terça-feira, setembro 30, 2014

Setembro



O meu pai faria hoje 58 anos. Melhor, faz hoje. Coloco o meu pai no passado, mas apesar da marcha irrevogável do tempo, está em meu poder deixá-lo no presente. Muitas vezes esquecemos que não controlamos tudo, mas a nossa percepção é isso mesmo, nossa. Viver o ontem ainda hoje é uma escolha, e se bem que a prisão do passado é perpétua, não tem que se sempre má. Por isso, somo pequenos actos de rebelião. Quando visito o meu pai, falo com ele como se o encontrasse em casa, ou seja nada. Mas imagino-o a olhar de quando me vez, como se me visse saído de Marte, e a voltar a atenção novamente para algures que o confortasse mais com a realidade; e hoje mesmo, levei um pequeno bolo, com uma vela, e cantei-lhe os parabéns como se ainda estivesse ali para ouvi-los e começar a bater palmas desalmadamente a gozar, cantando fora de tom e de ritmo, só para desvalorizar uma data à qual, claramente, atribuo mais importância do que ele lha daria.

Eu sabia que Setembro seria o mês de todos os portentos. Para além de um aniversário eterno, os meus pais fazem anos de casados; o meu avô Carlos fez anos no primeiro dia do mês, e ainda em Agosto, mas celebrado invariavelmente no mês seguinte, a minha avô Lurdes também celebraria um aniversário. Começo a ter demasiada gente importante a concentrar-se em tão pouco tempo. Quem se ri é o Natal, que passa a ser, por comparação, muito menos deprimente. Quem vão não volta, mas o problema maior é que nunca sai, e não conseguimos esquecer quando queremos. São sombras, por vezes fugazes, e quanto mais o tempo passa, mais desaparecem os contornos e bem podemos estar certos da sua realidade enquanto gente, mas a dúvida é se aquilo que fica é o que era, ou simplesmente o que acreditamos e fixámos com tudo o que dizem e contam e como queremos recordar. Quando o tempo se dilui, sobra a nossa versão do que é real, e uma ponta de insegurança invade sempre as nossas histórias e memórias. Eu creio que estou certo, que o Vítor, o Carlos e a Lurdes são quem eu me lembrava, e que todas as histórias aconteceram como as escrevo e conto, e que quem parte é uma certeza, e não um fantasma, que por muito que ainda lembre o meu pai, que ainda nem sequer soube morrer, os meus avós também lá estão onde quero guardá-los, quando me tento localizar a mim mesmo, nesta procura da minha individualidade, da qual eles fazem parte, desde as molas ao cimo da escada às sestas na sala e ao colo da Lurdes. Isso também faz parte.

A melancolia vai preencher o vazio do meu pai durante algum tempo. O universo tem um horror ao vazio, e sendo o nosso coração um cosmos, é natural que o abomine também. Já não choro, embora esteja tentado em ocasiões, não só quando Setembro acaba, mas bem para lá disso. Naquele rectângulo, cabem flores e pedras; mas também caibo eu, acima de tudo. Não é só a melancolia que preenche o vazio, são as pessoas também; e não tendo eu, mesmo com a altura, espaço para tapar o contorno do meu pai, consigo ao menos que uma campa não seja só frio e tristeza: é também espaço para cantar os parabéns a quem não pode sobrar as velas, mas incendeia o meu interior.

segunda-feira, setembro 29, 2014

A deriva do universo



Quando uma pessoa decide voltar a ser duas, o mais difícil não é deixar o outro: é voltar a estar connosco. Nem se consegue ficar sozinho, porque parece que não está ninguém onde ficámos; procuramos sempre regressar a outrem quando, de facto, nem sequer existimos. Há um corpo, há uma ideia qualquer de nós, mas não acontecemos. Recuperar isso é a parte mais difícil de partir.Queremos ser adjectivos, mas eles são grandiloquentes e não nos servem de nada, porque as palavras só amam quando do outro lado as abraçam. Palavras que encontram ausência são vazias e não desejadas. Por isso, surge a necessidade de sentar, chorar e durante uns bons tempos, exprimir tudo o que queremos, tudo o que sentimos através de verbos. Na inacção, a acção é uma boa maneira de mostrar que algo mexe, e não estamos bem mortos; e se de facto não estamos mortos, existimos, e podemos partir à nossa procura.

