terça-feira, março 27, 2012

Descarga


Existe em mim um esquerdista inconformado. Em jeito de piada (ou se calhar não), um amigo meu está constantemente a dizer que sou um radical de esquerda e não admito. Talvez até estivesse destinado desde pequeno a sê-lo, até porque a conformidade com o modelo de regras social nunca foi algo que seguisse; no entanto, quis o meu destino que nascesse de um pai polícia, e de uma mãe que cedo ganhou uma posição de chefia no seu emprego. Portanto, eu sei o que são regras, o que é cumpri-las e a sua importância. Acredito em regras, porque não acho que o simples bom senso pessoal sobre para nos guiar convenientemente neste mundo.

Ora, sendo o meu pai polícia, cresci com relatos da profissão à mesa de jantar, e também rodeado de outros homens fardados que na minha visão de criança, apenas se conheciam por apelidos: o Dias, o Almeida, o Neves, o Cunha... Havia também um "Drácula", mas creio que mais por apodo do que apelido. Sempre conheci polícias. Na sua grande maioria, são tipos que não têm grande amor à profissão de polícia. São pagos todos os meses e não se preocupam ideologicamente com quase nada. Penso que a única ideologia do meu pai é o asco a Cavaco Silva, e posso dizer que me orgulho disso. Tirando isso, fazem da sua profissão é um trabalho das nove às cinco, e regresso a casa.

Achei por isso evidentemente ridículo todo o alarde que se fez em redor da carga policial da semana que passou, numas manifestações ali para os lados do Chiado. O ridículo foi o dramatismo a que chegaram as acusações, juntando tudo num saco, e levantando fantasmas fascistas de suas campas, como se de repente voltássemos 50 anos atrás. Penso que é um problema de que vamos sofrer inevitavelmente até ter morrido toda a gente que viveu sob o jugo de Salazar: Portugal ou é uma democracia plena ou uma ditadura facínora. Os intermédios e os cinzentos não interessam. E quando a vítima é um jornalista, pior ainda. De certeza que é opressão à liberdade de expressão!

Parar e pensar não é socialmente aceite na modernidade. O alarde e o barulho são muito mais cómodos e úteis para ofuscar o bom senso. A carga policial, tão conotada de vilania, respondeu, em primeiro, a um conjunto de arruaceiros que infelizmente transformam um protesto pacífico no seu recreio de grunhice. É impossível controlar esta gente, e já farta até vê-los, mas é inevitável vê-los a danificar propriedade e a perturbar o cidadão comum que protesta, e até aquele mais indiferente que está apenas a beber um café. Uma vez colocada em posição, agiu como é normal numa carga policial: formou cordão e varreu por aí fora quem não saiu do caminho. Apanhou dois jornalistas pelo caminho. Pois... Se fossem dez carpinteiros, eram mais uns; mas como eram os paladinos da verdade e da justiça (wishful thinking, desculpem), tragédia, horror e ignomínia são apenas palavras que mal descrevem o que passou. No meio do acto de ordem, alguns grunhos, com problemas mal resolvidos com a vida e consigo mesmos, decidiram descarregar frustrações diárias em gente que não lhes fez mal nenhum. Estes são, na verdade, aquele a quem se deve apontar o dedo: a cobardia e o uso indevido de autoridade são um mal em qualquer tipo de sistema político. Conotar toda uma profissão com as más atitudes de alguns elementos é um mal geral, e que toda a gente que apontou o dedo a esta carga policial, sofre e se queixa. Mais um caso de não aprender com o que se sofre. Como se o mundo fosse um constante jogo de apontar o dedo até só sobrarem culpados.

Ironicamente, todo este jogo é precisamente aquilo em que o fascismo era bom. O clima de medo e suspeita foi o que garantiu a sobrevivência do Estado Novo durante quase 50 anos. Hoje, olhar para este género de situações podendo medir todos os lados (ou seja, uma das dádivas do Estado Democrático) pode ser um passaporte para sermos chamados de simpatizantes fascistas. 38 anos depois do 25 de Abril, batemos no peito até nos saltarem cravos, mas perpetuamos exactamente os mesmos fantasmas que recusamos deixar dormir em paz. Somos engraçados, nós.

1 comentário:

Post-It disse...

concordo. e estas jogatanas só servem para nos por uns contra os outros - o que só simplifica a vida de quem se está a marimbar para nós.