que já terão reconhecido o motivo deste relambório e não, não vou apontar dedos nem discursar sobre métodos e mudanças; nem sequer me vou armar em protector das florestas e amante do verde quando, provavelmente, nunca meti os pés numa, a sério, nem sei apreciar a beleza intrínseca de uma árvore. Há, no entanto, algo sobre o qual quero falar e a razão que me faz adorar este relato escabroso, e não é o meu humor negro. Tudo isto revela uma das nossas características mais óbvias como seres humanos e em muitos bitaites ocorreu-me muitas vezes. Os Gregos, povo com jeito para metáforas e mitos, produziram uma palavra para designá-la, de que gosto muito: hubris. Numa explicação muito simplória, significa, basicamente, a ideia do Homem de que é superior a qualquer coisa, um orgulho indestrutível que torna qualquer um invulnerável aos factores que lhe são claramente superiores. Há disso aos montes na história do St. Helens, como expliquei, e reflecte-se simplesmente na incapacidade que toda a gente teve em reconhecer não só um perigo, mas também a sua inevitabilidade. Depois da revolução científica do século XVII, o ser humano expulsou qualquer deus do seu trono e assumiu o seu lugar como descodificador do mundo. Eu percebo o planeta, declarou, consigo dominá-o e traduzi-lo simplesmente. Nada me é superior; e este "deus" não é uma entidade espiritual, mas sim a própria Terra, um ente de rocha caprichoso, com humores incontroláveis, com espirros que despertam tempestades e arrotos em escala de Richter. O Homem, como sempre, esquece-se que não é senão uma partícula pequenina no grande esquema universal, animado por inteligência, mas condenado pela fraqueza da sua carne e da sua pequenez. Por muito que insista e se debata, não pode contornar isto: está à mercê e como em tudo, é uma situação muito difícil de aceitar. Uma tragédia assim é uma experiência de humildade, de reconhecimento de que podemos ser dominados e sempre seremos, mas muito não aceitam e querem justificar e racionalizar o que está para lá da mão com que queremos guinar a Natureza.

A minha relação com a zona do Pinhal Interior é sentimental: passeei ali muitas vezes, fotografei e fui momentaneamente feliz nos seus espaços de Pedrógão Grande a Castanheira. Custa-me muito ver arder algo que é meu património mesmo que não seja eu o dono, que me constrói de alguma maneira, de ver a destruição de qualquer coisa que sempre julguei imutável e permanente. É uma das razões pelas quais estes acontecimentos me tocam. Uma segunda razão é precisamente a hubris. Em cada testemunha que fala na TV, reconhece-se o pânico e a tristeza, mas por detrás dos olhos, num local que temos de saber procurar, está ainda o nosso antepassado original. Não possuía ilusões de grandeza. Desconhecia, temia, tacteava e o seu mundo era a permissão do temor. Os relâmpagos tremiam-lhe a espinha, as chuvadas secavam-lhe a boca, os terramotos tiravam-lhe o tapete dos pés. Tudo era um risco potencial; e nos seus descendentes em 2017, depois de uma sova tremenda, injusta da aleatoriedade desta tômbola planetária onde somos bolas sem número, o antepassado espreitou. Esquecido de que as leis e os planeamentos são apenas precauções e não garantias, encontrou uma força sempre presente, raramente reconhecida, que na sua fúria deixou estrago muito maior do que cinza. O que os críticos e juízes dos tribunais digitais esquecem, na sua soberba de homens-deuses, é que a Natureza é isto: não é amor nem boas energias, nem o recreio do Homem - é em definitivo o dono da propriedade. Nós só cá estamos a atrapalhar e quando se dá o imprevisível, não há muito que se possa fazer. Reconhecer isto é o primeiro passo para encarar as catástrofes e até para nos tornarmos pessoas melhores.