Sinto-me assim. Não sei bem que sou, nem sequer em que ponto estou. Gostava de poder deixar palavras bonitas sobre reconstrução, sobre progresso, mas quanto mais escrevo e quanto mais sinto, mais encontro o meu coração em todos os lugares menos o esquerdo do peito, e a maior prova de demência é usar precisamente o coração como símbolo de tudo o que me levaram, quando devia estar a colocar-me nisso. Não me levaram tudo, mas o que me deixaram foi a incerteza de estar completo.Há dias que se passam melhores do que outros, e se não sentimos que arrancaram algo à mãozada, é porque não demos sequer o que devíamos. É o meu único consolo: queria provar que era capaz de amar alguém, e consegui fazê-lo. O problema é que só eu é que reparei: do outro lado, silêncio, e partida; e fiquei eu, com tudo metido numa mochila e com guia de marcha depois ser atingido por um míssil teleguiado e os estilhaços sumirem na sua pequenez anã de lágrima vazia. Recolhê-los demora tempo, porque muitos não estão mais. Amar outra pessoa é basicamente uma desconstrução, e cada lego desmontado é uma certeza que não se voltará a colocar na ordem certa. Volta-se de uma relação com outra estrutura, e muito diferente de quando entrámos. Isto se alguma vez voltarmos de todo. Muitos permanecem numa nuvem qualquer, porque querem ficar o mais parto do céu que conhecem. Quem aí mora não sabe que se atravessar a nuvem encontra as estrelas, e nessa espera, torna-se num buraco negro que acaba até por sugar o céu estrelado, fazendo-o desaparecer.

Nesta nave espacial que é o blog, sinto-me em órbita de mim mesmo. Cada frase é uma tentativa de me alcançar e descobrir. Cada ponto final encerra uma ideia que abre três, e sinto como se estivesse a fazer a minha própria psicanálise através dos olhos de alguém doente. O diagnóstico ainda não é definitivo e só é reservado a mim mesmo. O que me mói, o que me farinha é qualquer coisa que ela me tirou, e também qualquer coisa que ela me deixou. Não estar, ainda assim ocupa um espaço que ressoa nos cantos côncavos da circunferência universal. Ela como uma gigante vermelha, eu como uma anã branca. Do Big Bang, sobrou a nossa poeira, reorganizando-se numa supernova. Duas supernovas, ainda nebulosas. Sentado aqui, da torra de vigia universal, ainda não consigo ver o que cria a minha. Continuarei sentado, e o meu público, vocês, em gravitação permanente. Ela virou meteoro, em rota de colisão com o planeta de "nem quero saber".


quinta-feira, setembro 25, 2014

Danos colaterais



No princípio do verbo surge a mágoa. A meio, os predicados da saudade; e entre o meio e o fim, a fúria substantiva de quem procura frases para não se ofender por ter amado outrem. A boa intenção é um inferno quando está cheia de pequeninas arestas de pequenas raivas cuja cabeça espreita sem nunca ser vista. Um dia, nasce e não pode ser ignorada. Tudo o que antes foi paraíso e sétimo céu é agora o quinto dos infernos. Onde a certa altura os dedos cravaram beijos nas palavras, hoje pregam estalos em pontos de exclamação! As interrogações não são sussurradas, mas lá dentro, numa caverna, ecoam em brados e urros, e não têm uma forma eloquente ou sequer humana. São sinceridades, tão verdadeiras como o amor que se teve, e que até se tem, mas que por demasiado tempo foi um gorro das cabeças das arestas. Chega o calor da refrega, e o gorro não é necessário: fica apenas o frio da acusação e tudo o que não quis dizer, nem mesmo a mim mesmo, e sai vaporoso num ou noutro assomo de lucidez.

Não quero dizer o que me deixa zangado. Sabe-lo. Preciso apenas da zanga para ruminar a tua pele e não senti-la várias vezes ao dia, sem que exista. Quando te vejo na rua, agora, irrito-me. Não estás lá e estás ao mesmo tempo, e irrito-me a dobrar porque nem sei se te quero real ou virtual. Na maior parte dos dias, não te quero mesmo, ou querendo-te longe, até te quero mais. Mas já é só querer, e o que desejo mesmo é querer-me mais do que te quero. Consigo-o até. Falei em prédios, em rios e em árvores, mas tudo isso sou eu. Saber-me importante, saber-me já de pé vale mais do que conhecer onde te deitas ou moras, e o que fazes, e se me preocupo contigo é porque levaste comigo partes importantes que parecem não ter reparação, mas o tempo é mecânico que cobra demasiado, mas nunca falha. As peças em falta serão substituídas, e é com isto que não me consigo zangar. A grande tempestade a que agora me entrego tem o seu sabor, não tão doce quanto sentir saudades do caramelo que te esconde da espuma dos dias e que saboreava de cada vez que beijava a tua pele, mas o gosto da liberdade de finalmente me conseguir entregar ao assomo de peito que ruge quando te vejo a ir embora sem regresso. Deixo de chorar e formo um alambique de fúria, que se tornará num outro tipo de aguardente.

