quinta-feira, julho 12, 2018

Cabanas do Monte


Cabanas do Monte foi sempre infância para mim. Lá para o Sul, mas um bocadinho mais a Norte do que devia, em família íamos todos os Verões, tudo arrumado, duas ou três semanas de praia sem cortes. Em criança fartava-me, mas quando cresci, talvez porque quanto mais o tempo passa, mais longe nos colocamos da possibilidade de decidir como a nossa vida se desenha, escolhi regressar mais vezes do que pensei possível. Apesar de litoral, Cabanas do Monte não facilitava a sua descoberta e ambas as estradas repletas de curvas, uma vinda de Foros e outra ligando-a até Magamides, custavam sempre um bocadinho a passar. Com dez anos, o estômago frágil como se de papel, era costume dobrar-me à beira da estrada, perante a paciência incrível do meu pai, que aproveitava sempre para mudar a estação de rádio à revelia da minha mãe, que segurava lenços de papel enquanto assistia ao espectáculo de ver os seus gostosos cozinhados numa pasta meio verde, meio amarela, cheia de saliva. A vergonha levava-me à desculpa, mas ela não se importava: íamos à praia; e quase trinta anos depois lá voltava eu. Não tinha coragem para quinze dias de torrar ao sol. Um fim de semana pareceu-me suficiente, em Cabanas nada mais de interessante havia que uma linha de mar manchando a areia brevemente, convidando ao mergulho. Quer dizer, até ela aparecer.

Bem sei: esta é a parte da história onde a maior pasmaceira ganha vida apenas e só pelo fôlego que a silhueta feminina lhe pode dar. Sim, também é isso; mas eu não o sabia, nem calculava; não houve epifanias ou luzes, sininhos ou tininhos. Do que mais gosto em Cabanas é de uma esplanada a pouca distância da praia, onde faço tempo a ler até me apetecer mergulhar. É agradável e na maior parte do tempo, é uma brisa marinha que me acaricia a cara com sal. Mas há dois sábados, a minha face foi brincada com um chinelo de borracha, em certeira pontaria. O meu livro caiu ao chão e por entre a momentânea confusão de tempo e espaço, o sol à minha frente foi obstruída pela figura de aflição súbita que apenas se expressou com um "Foda-se" bem certeiro. Não teria dito melhor. Voltando a mim, confrontei a minha agressora, sem sequer perceber muito bem feições ou formas, mas um cheiro doce a pêssego tornou o meu regresso à percepção do real muito mais agradável. "Foi o vento, desculpe, está bem?" Não disse nada, as minhas mãos trataram de informá-la que sim, tudo normal, não tem mal algum, não se preocupe. "Viu o meu chinelo?", sim, de muito perto, mais do que queria. "Tem a certeza que está bem?", enquanto o encontrava. Quando se aproximou, definindo-se por fim, não me lembro de ser o apogeu do mundo, mas de certa maneira, o calor rodeava-a sem sequer afectar o seu discurso, e o controlo sobre os meus olhos era inegável. Quis pagar-me algo, quis compensar-me e a mim, que estava ali por leituras, apeteceu-me desfolhá-la. "Conheces Cabanas? É a minha primeira vez cá, falaram-me que era sossegado", e eu conhecia tudo desde criança, falei-lhe brevemente da minhas férias em família, mas na sua acutilância curiosa, perguntou-me algo a que nunca me tinha dado o trabalho de pensar: "Porque é que isto se chama Cabanas do Monte? Não vejo cabanas e muito menos montes"

A epifania deu-se aqui. Porque, sabem, andei uns quinze anos da minha existência a morrer um pouco mais ali todos os Verões, vítima de tédio; nos saltos e sobressaltos da minha cabecinha, que com a idade se foi ocupando de temas cada vez mais complexos e hormonais, nunca me passou pela cabeça questionar o nome dos nomes. É grave para mim, cientista, habituado a perguntar ao etéreo o porquê de tudo. Mas fazia tudo um certo sentido: as faixas costeiras não se caracterizam por elevações. Há pequenos topos, mas nada que levasse uma maralha de populares a decidir que por ora, tal terra deveria o seu nome a uma elevação. Dava as cabanas de barato, mas o monte... Era como se aquela terra, e por arrasto a minha memória da infância, nascesse de uma contradição. Cabanas do Monte podia muito bem ser a piada e eu, os meus pais, um prolongamento da gargalhada. O chinelo acordou o meu cérebro, mas antecipando-se, ela já estava de volta do telemóvel, puxada pela mesma dúvida. Sentou-se e passámos algum tempo de volta de mapas e sites e bebemos uns finos e mandámos vir umas empalhadas e em vez de mar, acabei a tarde, ao lado dela, junto de uma pilha de detritos a uns dez quilómetros de onde a indagação começara. "O monte é isto", e era, há vários séculos existia ali, com quase 400 metros de altitude, mas durante o terramoto de 1755, uma onda violenta abriu o solo e tudo o que estava amontoado foi deslizando até não ser mais do que uma irreconhecível instalação artística do poder natural. Foi quando a olhei e me apercebi de como esta mulher conseguia tornar o detrito interessante. Já lhe sabia o nome e o cheiro, a forma e a aparência, as palavras e os sons.

Jantámos nessa noite. Soube muito mais do que queria, mas menos do que devia. Nenhum de nós estava interessado no veraneio, Cabanas do Monte era apenas um pretexto para sair da realidade e sermos outros. Nesse fim de semana não sei que papel tomei, mas podem dizer que fui um pequeno brilho no olhar de quem à minha frente me confessou que eu lhe causava um certo arrepio na nuca quando, depois do jantar, demos o passeio dos tristes na marginal. "Sabes, li algures que os arrepios costumam passar com beijos", e não quis desmenti-la. Não sei que tipo de atalhos levam da nuca até à boca, mas apanhei-me num e não quis voltar atrás. Podia, devia, mas não quis. Deve ter sido do iodo da noite, ela também não regressou ao que era nos outros dias e juntos, criámos outros nós, mais livres, mais presos um ao outro e sei que chegámos a minha casa, mas partimos para outra. A sua pele sabia a ondas do mar, violentas como unhas que cravam, refrescantes como uma língua que apaga um fogo no peito e inesperadas como dentes que arranham a derme. Não sei se durou muito ou pouco, como disse foi outro que não eu quem fez tudo isto, mas lembro-me do seu olhar oceano, afogando-me de plena vontade, puxando e estrebuchando, depois acalmando-me com a carícia do afago sexo. "Sim, és aqui e agora", e aqueles olhos ainda hoje me fazem sentir muito menos adulto e responsável do que me pensava. O Domingo foi estendido, mas não numa toalha e quando o sol se pôs, já estávamos bem postos no despertar de cada um.

Não voltei a vê-la, embora quisesse. "É melhor guardarmos uma boa memória do que uma má narrativa" e ela era assim, eu não concordava, mas ela era assim. Cabanas do Monte, terra de contradições, cria lembranças em mim e mesmo que nunca seja casa, é sempre um local onde me apetece morar, ainda que esteja longe do mar. Basta que pense nos mergulhos nos seus olhos e de repente, é terra à vista.