É sempre difícil lidar com o luto e a dor, principalmente quando é tão arbitrário que 64 pessoas sumam, assim, sem identificação e sarcófagos de cinza à beira da estrada. É duro e qualquer um de nós, em empatia, imagina-se no soçobro da existência do limite da vida. Custa, no nosso orgulho, aceitar que aconteça, mas é o mundo, horrível, sem grande sentido no geral, com a morte em potencial em todos os elementos à espera da tempestade perfeita. Ainda assim, este mesmo mundo, em que teimamos em ser maiores do que devíamos, é o mesmo em que minúsculos primatas com cérebro avançado combatem um elemento fogoso sabendo-se inferiores e ainda assim, erguem-se como heróis; é o mundo em que as pessoas dão as mãos e delas brota comida, água e abrigo para quem precisa; é o mundo em que no regresso à destruição, a pessoa dobrada se ergue para reconstruir o que foi seu, para recuperar no máximo do seu sonho aquilo que já foi, mas no fundo sabe que não volta. Neste duelo que desde sempre o planeta trava com a nossa espécie, e com traições da nossa parte, o nosso corpo pertence ao pó e ao domínio da Terra, mas o nosso espírito é o único capaz de justificar um orgulho próprio gigante, incomensurável. é um outro tipo de hubris, mas é nesta que, ao invés de nos agigantarmos em orgulho, humildemente reconhecemos que sem os outros não somos nada; e isto não é mito: é a realidade dos nossos dias, se assim quisermos fazer parte dela, abraçá-la e, num conforto de alma, reconhecer que só somos maiores do que nós próprios.

terça-feira, junho 13, 2017

Listas pequeninas


No grande esquema das coisas, o esquema das coisas grandes passa-me um pouco ao lado. Os objectivos maiores da existência de uma pessoa, aquilo que compõe os sonhos da gente comum, fogem-me como uma maré que recua à boca do mar, devorada pelo ciclo da Terra. Como tal, a tarefa de abrir os olhos nas manhãs e convencer-me a sair da cama é hercúlea e não poucas vezes um exercício de negociação entre, pelo menos, uns quarenta sete pedaços da minha mente. O acordo é complicado, mas alcança-se e as partes que defendem, fincando os dedos dos pés na terra ocre do meu cerebelo, que nada vale a pena, que deambular pelos dias respirando e apanhando com os estímulos do mundo nada mais é do que uma antecâmara do inevitável, são convencidas por um pequeno conceito, uma artimanha digna de um Ulisses anímico, que construí para derrubar as muralhas resistentes da dúvida: a importância do subtil e do discreto, da poeira que polvilha na estrada dos nossos dias o barulho das solas crocantes, os momentos pequenos que tantas vezes passam ao lado como órfãos da nossa estima. Parece que têm asas e nem as agarramos e vamos a ver, se passarmos num crivo os nossos instantes diários, estão ali como cola que segura a encadernação de um livro maravilhoso e de preciosidade superlativa. Agarro-os. Sei-os, conheço-os e cá em baixo, empurram-me no calendário.

A brisa do fim de tarde. As estradas longas onde solto o carro nas minhas mãos, o volante como uma lente com a qual absorvo um transe mediúnico que me põe em contacto com os fantasmas do prazer da estrada. O sorriso de garotos depois de uma piada solta a correr pela sala, rodeando-lhes os pés até à cabeça. Caminhar entre os campos, o sol transformando-os na maior mina de outro a céu aberto deste lado do Guadiana. Os meus ritmos, as minhas horas, as minhas escolhas numa casa onde pairo e navego à deriva boa das vontades impulsivas. Receber um "boa tarde" de toda a gente pela qual passo. Viagens de comboio que embalam a mente revolta num berço de estática. Praias desertas, mergulhos num mar sem ninguém, secar e voltar ao mesmo. Uma fatia de gelado depois do jantar. Ver o John Oliver à segunda-feira enquanto janto, num ritual que se repete. Pôr leituras em dia estendido na cama, encaixada num pequeno quarto que é tão literário quanto as páginas. Fechar a porta e sentir a chave no bolso antes de ir para a escola. Dançar sozinho na cozinha enquanto preparo uma refeição, sem julgamentos, sem me esconder. Ouvir chamar "Professor!" no recreio da escola e ouvir a pergunta mais idiota de sempre, todos os dias uma diferente, e querer rir mas não podes, só na sala dos professores. Auscultadores nos ouvidos no meu percurso para o local de trabalho. O sol das manhãs que começam às oito e tal, tímido e ainda frio, mas tornando a violência do despertar em algo de aceitável, como um regaço no qual me instalo para ser sussurrado e amado. A observação dos hábitos de gente diferente, num contexto removido do meu, aprender a ver o outro em perspectivas que não são minhas. Podcasts em ladainhas. Buscar as toalhas penduradas no terraço, o calor lambendo-me a pele com a ponta Fahrenheit. Pés no mosaico frio em tardes de Verão. As expressões de admiração depois de revelada uma informação mesmo incrível. Sentir-me em paz na solidão, mesmo que morda algo aqui dentro, um lobisomem insatisfeito que mais parece não querer lugar algum para voltar a ser homem.