Por isso, cerro um punho. A mão que um dia te foi cama e sofá, e chegou a ser mesmo almofada. Olho para os dedos meio vermelhos, em fruta, e deles brota um sumo que me consome e é combustível para trezentas mil imprecações sob a forma de olhares. Os meus olhos, que um dia te fizeram festinhas, agora gostavam de te pôr a vista em cima para saltarem das órbitas. Sabem o que viram, e o quanto precisavam de te ter visto quando lhes negaste isso. Pedir desculpa e saberes que te compreendo são areia na tua mão. Pensei que sabia o que sentia, mas descubro que apenas estou a começar a chegar aos termos finais do meu ecossistema sentimental. Armo-me e parto à caça, mas não é de ti: é de mim em vias de extinção. Já não o vejo há quase três meses, mas ele voltará. Não peço desculpa por seres o isco: é apenas justiça poética.

Num verso escrito a ácido, e com aquilo que é verdadeiramente o amor: um bocadinho de ironia, um bocadinho de sarcasmo, e o resto é descobrir o que se é para se encontrar quem se gosta.

segunda-feira, setembro 22, 2014

Nem aí, nem aqui


A realidade adiantou-se-me, porque me atrasei na tua cara. A humidade desceu sobre a terra, e o peso da noite deixava os humores alheios exaltados. Mas à volta daquela mesa, mesmo enquanto as tuas palavras criavam a distância entre tudo o resto e o nosso espaço, a tua cara atrasava-me o olhar. Tentei desviar, dando aos meus olhos a tarefa de se entreterem com qualquer outra coisa, fosse procurando cores em paredes alheias, ou mesmo dando-lhes dentes para que devorassem a lubricidade que se sentava numa ou noutra cadeira, confundindo a noite com qualquer outra coisa indefinida, mas fútil. Mas o único quadro tinha como moldura a linha de circular, sem princípio e fim, e com tudo o que há de mais importante no meio: dois olhos sendo árvores, o nariz um socalco que recebia a luz de uma lua que nem as nuvens conseguiam afastar da tua pele, e na tua boca eu imaginava uma língua em forma de barco, que me conduziria ao estuário onde desaguam os teus lábios.

Pensando na tua boca, parei. O desconforto afastou os meus olhos com os seus dedos, porque de súbito fui tomado pela imagem da minha boca na tua, e de como a tua cara seria tapada pela minha, e a crespidão estragaria precisamente esse quadro que vira. A minha presença em ti, mesmo que só de poucos centímetros acima da epiderme, soava a implacável blasfémia; e esse templo de esoterismo mágico, de segredos cabalísticos em doses cavalares, pareceu-me de súbito passível de ser conspurcado pelo que sou. Pelo minha imperfeição, pelo que sou agora, naquilo que me tornei, no desarranjo que me leva a olhar para a tua face como se olha para uma montanha que o sol acabou de beijar, depois de ter dançado com a lua um tango de amor repetível. Sem que me repelisses, eu próprio fechei-me, e recuei. Os meus olhos pregaram-se na madeira da cadeira; mas a tua cara continuava fixa, os teus olhos deixando-me em parafuso, a tua energia em curto-circuito na minha inabalável vontade. Entre o que olho e o que desejo, está o que posso; e é um facto que posso pouco contra a tua presença.

Levantar-me era pecar contra mim; avançar era pecar contra ti; rogar por ti não se faz a ninguém; resta-me esta confissão, de quem quer e não faz. O meu acto de contrição é olhar para a curvatura do teu rosto, marcando as pequeninas rugas que o teu cabelo, como uma cortina, desvela e deixar-me viver na pequenina dor do desejo que não se cumpre, da vontade sobre a qual não se age, e naquele arrependimento que os dias tornam num bloco de granito inamovível, que já rolou monte abaixo e não se pode tirar jamais porque está lá e não se pode viajar no tempo para deslocar. Na noite que avança, a tua cara é tudo isto, mas é também a esperança de que se consigo concentrar-me no que dizes e no que mostras, é tempo em que não penso em quem já não está. Concentro-me no que existe de facto, e não no que podia ser. Tento convencer-me de que pensas o mesmo. Aliás, passo o resto da noite nessa ingrata tarefa, e invento fábulas que permitam às pontas dos meus dedos encontrar um final feliz no começo do teu toque. Acontecem, de quando em vez. São pequeninos contos, mas todas as grandes histórias começam com uma frase.

