terça-feira, outubro 06, 2009

Justice be served


A Suíça é um país no centro da Europa que é conhecido, entre outras coisas, pelos seus queijos. Por isso, nada mais apropriado do que ser o palco de uma ratoeira que foi montada a Roman Polanski no dia 27 de Setembro, quando este, numa ocasião rara, saiu de França, onde está instalado desde 1977, para receber um prémio de carreira no festival de cinema de Zurique. A razão que levava Polanski a viver praticamente cativo em território gaulês foi a mesma que levou ao fechar da ratoeira: a fuga do realizador dos Estados Unidos, há 32 anos, sob acusações de violação de uma menor.
Primeiro, vou já esclarecer uma coisa que poderá não parecer evidente: não acho piada a violações, e também me faz espécie a violação de menores. Por estranho que isto possa parecer, podemos estar contra estes crimes horrendos e ter uma posição favorável a Polanski neste assunto. O que está aqui em causa não são as nossas posições morais, mas sim a imoralidade subjacente a um caso que, se os EUA tivessem juízo, deixavam morrer e ser esquecido, porque é vergonhoso para o seu sistema legal. A imprensa aborda o caso pela rama, com parangonas: Polanski violou uma menor e fugiu. Claro que, como disse Faulkner, os factos e a verdade raramente são a mesma coisa.
Polanski enfrentou o tribunal em 1977, de facto, e foi punido: declarou-se culpado, e aceitou um acordo entre a procuradoria geral californiana e os seus advogados, que lhe trocava o tempo que teria de cumprir na prisão, 30 anos, por uma estada de 90 dias numa clínica psiquiátrica. Pode parecer-nos estranho este acordo, mas grande parte das acusações eram muito ténues: a menor dissera que não fora violada ( o que mudava o quadro penal por completo para sexo com menor, que é um crime mais leve no sistema judicial americano), as acusações de drogas podiam ser perfeitamente atribuídas a outras pessoas presentes na mesma casa (como Jack Nocholson...) e qualquer advogado minimamente competente teria conseguido defender Polanski com dois factos simples, capazes de solciitar a simpatia de um júri: a sua mulher, Sharon Tate, fora assassinada pela família Manson três anos antes, e a simples infância de Polanski, sobrevivendo ao gueto de Varsóvia e vendo os pais morrer à sua frente às mãos do exército nazi, poderiam fazer um júri deliberar a seu favor. Para além disso, quando foi a última vez que viram uma estrela a ser condenada?
Polanski aceitou cumprir os 90, presumivelmente para se curar destes desvios. No entanto, o juiz Lawrence Rittenband, que presidia ao caso, foi o protagonista da manobra que acelerou o desfecho conhecido. Rittenband nunca escondeu que desejava ardentemente enfiar o polaco na prisão. Um procurador, David Wells, que nem tinha nada a ver com o caso, ajudou-o a mudar a sentença, à revelia, para a sua forma original de 30 anos de prisão. Sabendo disto, Polanski meteu-se no primeiro avião e fugiu para França, país do qual tinha obtido cidadania tempo antes. No documentário de 2008 "Roman Polanski: wanted and desired", Wells assume isto publicamente. Claro que mal Polanski foi detido em território suíço, vei dizer que tinha mentido... Se eu estivesse no lgar de Polanski, mesmo culpado, tinha feito o mesmo se sentisse que me estavam a tirar o tapete. Isto não é nada mais do que o espectáculo degradante do processo judicial nas teias mediáticas, mais do que o alcançar ou não de justiça. Linda Geitmer disse no documentário acima mencionado que o maior dano nesta situação não lhe foi infligido por Polanski, mas sim pelos jornalistas e toda a máquina legal que quis condenar um "playboy polaco", um "anão malvado" explorando o seu sofrimento. "Forget it, Jake. It's Chinatown".

Uma palavra final para a Suíça, um país que visitei várias vezes e admiro de um ponto de vista turístico e cívico, mas acho dos países mais moralmente hipócritas do mundo. Este país, que agora se arma em paladino da justiça, foi o mesmo que aceitou nos seus bancos, sem pestanejar, ouro que os nazis roubaram aos judeus durante a 2ª Guerra Mundial, e o manteve durante o restante século XX, repelindo qualquer tentativa legal de revertê-lo às vítimas do Holocausto. A sua neutralidade de fachada é hipócrita, de facto. É irónico que tenha levado a mão à consciência precisamente contra um judeu que viveu na pele os horrores do extermínio nazi. A História tem, muitas vezes, destas coisas poéticas. Mas Harry Lime, personagem do filme "The third man", resumiu bem a falta de relevância da Suíça e da sua chata neutralidade: "In Italy, for thirty years under the Borgias, they had warfare, terror, murder and bloodshed, but they produced Michelangelo, Leonardo da Vinci and the Renaissance. In Switzerland, they had brotherly love, they had five hundred years of democracy and peace—and what did that produce? The cuckoo clock."
Por último, e tendo em conta esse grande festival de cinema de Zurique, digam-me o nome de um grande filme suíço. Só um.
Pois, bem me pareceu...

2 comentários:

Jo disse...

"Uma palavra final para a Suíça, um país que visitei várias vezes e admiro de um ponto de vista turístico e cívico, mas acho dos países mais moralmente hipócritas do mundo."

Tenho família lá e já lá passei tempo suficiente para dizer: subscrevo a 100% esta afirmação.

PS: O Carlos Areias deve estar contente de não viver nos USA, land of the free, home of the brave...

kiss*

João Saro disse...

A Suíça é neutra, desde que isso seja do seu interesse... e quase sempre o é.

P.S.: Não é por acaso que esteve até há um mês na lista negra de "offshores" quando nem a Madeira consegue tal feito.