quinta-feira, agosto 23, 2012

Poderes mágicos



Um sono eterno do Homem é tornar-se naquilo que impossivelmente será que se torne. É esse o apelo das histórias de heróis e de super-heróis, e uma distinção importante entre ambos. Enquanto que os primeiros são reconhecidamente normais, mas amplificados, os segundos são claramente anormais por possuir aquil que para nós reclamamos apenas em sonhos: voam, correm mais rápido do que a luz, são imortais, são indestrutíveis, têm uma força extraordinária. Na nossa visão, são mágicos. Isto porque dois séculos de cientismo nos colocaram na planície da normalidade e do nulo. Somos matéria, e a matéria, como é consabido, apenas é magica se estiver num reactor nuclear ou num bico de Bunsen.

Não podia discordar mais. Nós temos poderes mágicos, e não falo daquele que Paulo Coelho inventa para manter o cash flow constante. O maior deles é o de dar vida aos objectos. Não tento fazer entrar o animismo no mundo das coisas normais; apenas destaco que somos o único ser que consegue carregar os objectos que usa de personalidade. Se forem como eu, não-vivos que vos rodeiam têm a vossa memória, a vossa vida, os vossos pensamentos. De cada vez que os vêem ou tocam, sabem que pertencem claramente ao vosso mundinho que criaram dentro deste maior. Não consigo ser materialista nisto. Sou um verdadeiro sentimentalão, e guardo tralha, apenas porque foi importante para mim. Distingo-a e reconheço-a nas mínimas nódoas e amolgadelas, e lembro-me perfeitamente quando, onde e de que maneira causei o efeito dos seus defeitos.

Foi por isso que enfrentei com uma dor diferente da do meu pai, e da minha mãe, a notícia de que o meu irmão se espetara no Ford Escort Boston cá de casa.Este vetusto bólide, máquina de guerra que conduzo orgulhosamente por entre máquina de alta cilindrada se for preciso, foi o primeiro carro que conduzir. A sua aparente morte estragou-me o dia. Vivi aventuras com aquele carro que posso contar, e outras que nem por isso. Nos cinco anos que dei por mim a dirigir por entre o sítio mais perigoso do nosso país (a sua rede de estradas), foi este veículo a minha cara; o seu velho motor enrugou ainda mais com os meus maus-tratos, e outras rugas surgiram na sua carroçaria. Em cada uma delas, um erro, um pecado, um arrependimento, uma ruga em mim mesmo por pensar no que me aconteceria ao chegar a casa. Aquele carro é um verdadeiro sobrevivente, e um depósito de histórias, secretas ou não, que envolvem toda a gente cá de casa. Já todos bateram ou deram um toque com ele; e no entanto, qual imortal, lá regressa ele, pronto para mais um round, afastando com guinadas uma morte que se anuncia todos os anos, quando chega a data da inspecção. Ouve-se do juiz paterno "É desta que ele chumba", e nunca é.

Gosto de pensar que a máquina sabe que, por muitos outros carros que tenhamos comprado para substituí-lo, ele será a minha preferida, e o pronto-socorro quando as outras claudicam e falham. Aí, ele estará lá fora, estacionado. Foi lá que o encontrei, após ter escapado, garboso, a nova tentativa de assassinato. O motor ainda tosse de vez em quando, a embraiagem é o último nível do "Takeshi's castle", mas ele mexe, e avança. Sem a nossa vida, ele estava morto; mas se ele morresse, a nossa vida era menos vida e mais morte.  Parece estúpido, mas não consigo deixar de pensar nisto assim. É melhor do que julgar que qualquer coisa é facilmente descartável. Isso sim, é mais máquina do que gente.

1 comentário:

Post-It disse...

Só eu sei o que me custou desfazer do meu Del Sol!