A tua cara já foi um ponto final. Agora, é interrogação que me exclama uma pergunta: se der um passo, tropeço? Se der dois, corro? Ou fracturo na mesma se ficar parado, a olhar, em vez de reinventar o meu ciclo vicioso cara a cara com a nascente das coisas secretas?

sexta-feira, setembro 19, 2014

30 frases



A hora em que não penso em ti é aquela que ainda não começou. Contigo, só desperdicei o tempo que não gastei. Colhi as flores da tua pele num campo da minha visão. Votámos sim nas urnas da nossas bocas, de livre vontade e com o poder da decisão que aquele espaço invisível, mas cósmico, entre dois olhares confere a quem se ama. Línguas de fogo em bocas de incêndio não conseguem ter rescaldo final. Fiquei por ti pela ponta dos cabelos, na ponta dos dedos, no fundo das costas. Não penso em ti, logo não existo. Não te dou palavras, logo sou analfabeto. Não vou atrás de ti, logo não tenho sentido de orientação. Ponho-te num pedestal, quando és uma deusa caída. Procuro em ti um tesouro, no teu mapa enganador, onde o "X" está em todo lado. Não te amar parece fútil, mas viver sem ti dá-me uma riqueza que não pensava. Eras a moeda corrente que pagava as minhas contas algures no cofre em forma de coração. Viajámos sem nos movermos, mas também estivemos parados num movimento perpétuo que afinal tinha um prazo. Soube sempre onde estavas, até que me perdeste. Paciência de Job num suplício de Tântalo. Eras um labirinto, e perdia-me nas tuas curvas. Guardavas os meus segredos, mas também me revelavas tudo. Eras esquerda e direita, e não sei como acabávamos sempre por seguir em frente. Deitavas-te sobre mim, como um túmulo que anuncia ressurreição. Eu deitava-me sobre ti, e era um cobertor que anuncia lençóis desfeitos. Deitávamos-nos lado a lado e tombava o dominó. Talvez sejas agora uma miragem no meu horizonte da memória.Talvez esteja a ver demasiada magia no teu espectáculo de ilusão. Talvez tenha adormecido quando me piquei na roca do teu adeus. Ou então, gosto de viver uma fábula de efabulação, em que era uma vez eu e tu, a fazer de conta que não somos eu e tu, e podemos agora ser outros para nos voltarmos a conhecer e fazer tudo de novo. A moldura dos nossos braços mostra agora uma natureza morta. Mas o Inverno está apenas a fazer o turno enquanto não chega a Primavera. As quatros estações em seis meses, o sol todo num beijo, e neve quando não voltaste. Tudo na vida é um ciclo, e quase sempre preparatório.


terça-feira, setembro 16, 2014

Glaciar



A neve não fala, mas existem lá palavras. Não me interessa procurá-las, porque saí de casa descalço. As botas estão arrumadas na prateleira da entrada, e de lá não voaram porque voei eu porta fora, oprimido e pressionado, saí a correr e a arfar, inspirando o ar que é uma navalha, berrando-me que se pode, mas enquanto as pernas se colocarem uma à frente da outra, pode-se até sentirmos a mão com que o corpo se agarra pelo ombro e nos verga à força do limite. O corpo desliga-se e cai na neve, e fico, noite cerrada, a ver as luzes lá ao longe e a não ver o que mais me rodeia. É a escuridão; e é a noite também.

Lembro-me de estar estendido e de a cama ser o mal menor. Lembro-me de os lençóis serem pedra, e de me pesarem. Lembro-me da carta que me escreveste, e talvez a metamorfose tenha começado aí. Não era suposto. De facto, nem a carta era suposta, e a hora em que decidi vasculhar o bolsos do casaco estava adiantada em relação a mim mesmo e ao que consigo aguentar de ti. Consigo, mesmo com o frio a congelar-me os lábios, retroceder todos os passos, desde que me deixaste o casaco à porta de casa, numa caixa de cartão, até ao dia em que me "esqueci" dele em tua casa, e esperei que o trouxesses, mas passaram dois anos e não te lembraste se calhar. Ou se calhar, esqueceste-te das recordações, tudo propositadamente, e quando se esquece de propósito, é sem querer que nós tenhamos um. Não sei por que motivo o casaco ganhou o efeito boomerang. Na carta, não vinha nada disso. Só palavras e obscuridades, mais breu do que a noite que começa a cobrir-me; e para além da carta, o casaco trouxe uma pequenina dose de navalhas, em todo o tecido. Mal o agarrei, uma delas começou a rasgar-me o que tenho cá dentro e não é feito de músculos. Sangrou, mas ninguém viu. 

Olho para trás de mim, e a casa está a uns trezentos metros. O frio congela-me, mas se calhar renasci frio quando te foste embora, e aguento bem. A tarefa olímpica de me levantar corre bem. Os meus pés ainda respondem, e à vez, tentam levar-me para a casa. O vento pára, de repente. É como se a montanha percebesse que tudo tem limites, mesmo a dor, e que nos compreendemos. Certamente que, quando a neve se deita sobre ela, a montanha deve desejar que esta desapareça, e a deixe nua para que se enamore do sol e da lua, numa promiscuidade milenar que não posso conceber, mas aceito, porque os meus pés fazem agora parte dela. Cada pegada minha é calor que deixo na montanha; e cada metro de terra, na superação da adversidade, é quente em mim, na vontade de não sentir o teu peso de nenhuma maneira, e de nem pensar porque é que um caixote com um casaco pode virar a vida de um homem ao contrário como se fosse um terramoto, ou uma manápula gordurosa e viril que prende os tornozelos e me agita. Por sorte, desta vez caí sobre neve.

