sábado, julho 14, 2012

Carris são mais a minha praia


Não sou Marcel Proust, e descobri isto aos 10 anos. Por isso, não uso madalenas para despoletar as minhas torrentes de recordações (também não tenho histórias assim tão interessantes que pensam encher milhares de páginas). Sou bem mais modesto, e nem sequer preciso de pastelaria. Como descobri na quinta-feira, apenas necessito de uma passagem de nível.
Foi numa fortuita passagem pelo Carriço, aldeia já no distrito de Leiria, que tal espécie de local me transportou de regresso à minha infância, habitando o interior de um Peugeot 306 dos antigos. Felizmente para a minha companhia, não se procedeu ao fenómeno físico do rejuvenescimento, pois o embaraço causado teria sido insuportável para mim, cuja barba já me aumenta uns anos precisamente, lá está, porque não sou Marcel Proust.

Uma passagem de nível em particular transportou-me para as minhas férias de crianças, onde a Praia do Pedrógão era o arquipélago das Seychelles da minha família. Consistentemente, durante dez anos ou mais, voltávamos na primeira quinzena de Agosto, período que será para sempre associado a férias no meu calendário biológico. Casa arrendada, meia casa às costas, e a ideia preferida do meu pai para relaxar: passar o dia inteiro na praia, a torrar. Lembro-me de um parque infantil colocado logo à entrada da praia, onde passava a manhã. Lembro-me do Nuno, um rapaz que conheci e com quem partilhei brevemente o entusiasmo pela colecção "Biblioteca do Escuteiro Mirim", e a inveja que senti quando ele me disse que tinha acabado a colecção, sem eu sequer ir a meio. Os vinte volumes que hoje possuo dão-me uma sensação de ter cumprido uma cruzada de infância. Lembro-me de ir ao banho às quatro da tarde, lanchar às quatro e meia, comer um gelado às cinco e picos, e mandar mais um mergulho antes de regressar a casa às sete. Lembro-me de broeiros no Verão, e de pevides daquelas salgadas e que não se encontram nos hiper-mercados hoje, e só podem ser adquiridas na praia. Lembro-me de jogar à bola com um malandro que hoje actua num clube da 1ª Divisão, e de uma sarrafada que lhe dei, e de ter ficado triste depois. Lembro-me da minha avó; e também me lembro do meu avô; e como eles hoje só habitam nestas memórias, é o único sítio onde não me importo de passar horas numa praia ao sol. Lembro-me do "passeio dos tristes", à noite. Lembro-me de uma cassete dos Diapasão, que passava todos os dias, durante um ano específica. Lembro-me de ficar em casa da dona Idalina a ver os Jogos sem Fronteiras, à segunda-feira, e de como ela não se importava. Lembro-me de, já crescido, ter ido ao banho nu no mar, longe de toda a gente. Pelo menos, era o que pensava, até gentes, que não eram de miragem, começarem a passar no areal. Lembro-me de almoçaradas na Mata do Urso, e do quanto odiava aquilo, e do quanto passei a gostar uns 20 anos depois, quando lá voltei mais uma vez, mas para fazer uma cache. Lembro-me de ficar em casa a ver a Volta a Portugal, na hora de calor, e de o Joaquim Gomes ser o meu ciclista preferido. Lembro-me de um futebol com postes feitos de montes de areia. Lembro-me de conseguir dar mais de 1000 toques com uma raquete, e pensar que era o maior da minha aldeia. Lembro-me de ir uma vez ao banho com bandeira vermelha, e ondas duas vezes a minha altura, e me ter sentido bem menos como o maior da minha aldeia.
Lembro-me, acima de tudo, quando não tinha as perturbações nervosas suficientes para alimentar um blog, quanto mais dois.

A maneira como boa parte da nossa infância se pode condensar num pedaço de carris com madeira em redor pode parecer triste e redutor; mas se tivermos em conta as vezes em que a recordação da infância transforma a nossa idade adulta em algo do género, talvez seja apropriado.

1 comentário:

Juliana Lobo disse...

não tinha comentado da primeira vez que li, mas escrevo agora: é sinestésico.