São alguns dos meus berlindes, estes. Cheios de cores, encerrados em cápsulas de vidro, brinco com eles sempre que a ocasião se faz ladrão do meu bom humor. São uma ignição cuja chave guardo com firmeza dentro de mim, atrás de certos retratos de certas pessoas em acertos constantes. Metrónomos do ímpeto, agentes secretos na espionagem do meu relógio de humor, armas de arremesso fundas em estilhaço. Mantêm-me à tona, flutuando num alentejo com o mar longe, mas um oceano permanente onde manter.me à tona é o prazer no final de cada dia, quando me deito, quando sei que o sono tarda, mas que passou mais um desafio. Ganhe ou perca, é meu e o maior prazer é esse: a posse de mim e do que sou. Para dar a mim mesmo e a quem mais deseje receber uma prenda embrulhada de surpresa.


terça-feira, junho 06, 2017

Colos e Companhia


Durante praticamente todos os anos da minha adolescência, e alguns da pós, tive um sonho bastante recorrente. Deitado num chão branco de mármore, frio e passado por repulsa, abria os olhos sem entender muito bem onde me encontrava. Erguendo-me, rodeiam-me paredes pálidas de dó, erguidas à força do arrepio e sustentadas por um certo pavor que se encontra nas morgues. Dentro de mim, o sentimento é de que a morte não anda longe, puxa-me pelas narinas, lambe-me o pavilhão auditivo numa aspereza rouca. Vagueio, perdido e num vago instinto, para, sem entender bem como nem por que corredores e distâncias, dar pela minha pessoa numa imensa sala vazia, povoada em demografia única por um objecto lá ao fundo, no meio, equidistante dos quatro cantos. Aproximo-me, é um caixão castanho, muito simples, sem tecidos, só com a madeira como decoração. Olho para dentro e contemplo, assombrado, a minha própria imagem. Morri, mas vivo em desconhecimento de mim mesmo. veste-me um fato azul veludo, uma camisa branca. Não tenho marcas na cara nem expressões de terror: estou ali, mas o facto é que já deixei de estar de todo. A prova é que me observo, do exterior, e existo em simultâneo quando não existo. No sonho, demoro alguns segundos a percebê-lo e o dobro do tempo a aceitar e o triplo a sentir-me confortável, talvez um pouco mais. Mas cedo cai em mim uma perturbação lancinante que corta, constato que a sala está vazia por completo. É o meu funeral, deduzo, e ninguém veio. Ou será apenas no dia seguinte? Terei aparecido cedo demais? As portas estarão abertas para os convidados? Pressinto que tudo isto é inerte, que eu deixei de ser e ninguém apareceu. Só o meu fantasma desencarnado e embarco numa viagem mental buscando por justificações de desprezo e não encontro e pouco tempo depois acordo e sinto-me na pessoa mais só do mundo e só não choro porque nem tenho presença de espírito para invocar lágrimas.