Os últimos metros são vertigem. A porta luminosa esbate e por momentos penso não conseguir. Uma vez transposta a ombreira, podia desmaiar. Não o faço, ainda assim. Já te dei alegrias demais nada vida e porque a escolha é minha, a minha mão pega no cutelo com dois braços e a tua forma, e lança-o à tempestade. Quando cai, a terra treme. Ou então, são só os meus pés, aliviados, ou mesmo com saudades, ou então são as duas coisas, e enquanto te quero beijar, também quero abraçar uma montanha sem ti, numa casa só minha. Ambas se misturam, mesmo quando não podiam estar mais separadas. Junto-me ao que resta de mim, de outras bulhas e pulhas, e fecho a porta.

Lá fora, o casaco cobre-se de neve e a montanha, no seu processo lento de deglutição das dores de parto do mundo, dá paz à tua alma. Mas como sempre, o que a montanha leva acaba sempre por devolver. Quando fecho a porta, não tenho a certeza de que abra a minha para sair. Talvez. Não sei. No entretanto, enrolo-me num cobertor e o sofá vai-me contar uma história. Era uma vez eu e tu. Viveram, e felizes. Foi para sempre, porque nada acaba realmente: apenas se troca.

sábado, setembro 13, 2014

D



A minha mão sempre foi mais leve na tua. Mesmo quando tudo o mais pesava, e agarraste-ma no que de mais pesado nos pode cair em cima, os dedos eram penas, numa palma de algodão e tudo o resto era ar. A tua pele sempre transformou a minha carne em vôo, em algo até mais leve do que o céu. Pelo menos, era assim que me enganava. Há qualquer coisa de mentira e de ilusão no amor, e é por isso que é mágico. Quando se ama, concede-se o engano e volta-se ao tempo em que a nossa criança acredita em histórias que não fazem sentido. A ideia de que duas pessoas se possam entregar uma à outra é tola no absoluto, mas é o desafio do impossível que nos precipita na leveza de duas mãos que se agarram. A tua agarrada à minha era isto: um faz de conta muito sério, para mim e para ti, tão real quanto a densidade das nossas bocas juntas, acrescentando linhas a esta história. Na mão, a linha da vida; na boca, o desalinho da pequena morte. A memória dos teus lábios nos meus é um estado de graça, apesar de tudo. Desconheço para onde vai o amor quando some, mas comigo nunca chega bem a desaparecer. Desconfio que se reúne num pequenino ventrículo que bombeia o sangue mais depressa quando me cruzo com uma imagem tua. Empurra com as suas mãos, agora pesadas e fortes, essa vida pelo meu corpo que se torna pequeno demais para ti, e para o espaço que nele ainda ocupas. Nunca se tem realmente alguém, mas é-se morada desse alguém, e ainda não foste embora, mesmo que já não estejas. A tua leveza está nessa capacidade de seres com toda a força aquilo que não podes.

Nunca te cheguei a descrever, porque para mim nunca foste: eras o efeito. Ainda és. Algures na tua cara reside um ponto que trata de mim como se fosse precioso, e esse ponto é meu. Não sei se o vês, se alguma vez o viste.Tratava de mim e lembrava-me de como pode existir algo fora das tripas do mundo. O amor sente-se, aliás, mais nas tripas do que no coração. Naquele novelo de fio desfiado que me percorria o peito em longitude de cada vez que sorrias. Sinto mais saudades do que em ti é grande, e para os outros pequeno. Da tua maneira de fazer birrinha, das pontas dos teus dedos a fazer cordéis dos meus pêlos, de um sorriso que era uma cama e da cama onde acordava outro sorriso. Sinto saudades das tuas sardas ao sol, e daquele único cabelo branco do lado esquerdo, e não vou negar de cada vez que caías comigo eu não conseguia acreditar que alguém aceitava a minha dor como uma honra ou uma benesse, como algo que é mais importante do que a sua própria habilidade de dar ao mundo um sentido através da felicidade. É do pequeno que sinto mais saudade, não de tudo o resto. O pequeno és tu, toda cheia de mínimos legos de personalidade, colados e indesmontáveis. Como a própria ausência do amor, uma força imparável. Um glaciar com lava dentro. Tu, afinal.

Não sei mesmo como é que as palavras te podem alinhavar. Nem sequer se te incendeiam no fogo eterno que transformaste em forma humana. As letras são apenas sons que se fazem, e quando se colocam numa página em branco, servem apenas de batuque, num código morse entre pessoas que não te conhecem nem te viram, e ainda assim se vêem forçadas a apertar a mão à força da impressão que me deixaste. Não é justo para eles, mas é aquilo com que menos importo. Porque não há justiça, e nós sabemos. Porque estas coisas acabam quando acabam, e quando não existe nada mais a pará-las a não ser um lapso de tempo que as trava. Ambos vamos ao chão e quando levantados, no chão estamos pois de um céu descemos. Regressar é a pior parte do fim. Ninguém nos pode tirar o caminho que se faz, mas a viagem é onde se quer estar, e voltar nunca faz parte do plano. Não posso dizer que te deixei, ou que me deixaste. Apenas que voltei, e que embora tenhas partido, sei que voltaste, de qualquer forma; não sei se onde querias estar, mas pelo menos onde precisas de reiniciar o caminho. Custar-nos-á caminhar por outra estrada que não a do nosso sol e não sei quando estarei sequer preparado para te deixar na tua. Saber e fazer são verbos muito diferentes de aceitar. Mas lá chegarei, pernas ao caminho e depois das lágrimas, fica o suor.

No entanto, o pedacinho do ventrículo continua a ser teu, tal como um espaço num pequeno canto da minha cama onde não me coloco. É o teu espaço, onde a persistência da memória esquece tudo o mais, e estou contigo porque me deixas e me queres. Na hora do lobo, podemos ser as lobas um do outro, numa alcateia de beijos a uivar dentro de mim e de ti.

quinta-feira, setembro 11, 2014

O valor



Existe uma lista na minha cabeça quando os dias são rastilho. Recolhe tudo aquilo que me impede de me fechar à vida. Com tanto balanço negativo que aqui aparece, a pergunta deve surgir várias vezes sobre o que ainda me mantém de pé, passando na linha dos dias como quem faz equilibrismo. Em primeiro, um cinturão negro em sarcasmo. Isso é óbvio. Em segundo, tudo que em baixo se amontoa num tesouro íntimo.

O olhar de orgulho da minha mãe quando chega a casa nas últimas semanas e encontra um filho com emprego. As natas de Condeixa. A luz que só se encontra quando, num quarto sonolento, se resolvem as pontas soltas de uma história dentro da cabeça. Seguir pela recta da Portela, a 80 à hora, num pequeno sorriso doloroso aberto pela "Wicked game". Sentir o coração debaixo do palato quando ainda penso nela. O meu reino no cimo de uma montanha, com Einaudi como meu escudeiro. Os farrapos de delícia em forma de tempo que antecedem o fósforo que acende dois lábios confessando sem palavras a vontade de se quererem. A vista do meu sótão. O sofá depois do trabalho. Os headphones na cabeça e o mundo desaparece. A mão que dou e puxa alguém de um poço, e esse alguém sorri com um obrigado e a existência ganha então razão. O próximo filme de David Fincher, seja ele qual for. Puré de batata feito em casa. As pevides compradas na praia. Sentir-me baptizado pela delícia de cada vez que mergulho mar. Sentir o efeito das minhas palavra no outro. Não acreditar que essas mesmas palavras ajudam quem seja, mas abraçar-me a mim mesmo no conforto de um agradecimento alheio de como a minha dor não me desarma em vão, Conseguir pôr a dor a trabalhar para mim. Escrever histórias que não podem ficar na minha cabeça. O céu limpo no cimo do Cântaro Magro. As minhas pernas a tremer no Pico Ruivo. Regressar onde me querem. Desorientar-me no livro onde me encontrei com o susto de mim. A possessão demoníaca do movimento Alegretto da 7ª de Beethoven. "Os Maias" uma vez por ano". JFK duas vezes por ano. Transmitir conhecimento, e reconhecer aqui que estavas certa. Os Penedos de Góis. Mostrar-me do outro lado da lente, aprisionando o mundo na liberdade do meu olhar. Aquelas pessoas mais rápidas do que a realidade, mais fascinantes do que o complexo e mais entusiasmantes do que o desejo. A Casa da Música a 23 de Março de 2013. Todas as vezes que pude aplaudir três indivíduos de Oakland que criaram uma casa de árvore dentro da floresta que é a minha racionalidade. A memória das molas na escada da minha avó Lurdes, e dela própria como uma cadeira onde me podia sentar com a certeza de que ser amado fazia parte da vida de criança. Quando outra ela me convidou para fazer pão. Beijar quem se ama. A volta ao corpo em 80 gemidos. Conversas em modo screwball. O prazer da inteligência e de alguém com quem se pode realmente aprender. Arroz doce quente. O entusiasmo de outros por coisas que valem a pena. Eu na cama e a chuva em código morse na janela, deixando mensagens na minha imaginação. Fruta fresca. O pedestal da boa televisão. Quando o encontro entre duas pessoas faz um sentido que não proibido. Ser eu.