Desde então, a solidão é o meu maior medo. E reparem que não é estar sozinho, erro comum cometido por muita gente, o de julgar que ambos os conceitos são iguais. A maior parte das pessoas tem, de facto, medo de estar sozinha, de fazer coisas a solo, de viver um mundo interno e experiências pessoais. O júbilo faz-me cócegas sempre que me lembro da expressão que algumas pessoas fazem quando lhes digo que quase sempre vou ao cinema na companhia de mim mesmo. Há ali um misto de surpresa, admiração e terror onde este último domina e uma incompreensão quase total acerca do que pode levar alguém a experimentar tal aventura épica. Sempre fiz muitas coisas sozinho: passear, caminhar, ver espectáculos, viajar, até mesmo existir. Se bem que nalgumas fases tenha sentido que tal se devia a uma extrema repelência da minha parte, com algum trabalho e encaixe fui percebendo que faz parte da minha natureza. Uma das minhas grandes lutas foi tentar conciliar a minha natureza solitária com uma outra necessidade, que existe em todos nós, de conviver. A solidão está ,aqui, o medo de que por mais gente que conheça e com quem conviva, todos vão, inevitavelmente abandonar-me. Não é tão idiota assim e tenho exemplos práticos, que não vou desenvolver. Talvez a grande parte da culpa seja minha, estou há anos para entender se sou boa pessoa ou não e acho que mudo de opinião umas dez vezes ao ano. Quero ser útil para os outros, estar lá, quero que se preocupem comigo e me recordem, quero que me deixem preocupar-se com as pessoas. Acima de tudo, quero partilhar o meu mundo e partilhar do mundo dos outros e tantas vezes me apercebo que estou tão mal equipado para ser social.

A solidão aqui em Colos leva-me a pensar ainda mais vezes nisso e factores da minha vida recente pesam ainda mais nesse pequenino mal-estar dramático, problema de primeiro mundo destacado. neste fim de semana, recebi visitas de amigos. Cada um está na minha vida há relativamente pouco tempo, não os conheço há mais de dois anos e meio. Com tempo, e num projecto pessoal, fui-lhes dando espaço, talvez provando que posso ter amigos e conquistar pessoas que não me conhecem desde a infância. Sei que esta ideia poderá parecer tola a muitas pessoas, principalmente quem me conheceu nos últimos cinco anos e ainda cá anda, e não sou nenhuma ilha, tenho quem se interesse por mim, quem ocasionalmente pergunte como estou e queira combinar coisas, mas parece haver em mim um tremendo medo, de abismo, que um dia o meu funeral não tenha alguém. Mas eles tinham dito que vinham, e vieram. Foi um fim de semana divertido e animado, passeámos e mostrei-lhes um pouco do meu quotidiano da casa, da escola, passeámos pelas praias da Costa Vicentina, visitámos monumentos e locais abandonados, rimos e mandámos piadas, entendemos as peculiaridades uns dos outros com portais e piadas idiotas à mistura, inseguranças e cansaço de viagens de carro, com a paciência para perceber ritmos e gostos diferentes, com a noção de que a amizade é o único local onde a teoria da relatividade não pode funcionar, pois o tempo nem existe, nem passa e pode-se dobrar e pontapear à vontade de quem aceita; e foi bom e gosto destas pessoas e sei que têm apreço por mim, não sou um idiota que considera que um trio com vida e ocupação viaja 350 km só num projecto de piedade, é algo que se faz por afecto, mas naquele local maligno na parte de trás da minha cabeça, há sempre algo que me devora em dentadas vorazes, uma boca de um inferno, onde tremo e vivo numa insegurança tremenda. Vai sempre existir, acho, vou aprendendo a lidar com ela sem danos colaterais e amigos como estes, por quem tenho mais do que respeito, uma amizade sincera e nalguns casos uma admiração que não nego, que me mantêm à tona.

Em dois dias fui um bocadinho mais eu, muito por causa de outros. Não sou o que o alheio faz de mim, sou o que sou, o que me constrói, mas partes de mim só revivem quando outros lhes tocam. Aprendo a ser humano, mais e mais, vendo e sentido quem me está exterior. Podemos viver connosco, mas há sempre um apelo qualquer, uma reacção química que nos torna moléculas que se querem agregar a outras. Neste fim de semana, a minha casa foi um laboratório e a reacção em cadeia atómica, ao ponto de me dar energia para algumas semanas. No fundo, nós, pessoas, somos um bocado isso: energia; e no mármore branco do funeral do meu sonho, são elas quem enche o espaço de flores e faz a festa enquanto o meu fantasma percebe que não morreu de todo: apenas se tornou matéria viva nos outros.