A lista continua. Múltiplas razões, variados destinos, uma pequena caixa de madeira forrada a infinito Quando em modo infra, abrir. O que se vive parece ter imediata justificação entre tudo o que a pele guarda, regista e confere. O vale dos hemisférios é o único local onde me sento de olhos fechados e consigo ainda assim ver o universo. O cosmos numa lista que não se pode agarrar.

sexta-feira, setembro 05, 2014

Um casaco para todas as estações



Não me consigo lembrar de quando me tornei morada da tristeza. Olho para as minhas fotos em criança e pareço feliz. A minha infância foi um evento de felicidade: interessa menos ter sido amado por quem me regou, mas mais ter sentido o desejo por existir. Uma fotografia no meu quarto, com os meus avós maternos, capta o meu olhar na máquina, enquanto, sem braços, o Carlos e a Lurdes me envolvem de uma qualquer maneira que não se explica bem em palavras num blog. A imagem capta-a, e esse enlevo descreve como a minha infância não foi um berço de melancolia inesperada. Não fui uma criança triste. Batalhas de laranjas com os meus tios, o prazer de devorar livros, estar no mundo aberto e fechado do meu quarto, partilhar uma amizade com um urso de peluche, guardar amigos, sentir-me contente com o que tenho, possuir curiosidade pelo mundo...

Não sei mesmo quando a tristeza começou a pagar renda, mas não nasceu comigo. Algures, pelo caminho, escancarei-lhe a porta. Nunca tive, até há pouco tempo, qualquer problema sério. Desconheço a origem, e isso perturba-me. Preocupa-me mesmo que algo tão destruidor se tenha instalado e me ocupe, em avanço cancerígeno, num desejo que mal posso controlar. Não chega a ser depressão, e aleija demasiado para lhe chamar apenas incómodo. Mal está. O desalento poucas vezes se consegue traduzir em palavras válidas. Tudo parece cliché, desde o poço negro até à maré escura, também porque ser macambúzio já se tornou num estado quase banal. A minha tristeza apenas é banal por não ser especial. Por ser normal para mim, já deixou de ser um estado, e muitas vezes é a vida que levo. Sobrevive-se criando outro em nós, que vive a vida por nossa vez, mas o eu com que temos de conviver à noite, antes de dormir, continua na sua pequenina masmorra, por si construída.

Lembro-me de uma noite, há um tempo, quando chorei no peito dela. A única razão pela qual recordo, e porque aqui o menciono, é o carácter único desse momento: transparente e puro, belo e destruidor. Vi-me como era. Vi como a tristeza faz parte de mim, e nos minutos em que a amei com lágrimas, entendi só em lampejos o que me deixa triste: não saber o que sou eu, não caber na pele que me concederam, nem sequer perceber bem àquilo a que pertenço. Dois braços deslizaram e construíram o que não tenho naquele aperto. Sobra a tristeza que carrego, e que nem sequer é desalento, ou desesperança, mágoa ou desânimo. Não é uma sombra, não é um lago, não é um mar. Não é amigo, nem inimigo. Não cai em cascata, não jorra em torrente, nem sobra mentiras ao ouvido. Nem sequer me seca, ou esmaga. Não me abre um buraco para me tapar com lençóis de tristura, não me deixa aflito, nem mesmo em pânico. Não goteja, não rebenta, não ganha raízes, nem sequer brita em flores do Mal.

Os fardos carregam-se, mas a tristeza nem isso é, porque a determinada altura, à escolha, podemos abandonar o fardo. Talvez a melhor maneira de defini-la esteja nessa noite onde me vi do outro lado do vidro esbatido, ou de cada vez que olho a foto do meu pai no recanto de casa onde os que não vivem continuam a existir em imagem. É cruzar o alívio da alegria de ter alguém que me compreende e onde me posso deitar no conforto de ser o meu próprio lar com a frustração de não poder partilhar os frutos do sacrifício de um homem, a surgirem pouco depois de eles terem partido. Um paradoxo onde habito e sou ao mesmo tempo actor num drama em dois actos: no primeiro, vejo-me como um solitário; no segundo, procuro a companhia de outros e retorço-me cadavericamente na minha alma quando não a tenho.

O terceiro acto deste drama acontece de todas as vezes que mastigo a tristeza de estar à frente de um polígono de terra e penso naquilo que quero dizer a quem não ouve. Nos poucos minutos em que consigo estar composto a poucos metros de ti. Quando a tristeza que procuro definir tem uma forma bem sólida, bem concreta e não me foge mais. Está ali, É um espaço de tempo onde a tua cara é a imagem dessa tristeza, e ao invés de me roer com esse buraco de não saber, posso dar à tristeza a tua forma. Talvez a memória do prédio triste que sou não me ocorra, mas sei qual o andar onde moras. Falta-me o espírito para ser feliz à distância de um botão, mas enquanto morares, sei que a minha tristeza não é fútil, nem destrói. Bóia, à tona de ti, também dela, com braços mais compridos do que o tempo.

E também com tudo o resto que cria o mundo espectral onde viver é uma ousadia e um acto arrogante de soberba. A tristeza mistura tudo isso. Até mesmo a hipótese de um dia dar lugar à alegria.

terça-feira, setembro 02, 2014

Botões



As portas do elevador fecharam-se no momento em que as suas bocas se abriram uma na outra. A força da gravidade fez cair as suas línguas num mar de saliva, onde o afogamento não é  perigo público, mas sim salvação pessoal. Nada era inesperado, e nenhum deles queria estar à espera. Uma mão seja a outra de desejo, e por entre o desacerto dos passos dados na ponta dos dedos, a descoberta dos recantos atrapalha um pecado pouco original, mas que sabe sempre a obra de arte.
1.
Os seus lábios percorrem uma estrada imaginária que da boca dela conduz pelo pescoço ao vale do peito. Rapidamente nascem gemidos surdos, crescendo a pouco e pouco e em flor, a boca daquela faz das paredes metálicas os lençóis com que se contêm os gritos morde-se e guarda uma explosão que rebentaria o elevador, mas mais certo era continuarem na mesma a levitar. Uma língua no sítio certo dá asas, e naquele momento, numa vertigem para lá do horizonte do umbigo, alguém a tornava num anjo. Um anjo de pernas bambas, a sofrer de alegria, mas um anjo ainda assim. As pontas dos dedos criaram uma crespa floresta na cabeça daquele que conhecia por David, mas que naquele momento se chamava tudo aquilo que o dia a dia lhe negava.
13
Um fecho faz tombar mais defesas do que uma catapulta, mas também ele se lançou num ataque, e às tantas já não sabia o que a fazia tremer mais, se a canção do bandido ou a mão que se dá no momento de aperto. Mas senti-la noutro plano, talvez sendo outra pessoa, ainda que permanecendo a mesma que conhecia, tornava as suas calças no mais desconfortável dos adereços. Ainda pensava ele nisso, e já ela descobria como pô-lo à vontade.
27
Subir. Descer, O elevador ia mesmo para que andar? Que elevador? O que é um elevador? Será um elevador a fazê-lo sair do corpo de cada vez que está dentro dela? Terá um elevador tantos botões quanto os gemidos que ela lhe arranca? Terá a corda do elevador tanta tensão como a que ela lhe tirou do peito quando lhe sussurrou "Fode-me"? E será que se alguma vez fizessem amor, seria tão bom como quando fodiam? Os corpos eram os mesmos, mas quando se faz amor, não se chamam nomes a quem se ama, a não ser que só se goste um bocadinho, e que aquele momento em que as mãos vêem mais longe do que os olhos, ou em que o planeta é uma auto-estrada de pele que segue pelas coxas em direcção ao sabe-se lá onde, é apenas um momento que nos arranca de nós, mas sem nunca abanar. 
44
Ela não sabia se o amor se pode viver de gatas, e quando lhe via os olhos, sabia enquanto ele se retesava, e não lhe dava descanso, nem era no amor em que pensava. Mas o elevador era mesmo esse lugar, onde se puxa o cabelo sem se querer mal, onde as putas são aquelas de quem se gosta e onde ele deixava de ser o seu marido, e era apenas um ele livre de tudo, e ela não era a esposa que tinha o jantar pronto a horas, porque no dia a seguir havia que cumprir o dever de ser mulher. Ali, eram ambos um cheiro indefinido do que já foram, e continuavam a ser, mesmo que o mundo lhe tivesse tirado isso, ou pelo menos pensava. No elevador, o mundo não entrava, e estavam num universo, bem maior do que o mundo, onde a comunicação era feita através de um código morse das pontas dos dedos
59
As pernas tanto tremem que caem, e enquanto deslizam pelo elevador até ao chão, ele segura-lhe os cabelos. Sofia liberta-se ao de leve. Não consegue sequer sentar-se, e mantém-se no limite da rigidez, sem ousar tocar o chão com nada mais do que os pés. Ele ajeita as calças. Olha o relógio, são 4 da manhã. Ergue-se, e tenta vestir-se, mas ela ajuda-o, num pretexto mais para deslizar as suas mãos na cidade de um prédio único. Sorriem e lentamente, deixam de ser ele e ela, e passam a ser eles, novamente de regresso à responsabilidade de enfrentarem juntos a ideia de que um casal não pode foder num elevador.
65
Beijam-se. As portas abrem-se e estão exactamente no andar onde começaram. Na sua cabeça, subiram 100 andares, mas o seu corpo rebentou tectos, e foi visitar uma galáxia ali mesmo ao lado do sol. Estava calor lá.